3 de abr. de 2013

Os ativistas de minoria nenhuma e os ativistas de uma minoria só

03C1593621E7Mulher é presa em San Francisco ao protestar (se despindo) contra o decreto que proibe o nudismo público na cidade

por Caio Coletti
(TwitterTumblr)

“A tolerância com as diferenças é um traço notável da civilização ocidental contemporânea, mas é necessário que haja regras capazes de evitar que o comportamento de uma minoria possa ferir os códigos sociais adotados pela maior parte da sociedade – ao menos nos espaços públicos” (Revista VEJA, 02 de Novembro de 2012)

Eu não estava esperando nada de esclarecedor ou minimamente respeitoso quando, na sala de espera do médico na última terça-feira, parei de folhear desesperançado uma edição da Revista VEJA para ler uma matéria intitulada preguiçosamente de “Basta de gente pelada nas ruas”. Mas eu certamente não estava esperando algo do naipe do parágrafo acima. Vamos começar com os fatos jornalísticos, tão diluidos no texto da revista que ficou até difícil pescá-los: o representante do Castro, o bairro gay mais famoso do mundo, na câmara legislativa de San Francisco, passou um decreto que proíbe a nudez pública na cidade, com exceção àquela praticada na Parada Gay anual e em festas populares similares.

Eu posso entender porque o caro leitor, ao ler finalmente do que se trata a matéria da VEJA, tenha parcialmente concordado com a visão da revista nesse aspecto. A matéria segue o trecho separado acima com a seguinte opinião (e vale lembrar que tudo isso é escrito diretamente pelo redator, não está na fala de uma fonte): “Aqueles que se opõem ao decreto ignoram o desconforto alheio e só vêem sua própria liberdade cerceada. Não acreditam que podem envergonhar uma mãe que brinca com seu filho no parque, deixar um casal de namorados desconfortável no restaurante ou constranger uma senhora ao se sentarem nus ao lado dela no ônibus”. Há muito tempo que a VEJA tem usado a sua suposta credibilidade com o público para habilmente escolher os lados que deseja ouvir de uma discussão e, ainda mais descaradamente, discursar a favor desse lado diretamente, como se tivesse autoridade para ditar a retidão moral.

Mas isso não é novidade para ninguém: a VEJA sempre foi uma ativista de minoria nenhuma, suas páginas pulsando de vontade de manter a ordem vigente inalterada mesmo que a mentalidade e as formas de expressão do mundo todo estejam mudando (e que me pintem de radical, se quiserem, como fizeram com a pobre entrevistada – supostamente escolhida como representante dos protestantes na matéria – Gypsy Thub, que declarou: “esse decreto quer nos mandar de volta à era das trevas!”). O que parece ainda mais alarmante é que um decreto como esse tenha sido proposto por alguém como Scott Wiener. Não que o partido democrata, ao qual o moço é afiliado, não tenha membros mais conservadores, mas simplesmente porque esse não é o caso com Scott: antes de ser eleito como representante do Castro na câmara, Wiener co-presidiu dois clubes democratas voltados para a garantia dos direitos LGBT (o Alice B. Toklas LGBT Democratic Club e o San Francisco LGBT Community Center), e uma associação de advogados ligada a movimentos pela liberdade individual. Scott, ao que parece, não é mais um caso de um ativista de minoria nenhuma. Muito pior, é um caso de ativista de uma minoria só.

Este que vos fala não conseguiu acesso a informação alguma sobre a orientação sexual do representante Scott Wiener, mas, sendo ou não gay, o moço esteve do lado da luta pelos direitos homossexuais durante um bom pedaço de sua carreira. Talvez com a sua proposta ele não quisesse dizer o que a VEJA afirmou lá naquela nossa primeira citação, no topo do texto, mas sem dúvidas que a proposta limita a liberdade de um grupo em viver da forma que bem entender em sociedade. Essa é a armadilha que especialmente os membros de uma minoria não podem cair: se você é homossexual, e acha que é sua liberdade andar na rua de mãos dadas com o seu parceiro, não importa a quem isso “constranja” ou “incomode”, então você não tem o direito de dizer que a escolha dos nudistas em andar sem roupas por essa mesma rua é imoral. Parece óbvio dizer isso, e eu gostaria que fosse, mas a ideia de “liberdade para todos” não admite um “o meu comportamento é aceitável e o seu não”.

Para que não se abram interpretações quanto ao que quero dizer aqui, esse princípio só serve para os comportamentos que não ferem diretamente uma outra pessoa. Constrangimento, desconforto ou vergonha provocada pelo comportamento do outro em relação a si mesmo não é motivo para censurá-lo, muito menos com lei. O princípio é simples e quase inalienável: a liberdade de um deve terminar onde começa a do outro, e vice versa. A partir do momento em que esse outro age em direção a você, impondo o comportamento dele ao seu ou diminuindo suas escolhas de qualquer forma (de agressão verbal a violência física), esse é um comportamente inaceitável. Dentro desses limites, cada um é livre para ser e fazer o que quiser.

O que não vale, mesmo, é lutar pela sua liberdade e cercear a do outro. Isso, além de muito vergonhoso para todo mundo ao seu redor, é inegavelmente hipócrita.

628x471Ativista segura cartazes e escreve “a guerra é obcena, não o meu corpo” nas costas. O decreto que proíbe nudez em San Francisco, apesar dos processos, ainda está de pé

1 comentários:

Anônimo disse...

Gostaria que todos que leram essa matéria da revista VEJA pudessem também ter acesso a esse belíssimo texto. Parabéns!