Review: Dirty Computer (álbum e filme)

Janelle Monáe cria a obra de arte do ano com um álbum visual espetacular - e que desafia descrições.

Os 15 melhores álbuns de 2017

Drake, Lorde e Goldfrapp são apenas três dos artistas que chegaram arrasando na nossa lista.

Review: Me Chame Pelo Seu Nome

Luca Guadagnino cria o filme mais sensual (e importante) do ano.

Review: Lady Bird: A Hora de Voar

Mais uma obra-prima da roteirista mais talentosa da nossa década.

Review: Liga da Justiça

É verdade: o novo filme da DC seria melhor se não tivesse uma Warner (e um Joss Whedon) no caminho.

16 de set. de 2016

Review: Orphan Black revela novas profundidades na quarta (e penúltima) temporada

orphan black

por Caio Coletti

Vamos deixar claro: Orphan Black já é ótima há quatro anos, e não é só por causa de Tatiana Maslany. Se os muitos elogios para a interpretação da canadense em múltiplos papeis são mais do que merecidos, a série merece aplausos também por usar com sabedoria imensa seu limitado elenco coadjuvante (Jordan Gavaris é uma preciosidade, vamos ser sinceros), servir e ouvir aos fãs sem exageros e, especialmente, contar com habilidade tremenda uma história que se apoia na construção e nos detalhes da vida de cada um dos membros do “clone club”, fazendo de cada microcosmo um castelinho de cartas que desmorona e se reergue com facilidade impressionante, mas nunca perde a essência. No entanto, os 10 episódios da 4ª (e penúltima) temporada trazem algo de especial, e é flagrante que tenham anunciado logo depois dela que a série deve terminar em 2017.

À parte de sua dimensão pessoal e de seu passeio pelas vidas, políticas e sentimentais, dessas personagens, Orphan Black sempre manteve seu discurso de ficção científica colado nos clichês do gênero de uma forma que agradasse ao espectador acostumado com essas convenções. Em palavras mais simples, Orphan Black sempre foi um delicioso pastiche de ficção científica que se tornava realmente especial por outros motivos – no quarto ano, no entanto, essa trama principal finalmente se abre e floresce em um discurso mais complexo, que analisa não só a dimensão de “vida humana como propriedade”, que é inerente de quase toda narrativa desse tipo, como também uma consideração mais complexa dos efeitos que essa opressão tem sobre os oprimidos.

Ditas repetidamente que são “menos que pessoas” por serem clonadas, as protagonistas de Orphan Black se ramificam em uma série de situações – a procura pela humanização é um passo importante na vida de Cosima, a mais generosa do grupo; a afirmação da segurança e aprovação social é fundamental para Alison; o entendimento do motivo pelo qual continua viva é essencial para Sarah; o eterno conflito entre independência e conexão humana é o que conduz as jornadas de Helena e MK, essa última apresentada na 4ª temporada… e por aí vai. Quando chegamos à vilanesca Rachel, no entanto, a história é outra, porque sua forma de reagir à opressão é buscar mais poder para que vire o jogo e se torne a opressora. Na jornada da personagem mais improvável, Orphan Black nos quer dizer mais do que jamais ambicionou.

O mais bacana, no entanto, é que Orphan Black condena essa atitude de Rachel sem deixar de mostrá-la como vítima de um sistema que a obrigou a ser assim. Criada por uma “mãe” que, no fundo, nunca lhe viu como nada a não ser uma experiência genética, Rachel é uma mulher assustada com o que acha ser a verdade sobre si, e que só conheceu poder através da violência. Não é uma situação muito longe da nossa realidade, em suma, assim como Orphan Black sempre procurou ser com a sua construção de personagem – a diferença é que só agora ela encontrou uma ressonância social mais óbvia e urgente, que a posicione como uma série tendo algo poderoso a dizer.

E que espetacular que isso tenha acontecido justamente quando a série se prepara para fechar trabalhos dentro de mais 10 episódios. Dessa forma, os showrunners John Fawcett e Graeme Manson não arriscam se perder pelo caminho, e tem a rara oportunidade de entregar uma conclusão potente para essa aula de narrativa de cinco anos. Por mais triste que seja ver Orphan Black ir embora, é espetacular vê-la chegando ao fim de maneira tão certeira e eficiente quanto pode – especialmente com uma Tatiana Maslany que mais uma vez impressiona por todas as sutilezas e obviedades que coloca em suas personagens, equilibrando com maestria as diferenças gráficas e notáveis entre elas e a jornada particular de cada uma. Emocionalmente gigantesca quando tem que ser (“The Antisocialism of Sex”, episódio 4x07, sendo provavelmente o exemplo mais óbvio), Maslany é confiável e confiavelmente humana a cada passo do caminho.

Com uma temporada espetacular, Orphan Black segue seu caminho para se tornar uma das séries de ficção científica mais notáveis do nosso tempo. Quando terminar aos 50 episódios no ano que vem, vale apostar que a produção canadense terá mudado o nosso cenário televisivo de muitas formas – tecnicamente, com seus truques para trazer clones à vida; praticamente, com a forma como trouxe a ótima televisão canadense para o resto do mundo; e narrativamente, visto que ajudou a renovar o fôlego da ficção científica na televisão e a provar que a força dos fãs em era de redes sociais pode fazer ou quebrar a trajetória de um produto. Além de tudo isso, na 4ª temporada, Orphan Black encontra uma razão para existir no mundo além do microcosmo televisivo e de gênero – e é isso que a faz verdadeiramente excepcional.

✰✰✰✰✰ (5/5)

orphan black 2

Orphan Black – 4ª temporada (Canadá, 2016)
Direção: John Fawcett, Ken Girotti, Peter Stebbings, David Wellington, Grant Harvey, David Frazee, etc.
Roteiro: Graeme Manson, Russ Cochrane, Aubrey Nealon, Alex Levine, Kate Melville, Chris Roberts, Nikolijne Troubetzkoy, Peter Mohan, etc,
Elenco: Tatiana Maslany, Jorgan Gavaris, Kevin Hanchard, Kristian Bruun, Ari Millen, Josh Vokey, Maria Doyle Kennedy, James Frain, Evelyne Brochu, Rosemary Dunsmore, Skyler Wexler, Jessalyn Wanlim
10 episódios

13 de set. de 2016

Review: Em Billions, a linha entre dinheiro e moralidade é mais borrada do que pode parecer

billions

por Caio Coletti

A primeira cena do primeiro episódio de Billions deixa uma impressão e tanto. Amarrado, Paul Giamatti recebe ordens de uma mulher vestida de couro – a brincadeira sadomasoquista dos dois continua por um tempo antes da moça começar a, literalmente, urinar em cima de Giamatti. Nas mãos dos showrunners Brian Koppelman e David Levien, a cena representa um jogo de poder e moralidade que se estende por todos os 12 episódios da primeira temporada de Billions, uma fascinante exploração dos princípios, ou falta deles, de vários personagens de lados diferentes da lei. A peça de centro dessa metáfora moral é a disputa entre os protagonistas Chuck (Giamatti) e Axe (Damian Lewis), mas todo mundo entra na dança eventualmente.

A trama acompanha o esforço de Chuck, que quer aumentar seu perfil midiático para um dia se tornar chefe da promotoria americana, para desmascarar atitudes ilegais que acontecem por trás dos panos na bilionária empresa financeira tocada por Axe. Em meio a essa disputa, a esposa de Chuck, Wendy (Maggie Siff) trabalha como psicóloga dentro da empresa de Axe, e serve tanto como terceira protagonista da trama quanto como os olhos do espectador sobre a psique desses personagens complexos e ambíguos. Com um senso de justiça aguçado, mas sempre pronto para fazer vista-grossa acerca de suas próprias infrações legais no processo de investigação, Chuck aparece como uma figura talvez tão deturpada e corrupta quanto Axe – a diferença é que a corrupção de Axe é celebrada, porque ela faz (muito) dinheiro.

Damian Lewis e Paul Giamatti são o coração dessa narrativa, obviamente. Lewis entrega uma interpretação que não cai na besteira de tentar ser carismática demais – seu Axe é um bilionário magnético e excêntrico, sim, mas é também um animal calculista, certeiro e perpetuamente misterioso. O meio sorriso esconde a eterna mágoa e desconfiança das instituições que Axe parece guardar, sua trajetória vitoriosa esconde uma personalidade impulsiva, raivosa, hiper-masculina. Enquanto isso, Giamatti confia em seus truques e trejeitos de costume para construir Chuck, mas leva o entendimento e a profundidade para outra dimensão ao retratar a complicada moralidade do personagem e mesmo seu gosto sexual pelo sadomasoquismo. Espetacularmente fascinante de se assistir, a performance de Giamatti dá voltas e voltas ao redor do roteiro, e toma vida própria para além dele.

Isso porque nem sempre Koppelman e Levien, ao lado de seus parceiros roteiristas, sabem exatamente o que estão fazendo. O segundo episódio da série, “Naming Rights”, por exemplo, pesa a mão nas alegorias e na exploração do caráter vingativo da personalidade de Axe, e demora um pouco para Billions achar o território confortável onde pode movimentar todas as camadas de sua história e de seus personagens. Isso acontece mais notavelmente nos três últimos episódios do ano, e especialmente no espetacular “Magical Thinking” (1x11), que destrincha as profundezas da alma de Axe e Chuck de formas bem diferentes, e encontra o momentum para o confronto dos dois no episódio final da temporada, um diálogo excepcionalmente escrito e atuado.

Quietamente, Billions constrói também uma pletora de personagens interessantes que aparecem nas beiradas da narrativa. Toby Leonard Moore e Condola Rashad, como advogados parceiros de Chuck no caso, encontram uma dualidade interessante entre si, uma química que solta faíscas e uma oportunidade de refletir sobre o lugar da ambição em uma carreira de serviço público. A equipe de analistas financeiros de Axe é perfeitamente colorida e excêntrica, vide a performance explosiva de David Costabile como o braço direito do personagem de Damian Lewis. E por fim, é claro, Maggie Siff encontra um espaço notável entre os dois protagonistas para crescer e construir uma Wendy Rhoades tão fascinante, senão mais, que ambos – analítica, honesta e minimalista, a atuação de Siff é o que mais marca emocionalmente o espectador.

Em seus 12 episódios, Billions se esforça para nos embrenhar em um mundo mais fundamental para a nossa sociedade do que imaginamos, e ao mesmo tempo manter tudo mais ou menos acessível. A fascinação vem dos personagens e das situações, não dos milhões ou bilhões em jogo, e a série da Showtime se posiciona, inteligentemente, tanto como uma aula de economia e direito que busca alertar e informar o público, quanto como uma análise do estado mental e dos privilégios sociais que fazem determinados membros da sociedade se permitirem atos que desafiam seu próprio senso de moralidade, e prezem sua própria colocação social acima de vidas e sentimentos alheios. Não há respostas fáceis em Billions, mas há uma certeza: ninguém é tão bonito, ou tão limpo, quanto quer aparentar.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

billions 2

Billions – 1ª temporada (EUA, 2016)
Direção: Neil Burger, Scott Hornbacher, James Foley, Neil LaBute, Stephen Gyllenhaal, John Dahl, Susanna White, Karyn Kusama, Anna Boden, Ryan Fleck, Michael Cuesta
Roteiro: Brian Koppelman, David Levien, Andrew Ross Sorkin, Willie Reale, Young Il Kim, Heidi Schreck, Wes Jones, Peter Blake
Elenco: Paul Giamatti, Damien Lewis, Maggie Siff, Malin Akerman, Toby Leonard Moore, David Costabile, Condola Rashad, Glenn Fleschler, Kelly AuCoin, Susan Misner, Nathan Darrow
12 episódios

9 de set. de 2016

Review: Por todo seu encanto visual, o novo “Mogli” triunfa mesmo é na narrativa

jungle

por Caio Coletti

A trajetória de Mogli: O Menino Lobo é talvez a mais conturbada da rica história da Disney. Nascida como um clássico literário instantâneo, intitulado O Livro da Selva, de Rudyard Kipling, a história de Mogli foi criticada como um apoio descarado ao colonialismo, uma alegoria que trocava indianos e britânicos por animais e humanos, e insistia na superioridade dos últimos. Quase 70 anos depois de seu lançamento, Mogli virou uma animação pelas mãos de Walt Disney – de fato, o filme de 1967 foi o último da companhia a ser supervisionado por seu criador, visto que Disney morreu durante a produção do longa. Mudando radicalmente o plot do livro, o Mogli da Disney incluía canções e performers inesquecíveis para criar um hit de bilheteria certo e uma encantadora história sobre amadurecimento.

Uma continuação para o mercado de vídeo (em 2003) e algumas outras tentativas de adaptação da história original depois, a Disney voltou a investir na trama em Mogli – O Menino Lobo, e o resultado, talvez não surpreendentemente, acabou sendo uma mistura interessante de todos esses elementos da origem da história, e ao mesmo tempo uma evolução natural dela. O homem no comando é Jon Favreau, que ganhou a confiança do público, dos críticos e dos estúdios ao dirigir os dois primeiros Homem de Ferro – certificadamente, Favreau é um cineasta deslumbrado com as possibilidades do cinema contemporâneo, e ao mesmo tempo centrado o bastante em narrativa para fazer com que um filme funcione para além de seu visual ou de seus efeitos.

Em suma, ele é o homem certo para refazer Mogli – O Menino Lobo, na reimaginação esperta do roteirista Justin Marks (Street Fighter: A Lenda de Chun-Li), que consegue juntar o carisma dos personagens e uma série de referências respeitosas ao filme da Disney com o espírito alegórico e metafórico do livro de Kipling, tudo enquanto subverte a própria mensagem que Mogli sempre representou. De uma fábula sobre colonização mal-disfarçada, a história do menino que se perde dos pais, é criado por uma matilha de lobos na selva e caçado pelo maligno tigre Shere Khan se transforma em uma encantadora lição de convivência e adaptação às diferenças. Marks não tenta equalizar Mogli a seus co-habitantes animais na selva, mas permite que um aprenda com o outro para se tornarem, coletivamente, melhores.

É um princípio interessante para se manter em tempos que vemos tanta retórica anti-imigração por aí – a frente de um mundo notadamente xenofóbico e amedrontado, Mogli quer nos dizer que trazer alguém diferente para dentro de nossa casa contribui para a evolução natural de uma sociedade. Tudo enquanto Favreau passeia luxuriosamente por paisagens deslumbrantes criadas por efeitos especiais. Não há momento do filme que pareça artificial, mas o truque não é nem mesmo esse – ao lado de seus técnicos de efeitos especiais, Favreau cria um mundo que é ativamente deslumbrante, trabalhando ângulos de câmera que favoreçam o visual concebido e insiram o personagem humano (e estreante Neel Sethi) com cuidado, realismo e beleza plástica em um mundo digital.

Ajuda que o elenco de vozes reunido também seja perfeito, embora de forma óbvia, para os personagens. Quando o assunto é Baloo, Baghera, Rei Louie e Kaa, no entanto, é claro que o público quer percebê-los da forma como se lembra deles de sua infância, e Favreau acerta em cheio ao escalar seus dubladores de acordo com a personalidade dos personagens, sem correr riscos. É claro que Bill Murray dá um ótimo urso bonachão, corajoso e despreocupado; é óbvio que Ben Kingsley traz um quê de respeitabilidade para o admirável Baghera; e é mais do que evidente que o estilo inconfundível e excêntrico de Christopher Walken se presta admiravelmente ao Rei Louie. Idris Elba (Shere Khan), Scarlett Johansson (Kaa) e Lupita Nyong’o (Raksha) completam o elenco com trabalhos igualmente bacanas.

Se alinhando a outros dois filmes excelentes adaptados de propriedades intelectuais exploradas anteriormente em animação pela Disney (Malévola e Cinderela), Mogli – O Menino Lobo toma os riscos calculados que são próprios do estúdio do Mickey, e não é um pedaço de cinema essencial para entender o estado da cinematografia americana (ou da cultura pop) em 2016. No entanto, segue como um entretenimento bem-realizado que supera as deficiências de discurso de um filme anterior da Disney e o transforma em uma mensagem verdadeiramente positiva para qualquer público que venha a apreciá-lo. Mogli – O Menino Lobo corrige os defeitos de ambas as suas versões anteriores (em livro e filme) e encontra espaço para encantar, desafiar e ensinar o espectador. Não dá para pedir muito mais do que isso.

✰✰✰✰ (4/5)

jungle 2

Mogli – O Menino Lobo (The Jungle Book, Inglaterra/EUA, 2016)
Direção: Jon Favreau
Roteiro: Justin Marks, baseado no livro de Rudyard Kipling
Elenco: Neel Sethi, Bill Murray, Ben Kingsley, Idris Elba, Lupita Nyong’o, Scarlett Johansson, Giancarlo Esposito, Christopher Walken, Garry Shandling, Emjay Anthony
106 minutos

7 de set. de 2016

Review: “Mãe Só Há Uma” é uma delicada obra sobre um (des)encontro de gerações

mãe só há uma

por Caio Coletti

Por ser o novo filme da diretora Anna Muylaert, Mãe Só Há Uma chegou aos cinemas com a pressão adicional de seguir uma obra-prima como Que Horas Ela Volta?, que transformou a diretora em uma das mais proeminentes do cenário nacional. Para “piorar”, o filme vem com uma trama e um tema que, superficialmente, tem muito a ver com as mesmas questões abordadas pela diretora no filme anterior: em Mae Só Há Uma, acompanhamos a história de Pierre (o estreante Naomi Nero), um jovem que descobre, da mesma forma que no famoso caso real do menino Pedrinho, que a mulher que acha ser sua mãe (Dani Nefussi) na verdade roubou-o da maternidade. Com a mãe “adotiva” presa, ele é obrigado a conviver com uma família que passou quase duas décadas lhe procurando, mas que é composta por estranhos para ele.

O tema da familiaridade (no sentido mais profundo da palavra), a questão social em torno das classes diferentes às quais as “duas famílias” de Pierre pertencem, as complexas relações entre personagens que dividem um vínculo nem sempre racionalmente compreensível… De muitas formas, Mãe Só Há Uma é distintamente similar a Que Horas Ela Volta?, mas da forma como duas obras de um mesmo cineasta sempre serão similares. Explorar temas e idiossincrasias (no melhor sentido) de Muylaert, no entanto, não significa que Mãe Só Há Uma não é um filme também muito distinto de seu predecessor. No final das contas, a história de Pierre é muito mais uma história sobre o sequestro (e descoberta) de identidade que seu protagonista sofre ao descobrir o crime da mãe, do que sobre o sequestro de um recém-nascido.

A fascinação do roteiro de Muylaert com essa construção de identidade pela qual Pierre passa poderia soar como voyeurismo barato nas mãos de outra cineasta, mas a paulistana se alia a sempre competentíssima diretora de fotografia Barbara Alvarez para criar um filme que mergulha nas profundidades desse período conturbado da adolescência sem cair em chavões ou gratuidades. A ideia é retratar uma juventude que experimenta e explora para além dos limites arbitrários definidos por uma geração anterior a deles, que mistura significações de gênero e não se prende em uma sexualidade restrita a dois polos opostos, e nem por isso é confusa ou rebelde. No contraste entre os personagens de Naomi Nero e Daniel Botelho (o talentoso ator mirim que interpreta o irmão biológico de Pierre, Joca) existe uma compreensão e uma diversidade que em muitos sentidos não é compreendida por quem os vê de fora.

Abusando dos close-ups e das tomadas de detalhes da casa e dos ambientes frequentados por Pierre e sua família, a diretora de fotografia cria uma sensação de proximidade e nunca nos deixa perder as expressões e sensações mais sutis do desenrolar da história. Mãe Só Há Uma é um filme mais sensitivo e sinestésico que Que Horas Ela Volta?, que tomava seu tempo para deixar o espectador ruminar e entender as muitas mensagens e sutilezas de sua trama e seus personagens. Com menos de 1h30, o novo filme de Muylaert é urgente, caloroso, até repentino – e a cineasta sabe disso, e sabe como fazê-lo funcionar. A complexidade e excelência desse trabalho confirma a paulistana como um dos grandes nomes do cinema nacional moderno.

Se Regina Casé era o corpo e alma de Que Horas Ela Volta?, apoiada por uma Camila Márdila excepcional, em Mãe Só Há Uma vemos uma Daniela Nefussi gigantesca em tela, ganhando a atenção e a sensibilidade do espectador em uma atuação dupla (ela faz ambas as “mães” do protagonista, a sequestradora e a biológica) que impressiona tanto pela distinção das duas personagens quanto pela tremenda sensibilidade que demonstra ao retratá-las. Nero estreia com uma performance claramente esforçada, mas que não encontra todas as entrelinhas da jornada de Pierre – não é uma estreia estelar, mas mostra a promessa de um ator disposto a aprender com a experiência. Em papeis menores, atores como Matheus Nachtergaele e Luciana Paes abrilhantam as beiradas desse testemunho de humanidade com personagens coloridos e intensos.

Com um discurso cheio de camadas e um respeito pela identidade construída por Pierre e por seus arredores que ultrapassa a óbvia curiosidade de Muylaert sobre as experimentações de gênero do personagem, Mãe Só Há Uma é muito mais uma pérola independente do que Que Horas Ela Volta?, que se inseriu em uma discussão política e social muito maior, afetou um público mais amplo e teve impacto cultural naturalmente mais intenso. Não por isso ele é menos importante, no entanto, ou menos fascinante – em seu retrato honesto de um (des)encontro de gerações, Mãe Só Há Uma confirma um dos talentos mais delicados e espetaculares do nosso cinema, e encontra formas inteligentes de trazer para o cinema experiências e questões que raramente são vistas nele.

✰✰✰✰ (4/5)

mãe só há uma 2

Mãe Só Há Uma (Brasil, 2016)
Direção e roteiro: Anna Muylaert
Elenco: Naomi Nero, Daniel Botelho, Daniela Nefussi, Matheus Nachtergaele, Laís Dias, Luciana Paes, Helena Albergaria
82 minutos