Review: Dirty Computer (álbum e filme)

Janelle Monáe cria a obra de arte do ano com um álbum visual espetacular - e que desafia descrições.

Os 15 melhores álbuns de 2017

Drake, Lorde e Goldfrapp são apenas três dos artistas que chegaram arrasando na nossa lista.

Review: Me Chame Pelo Seu Nome

Luca Guadagnino cria o filme mais sensual (e importante) do ano.

Review: Lady Bird: A Hora de Voar

Mais uma obra-prima da roteirista mais talentosa da nossa década.

Review: Liga da Justiça

É verdade: o novo filme da DC seria melhor se não tivesse uma Warner (e um Joss Whedon) no caminho.

29 de out. de 2010

Galeria – Pop rock contemporâneo

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Maroon 5

A foto: Recorte da capa de Hands All Over, terceiro e mais recente álbum dos californianos, desde já presença garantida em muitas listas de melhores do ano por aí. A má notícia: pode ser uma das últimas gravações de estúdio do grupo, de acordo com o próprio vocalista, Adam Levine.

A história: Quatro rapazes de Los Angeles montam uma banda de garagem em meados dos anos 1990, e lançam um álbum independente sob o nome de Kara’s Flowers. Em 2001, esses mesmos quatro rapazes se juntam a um guitarrista do outro lado do país e, um ano depois liberam, já como Maroon 5, a bomba pop intitulada Songs About Jane. Inspirado em Stevie Wonder, mas com elementos inéditos até então, o disco fez de “This Love”, “Sunday Morning” e “She Will Be Loved” hinos de toda uma geração que descobria a música nessa época. O estilo esganiçado do vocalista Adam Levine e as linhas de baixo e guitarra marcam a banda como uma das personalidades mais fortes a surgir na música contemporânea. 2,7 milhões de cópias vendidas e um baterista trocado depois, em 2007 eles retornaram com It Won’t Be Soon Before Long, que colocou Prince e Michael Jackson na mistura sem entornar o caldo e emplacou “Won’t Go Home Without You” e “Wake Up Call” na cabeça do público. Agora, segundo a própria banda, eles alcançam o auge em Hands All Over, que pode se tornar a penúltima gravação de estúdio do Maroon 5. Seria o fim de uma era, sem dúvida alguma.

Além dos hits: Do Songs About Jane vale destacar “Tangled” e “The Sun”, ambas composições-solo do vocalista Levine. It Won’t Be Soon Before Long, por sua vez, traz pérolas como “Little of Your Time” e “Kiwi”. Já em Hands All Over a lista é imensa. “Stutter” e “Don’t Know Nothing” são provavelmente as melhores, mas quer mesmo uma dica? Ouça o álbum inteiro.

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OneRepublic

A foto: Com o produtor/rapper Timbaland, em foto promocional para o remix de “Apologize”, até hoje o maior sucesso da banda de Ryan Tedder. O mais renomado produtor americano hoje incluiu a canção do grupo, quase intocada, no seu album Shock Value, fazendo dela um sucesso global.

A história: Tedder é figurinha marcada no jogo da indústria musical ianque. Desde 2002 (quatro anos antes da banda conseguir destaque no MySpace e assinar para lançar Dreaming Out Loud) o americano de Oklahoma viajava ao lado de Timbaland, aprendendo as manhas da produção musical. Sua lista de composições gravadas por artistas de destaque é bem mais impressionante, inclusive, que a de hits do OneRepublic: inclua aí “Halo” (Beyoncé), “Already Gone” (Kelly Clarkson), “Battlefield” (Jordin Sparks), “Please Don’t Stop The Rain” (James Morrison) e “Bleeding Love” (Leona Lewis), entre muitas outras. Todas com sua assinatura inconfundível, a mesma que pode ser ouvida nos melhores momentos do One Republic (grafado oficialmente sem o espaço entre as palavras), uma banda auto-proclamada “sem gênero”, mas que tem muito de pop rock no DNA. Dreaming Out Loud veio em 2006 como fruto de grande sucesso no MySpace, colocando “Apologize” no topo das paradas com seu clima meio opressivo e lançando a empolgante “Stop and Stare” no rastro do sucesso da primeira. Waking Up, álbum ligeiramente mais conceitual, não teve tanta sorte com o primeiro (e brilhante) hit, “All The Right Moves”.

Além dos hits: Quase todo o setlist do Dreaming Out Loud merece algum destaque. Achados do nível de “Mercy”, “All Fall Down” e “Tyrant” são a rotina do OneRepublic, mas ganham pontos por serem absolutamente únicos no cenário musical. Irregular, do Waking Up vale destacar faixas como “Secrets” e “Marchin’ On”, singles menores que equilibram experimentalismo com faro pop.

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The Fray

A foto: Imagem promocional da banda em uma estação de metrô, a mesma usada para compor a capa do último álbum, auto-intitulado, de 2009. Apesar das críticas quanto ao estilo burocrático de escrita e execução da banda, o The Fray continua vendendo feito água em terras americanas.

A história: Como a maioria das bandas americanas, tudo começou com os colegas de escola Isaac Slade e Joe King, de Denver, juntando-se em 2002 para formar uma banda com colegas e membros da família sortidos e lançando um EP (Extended Play, gravação com poucas músicas que serve de cartão de visitas para a maioria das bandas). Foi no segundo destes, intitulado The Reason, que o The Fray começou a ganhar destaque no cenário local, com a canção “Over My Head (Cable Car)” ganhando um artigo de destaque na publicação alternativa Westword. Daí para os estúdios dos grandes selos foi um pulo, e “Over My Head” estava entre as faixas de How to Save a Life, de 2006, gravado após a descoberta da banda pelo produtor Mike Flynn. Foi com a canção-título, segundo single do álbum, que a banda ganhou projeção internacional, inclusive com a entrada da música nas trilhas das séries de TV Grey’s Anatomy e Scrubs, no mesmo ano. Três anos depois, eles nos vem com The Fray, auto-intitulado, todo baseado na mesma linha piano-rock do álbum anterior, uma coleção de canções pesadas e emocionantes como apenas eles sabem fazer. “Heartless”, cover de Kanye West, e o single “You Found Me”, são grandes sucessos em terras americanas.

Além dos hits: “She Is” abre o How to Save a Life com uma vibe interessante, repentina, mas os grandes destaques do disco são as lentas e opressivas “Heaven Forbid” e “Hundred”, dona de linha de piano maravilhosa. O álbum auto-intitulado oferece um som mais estufado, com destaque para a intensidade de “Syndicate” e “Absolute”.

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Carolina Liar

A foto: Os seis rapazes do Carolina Liar fazem pose “criativa” de boy band moderna, e não ficam muito longe dessa denominação. A diferença: dessa vez o som é mais pesado, com mais significado e mais qualidade. Cortesia de instrumentistas suecos e do produtor Max Martin.

A história: Aqui a figura chave não é o vocalista, nem nenum dos membros da própria banda, e sim o produtor. Max Martin, como é conhecido no show business, é o homem que trouxe todos os hits do Backstreet Boys, ‘NSYNC e Britney Spears dos anos 1990, e que hoje trabalha ao lado de Pink e Kelly Clarkson em algumas de suas mais conhecidas gravações. Especialista em boy bands que é, Martin pescou um vocalista da cena underground de Los Angeles, juntou com cinco músicos suecos contratados e lançou Coming to Terms, o protótipo de como deve ser um sucesso mundial contemporâneo. Deu certo com “Show Me What I’m Looking For”, o maior single do álbum de estreia da banda, mas observar suas gravações é perceber o quanto o gosto e as exigências de quem ouve música mudaram nos últimos dez anos. O Carolina é bem mais denso, musicalmente, do que seus colegas dos anos 1990, com guitarras mais pesadas e levadas mais empolgantes ao invés do pop-eletrônico sem personalidade da década passada. É esperar que, nos próximos álbuns, a banda decole de vez e emplaque hit atrás de hit, como parece ter nascido para fazer. Por enquanto, é peça menor nesse jogo.

Além dos hits: O Coming To Terms é um disco surpreendentemente uniforme e confiável, tanto no sentido em que segue um mesmo estilo em todas as suas 12 faixas quanto naquele que implica uma consistência qualitativa apurada. Além do single, vale destacar “I’m Not Over”, “Last Night” e “Simple Life”.

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Lady Antebellum

A foto: Vestidos de roqueiros, abraçadinhos, eles quase convencem. Mas não é capa de Need You Now, o segundo e mais votado disco da carreira da Lady Antebellum, que vai fazê-los negar as raízes francamente countries. Para a nova geração, é claro, mas com cheirinho de som velho.

A história: Sim, eles vieram de Nashville. A terra do country americano produz pequenos astros todos os anos por lá, mas poucos chegam ao segundo disco fazendo de uma canção calorosamente romântica um hit internacional e colocando a balada country de volta a voga mundo afora. “Need You Now” é o nome da música e do segundo álbum desse trio que reúne um duo de vocais com o linear Charles Kelsey e a desenvolta Hillary Scott, já com ares de nova diva ianque. Terceiro elemento da mistura, Dave Heywood faz backing vocals, toca guitarra, piano e mandolin. Nessa formação, a banda conseguiu destaque ao trabalhar ao lado do renomado Jim Brickman, artista de new age pouco conhecido por aqui, mas dono de um programa de rádio em terras americanas, na canção “Never Alone”. Logo em seguida, o primeiro álbum, auto-intitulado Lady Antebellum, fez bastante sucesso, ainda que o single-maior, “Love Don’t Live Here”, tenha feito pouco barulho internacionalmente. É com Need You Now que, ‘domados’ em um som mais pop, que o country do Lady Antebellum pode alçar vôos maiores. E pode apostar que vai.

Além dos hits: Do primeiro álbum é difícil destacar alguma coisa do som uniforme e country por tradição que a banda fazia. “I Run to You” e “Can’t Take My Eyes Off You” tem seus momentos de brilhantismo, no entanto. Need You Now deixa sobressair canções mais sofisticadas, como “When You Got a Good Thing”, “Stars Tonight” e “Hello World”.

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Sober é uma canção sombria, uma canção triste. E é sobre as vozes que escolhemos, e eu tinha essa ideia na minha cabeça de ‘Como eu me sinto tão bem, se estou sóbria?’… Eu não sei, é apenas uma canção realmente, realmente pessoal, e muito bonita. É uma das minhas favoritas”

(Alecia Beth Moore, a P!nk, acerca de “Sober”, single do álbum Funhouse)

Por sorte, eu tive uma mãe e um pai que me ajudaram a crescer confortável comigo mesma. Eu tenho uma figura curvilínea, e os garotos gostam disso. E cantar não é sobre o melhor visual ou ser a mais bonita. Eu faço isso porque amo fazer isso. Veja, ninguém mais tem meu traseiro. Ningué tem meus olhos. Ninguém tem meu nariz. É tudo meu. E é isso que me faz diferente de todo mundo”

(Kelly Clarkson responde aos repórteres que a chamam de “big girl”)

25 de out. de 2010

Michael Moore, armas e o sonho americano

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20 de Abril de 1999, uma cidadezinha no coração do estado americano do Colorado, assistiu a um dos mais famosos massacres escolares da história dos Estados Unidos da América. Na Columbine High School, dois alunos do último ano, Eric Harris e Dylan Klebold, invadiram a escola munidos de quatro tipos de armas diferentes e mataram 12 estudantes, mais um professor, tirando as próprias vidas logo depois. Pronto, está aí o básico de fatos que você precisa saber para entender Tiros em Columbine, o documentário que o sempre incendiário Michael Moore montou em cima do massacre três anos depois, em 2002. Documentário apenas tecnicamente, por nao se apoiar em uma narrativa de ficção nem abandonar a linguagem cinematográfica, que fique bem claro, porque Columbine, o filme, é muito mais um discurso em busca de provar um ponto do que uma obra do cinema-verdade. Moore sobe no palanque com uma tese engenhosa montada, e não resta dúvidas de que é capaz de tudo para prová-la.

Talvez daí venham todas as críticas feitas a veracidade das informações que Moore nos passa em Columbine (entre outras de suas peças polêmicas). Existe, inclusive, uma resposta destes críticos em forma de filme, o pouco-visto-mas-muito-discutido Michael Moore Hates America, que ataca essa investida específica do cineasta contestanto a autenticidade da chocante passagem em que Moore abre conta em um banco, na mesma cidade em que o massacre tomou parte, e ganha como prêmio, nessa “operação”, um rifle de caça, totalmente gratuito. Acontece que, de acordo com os funcionários do banco entrevistados pelo diretor de Michael Moore Hates America, a coisa não funciona bem assim: é preciso retirar um cupom, passar por todas as etapas legais e retirar a arma em um estabelecimento separado do banco. Especula-se até, no filme anti-Moore, que a cena do cineasta saindo do banco com rifle em punho foi feita com uma arma comprada anteriormente. Acontece que, independente da veracidade de tais e outras críticas, os fatos são os fatos. Moore não faz nada a não ser torná-los, mais, digamos assim, cinematográficos (e chocantes).

Portanto, para alguém que realiza mais um discurso político-sociológico que defende uma tese, Moore se mostra um cineasta ciente e conhecedor de sua linguagem. Mas nos atenhamos ao que ele nos mostra: procurando por causas do acontecido em Columbine, Moore se pergunta sobre a origem da violência, e especialmente uma violência tão concentrada e individualizada, em uma sociedade que se orgulha de ser a liderança-maior da civilização contemporânea. Primeiro, ele vira suas câmeras para os culpados pela mídia e pelos políticos em geral a época do acontecido. São os suspeitos usuais, enfim: filmes, games e músicas violentas, o passado violento da nação americana. Numa seqüência especialmente ilustrativa no sentido de desmentir esses suspeitos, Moore mostra, entrevistando civis na França e nos mostrando estatísticas impressionantes, que alguma coisa na América é diferente do resto do mundo.

No Japão, de onde vem a maioria dos games violentos que se acusou, a média de assassinatos por arma de fogo por ano é de 39. Na França, onde mais se assistem filmes americanos (aqueles violentos, inclusive) em toda a Europa, é de 255. Na Alemanha, o berço da do heavy metal gótico, e provavelmente a nação com história mais manchada por violência do mundo, chegamos ao número 381. Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, no entanto, a contagem é de 11.127 homicídios, via arma de fogo, anualmente. Pode ser que Moore manipule alguns fatos, mas não dá para negar números como esses. Alguém está fazendo alguma coisa errada na América. Ou não.

É aí que chegamos nos culpados para os quais Moore aponta seu dedo. Uma mídia que nos obriga a ter mais medo do que precisamos ter, cobrindo cada vez mais crimes mais violentos enquanto a própria taxa de assassinatos urbanos cai anualmente, em níveis notáveis, desde 2000. Empresas armamentistas que produzem a ritmo frenético para armar essa população assustada, que sempre é incentivado a consumir, para sua própria segurança, e de sua família. E, quando o consumo não é o bastante, internamente, é preciso escoar essa produção belicamente, para além das próprias fronteiras. Morre nos mostra isso em mais uma de suas set-pieces habilidosas, e no que talvez seja o momento mais claramente político do filme.

Entre 1953 e 2001, Moore explora algumas das mais graves contradições e falhas americanas, com consequências bélicas, ao som irônico de “What a Wonderful World”. Os fatos (e alguns rumores)começam a ficar quentes por volta da década de 1980, quando o governo forneceu, às claras, armas e treinamento para o grupo terrorista de Osama Bin Laden e, poucos anos depois, ainda deu total apoio estrutural a investida de Saddam Hussein contra o Irã. Na década seguinte, no entanto, quando Saddam voltou suas armas para o Kuwait ditatorial, os “Paladinos da liberdade”, então chefiados por George Bush pai, decidiram lutar contra o exército armado as suas próprias custas. Porquê? Moore não nos reponde, mas parece sugerir que a política externa americana, além de uma bagunça, é constantemente guiada por razões econômicas. Claro, a magia sempre vira contra o feiticeiro, e os mesmos terroristas treinados pelos americanos na década de 1980 embarcaram em três aviões que causaram o maior ataque terrorista da história, e você sabe muito bem do que eu estou falando.

O choque gravado pela câmera de Moore em uma filmagem amadora do ataque, no fim dessa mesmas montagem, chega a ser hipócrita. Estava tão obscura assim a razão de tudo isso? Talvez tão obscura quanto a razão para dois garotos criados numa cultura em que o medo alimenta a economia, em que o culto ao porte e uso de armas é absurdo, entrarem numa escola e, num momento de absoluto desespero, matarem 12 estudantes, e a si mesmos. Não é uma justificativa, não é isentá-los de culpa. Psique frágil ainda é um defeito, no final das contas. Mas talvez a culpa seja tanto dos influenciados quanto dos influenciadores. E é nessa virada que Columbine escapa das críticas e contestações para instigar um debate que pode, e deve, render muito.

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Os dois sub-produtos dessa tragédia foram a violência no entretenimento e o controle de armas. E quão perfeito que essas fossem as duas coisas que discutiríamos na eleição para presidente. E, além disso, nos nos esquecemos de Monica Lewinsky e esquecemos que, bem, o presidente estava jogando bombas do outro lado do oceano. Ainda assim, eu sou um cara mau, porque canto algumas músicas de rock n’ roll. E quem é maior influência, Marilyn Manson ou o presidente? Eu adoraria pensar que sou eu, mas eu vou ficar com o presidente”

(Marilyn Manson, entrevistado em “Tiros em Columbine”)

18 de out. de 2010

O que ela vê, por Vinicius “V” Cortez

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“Se eu abro bem os olhos”, ela diz, “ainda posso ver o rastro dos demônios ao meu redor”. Sua boca é um rasgo trêmulo de medo e repulsa, e eu não acredito nela. “À noite e de dia também, às vezes, às vezes eles vinham me buscar. E eu fugia”. O quarto é pequeno, o chão é cerâmico e as paredes, de cor branca: nenhum esconderijo para nada, nenhum canto escuro atravessado de teias de aranha. A sua roupa me deixa ver o eriçar de suas coxas, a cintura mal iluminada. “Eles queriam me pegar; eu achava que eles queriam me pegar; só não podiam: eu amarrava as pontas da colcha nas pernas da cama, para nenhum deles entrar”, e eu a imagino encolhida sobre o edredon, eu a imagino assustada pela brisa que podia se esgueirar cheia de dentes por entre as dobras da coberta, ou tremendo com o hálito carnívoro ressonando a chuva contra o vidro da janela.

“Eu vi um deles, uma vez. Eu acordei no meio da noite, olhei para baixo, e em cima do meu pé direito tinha uma coisa, um boneco como se fosse de pano, mas sem cabelo, sem olhos, sem roupa. Só o pano escuro, manchado, e os dentes mordiscando a cama”. Eu ainda não estou convencido, porque é madrugada e nada mordeu o meu calcanhar pendente para fora do lençol de solteiro. Mas então, num jogo de luz e escuro ou lembrança muito viva, por um instante a consternação do seu rosto vira um sorriso afiado, e os olhos transbordam uma fome ávida.

Passa rápido, como a sombra que faria um corpo cair. E logo é só ela de novo, só alguém sonolenta e cansada – já eu não sou, e não posso ser o mesmo.

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Jus gonna stand there, and whatch me burn?/ That’s alright because I like the way it hurts/ Just gonna stand there, and hear me cry?/ That’s alright because I love the way you lie/ Love the way you lie”

(Rihanna e Eminem em “Love The Way You Lie”)

13 de out. de 2010

Kris Allen – O Idol na mira das paradas contemporâneas

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*** (3,5/5)

Um fato: os americanos amam country music. Se o nosso pop rock é o das letras simples, balanços soul e baladas açucaradas com vocação para auto-ajuda, lá quem manda para definir o quanto de cultura pop há num som levado por guitarras é a influência do country. Assim, o que aqui embaixo soa como alternativo adulto (leia-se Train, The Script e Lady Antebellum) e raramente ganha impulsão comerical, por lá é simplesmente pop rock. É nesse nicho, por quase todo o disco, que o vencedor da oitava edição do American Idol (fonte de inspiração para o nosso Ídolos), Kris Allen, tenta se encaixar. O faz compondo baladas açucaradas também, misturando batidas levadas por guitarras acústicas e toques de piano, mas sem nunca deixar de fora a queda que os americanos ainda tem pelo country inusitado, de batidas quebradas e intervenções inesperadas, que ganhou nova exposição com o hit “Hey, Soul Sister”, do Train, referência direta para Alright With Me (Faixa 10). Enfim, Allen atira para todos os lados, e arrisca assim não acertar todos os alvos.

Raramente Allen empunha uma guitarra mais pesada, e quando o faz é para nos dar duas das mais interessantes faixas desse disco. Tanto Can’t Stay Way (Faixa 3), cujos créditos ele divide com dois nomes de peso entre os compositores americanos modernos, quanto Red Guitar (Faixa 7), sua única composição-solo no setlist do álbum, saem vitoriosas de uma mistura bem-pensada. No suíngue da primeira os mais atentos captarão influências do pop urbano do Maroon 5, mas não por muito tempo: a voz de Allen é poderosa o bastante para colocar a canção num contexto todo seu. Já a produção inflamada da primeira não apaga a interpretação mais pessoal do Idol nessa estreia, muito menos a letra esquenta-corações que não ousa, mas toca fundo o ouvinte.

A falta de ousadia, aliás, é o grande problema do álbum, como tem sido com quase todas os debuts dos vencedores do programa. Bring it Back (Faixa 6) é provavelmente o exemplo mais claro disso, uma balada romântica sem punch ou diferencial nenhum, que coloca um piano melódico para trabalhar mas sofre com uma interpretação artificial de Allen e acaba caindo no erro de ser rasa musical e liricamente. Por outro lado, quando resolve ser pop, Allen nos presenteira com Written All Over My Face (Faixa 5), uma mistura interessante e inusitada de instrumental sutil e eficiente e letra estruturada com esmero de quem sabe fazer um hit certeiro. A ponte para o refrão é algo que Katy Perry faria com um pé nas costas, enquanto o próprio refrão combina de forma estranha com a voz de Allen, em melhor forma do que nunca.

Outra canção que soa familiar é Is it Over (Faixa 8), que os mais ardorosos deve identificar nos primeiros acordes como uma colagem bem-feita das baladas glam do repertório menos votado de Lady Gaga. Mas há muito do folk de James Morrison na canção também, ainda que Allen escape fácil do formulaico com uma interpretação sensacional e a demonstração definitiva que não é preciso abdicar de uma produção sofisticada para soar visceral e empolgante como em um show ao vivo. The Truth (Faixa 4), composta e produzida pelo staff do Train, mostra uma pegada mais forte para as baladas de Allen, aproximando sutilmente seu som do rock de arena sem deixar de lado a sutileza de uma passagem da guitarra para o piano como instrumento que impulsiona a canção. Ainda assim, continua sendo uma experiência burocrática, como Let it Rain (Faixa 9) e a própria Live Like We’re Dying (Faixa 1), primeiro single do álbum e cover da banda The Script.

Para redimir-se dos pecados, o álbum fecha com uma dupla e tanto: I Need to Know (Faixa 12) é a balada mais corajosa e autêntica de Allen, dono de interpretação emocionada e emocionante. Aqui, o instrumental é quase todo baseado no piano-e-voz, e quando sai desse esquema é para os toques sutis de um violão ou a bela intervenção de cordas perto do final. É material pungente e tocante de verdade, independente de gêneros e rótulos. E arrisca ser a melhor faixa do álbum, se não fosse o viciante cover de Heartless (Faixa 13), de Kanye West, que Allen leva a um novo nível como cantor mais competente e músico inteligente. A produção é criativa e empolgante, e não ficam dúvidas que a versão nasceu para ser clássica. Uma pena que deixa um pouco da previsível lamentação: “Bem que o álbum todo podia ter sido assim…”. Na próxima, quem sabe.

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“…I won’t stop, won’t mess my groove up/ ‘Cause I already know show this thing go/ You run and tell your friends that you’re leaving me/ They say that they don’t see what you see in me/ You wait a couple months than you go see/ You’ll never find nobody better than me…

In the night I heart them tell/ Coldest stroty ever told/ Somewhere far along this road he lost his soul/ To a woman so heartless/ How could you be so heartless?” 

(Kris Allen em “Heartless”, de Kanye West)

8 de out. de 2010

Dez momentos inesqueciveis do cinema (parte 2)

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A primeira parte da minha investida por uma lista ousada e personalíssima, inteiramente sincera, de momentos que marcaram minha trajetória como cinéfilo e crítico de cinema aqui no Anagrama aventou filmes alternativos e poucos conhecidos do grande público, ao menos do atual que tende a se limitar aos blockbusters de verão. São todos grandes filmes que trazem momentos de catarse, humor, emoção ou genialidade visual únicos. Mas é aqui, agora, nessa segunda parte da lista, que o grosso do melhor que rolou em termos de cinema pelos olhos desse humilde escriba aparece, reafirmando certos casos de amor por filmes que o leitor mais antigo deve identificar e dando opotunidade a alguns dos meus grandes ídolos enfim aparecerem. Mas, acima de tudo, a intenção é mencionar a quem merece ser mencionado. De uma forma ou de outra, aqui vai a parte final da minha lista de momentos inesquecíveis do cinema.

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5º Lugar – Dreamgirls [2006] - “And I’m telling you I’m not going”

Ninguém esperava que, quando Jennifer Hudson abrisse a boca após ser deixada sozinha, com certa justiça, por suas colegas de banda e pelo empresário e grande amor de sua vida interpretado por Jamie Foxx, fosse sair uma das performances vocais e interpretativas que marcariam o nosso século. Pois foi isso que aconteceu, e a perdedora de uma edição do American Idol foi dali, do palco discretamente iluminado e filmado de forma documental por Bill Condon, para o bem mais luxuoso tapete vermelho do Oscar, onde Hudson venceu o prêmio de Melhor Coadjuvante. Só por formalidades técnicas, aliás, porque o filme é dela e não seria o mesmo sem ela. E essa cena é o momento maior do seu talento (até agora).

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4º Lugar – O Retorno do Rei [2003] – Curvem-se diante dos hobbits!

É, não foi impressão sua: O Retorno do Rei podia, sim, tem uma boa meia hora a menos, e foi o que todo mundo sentiu quando as raças da Terra Média se curvaram diante dos quatro little hobbits que surgem como heróis da história de Tolkien e dos filmes de Peter Jackson. A câmera se afasta, e a música enche a tela na mesma medida que sorrisos e lágrimas brilham nos rostos de todos os espectadores. Só esperar os créditos subirem? Bem, não exatamente. Jackson errou ao tentar resolver demais, mas isso não diminui o tamanho de sua realização ao adaptar os livros do inglês para os cinemas, muito menos o impacto dessa cena no imaginário e na emoção do espectador.

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3º Lugar – Blade Runner [1982] - “Lágrimas na chuva…”

Se, hoje, Blade Runner é o cult que é, a culpa é em boa parte desse momento marcante do cinema do século XX. É aqui que o andróide vilanesco de Rutger Hauer mostra sua face mais humana e desconcertante, uma que o próprio Rick Deckard de Harrison Ford jamais demonstrara na metragem do filme de Ridley Scott. Suas considerações sobre o tempo, a fugacidade da vida, a banalidade de sua própria artificialidade, tudo é condensado em apenas uma frase curta para tanto conteúdo, dita sob a chuva intensa e interpretada com a intensidade e concentração de um ator brilhante no seu auge. Filosofia pura, moldada por quem entende, mesmo, de cinema.

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2º Lugar – O Cavaleiro das Trevas [2008] – O interrogatório

O todo do filme de Christopher Nolan ainda é dos mais brilhantes que já passaram por meus olhos, mas a cena do interrogatório em que Coringa (Heath Ledger) e Batman (Christian Bale) enfrentam-se verbal e fisicamente é dos momentos mais “estoura-mentes” da história do cinema. A atuação de Ledger, brilhante, encontra seu ápice nessa cena tensa e intensa, que Nolan dirige com louvável equilíbrio e cujos diálogos soam as palavras certas, nos momentos certos, ditas com a entonação certa e filmadas da maneira certa. É a perfeição em celulóide, traduzida em violência, crueza, brilhantismo de roteiro e diálogos, excelência cinematográfica e choque.

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1º Lugar – Moulin Rouge! [2001] - “El Tango de Roxanne”

Não foi difícil, para mim, colocar essa cena no pódio. Difícil é escolher só um momento do filme de Baz Luhrmann para taxar como inesquecível. Há que prefira o pot-pourri romântico no topo do elefante, ou a primeira execução da canção dos amantes (“Come Waht May”, única composição original do filme). Eu fico com a versão que Jacek Koman canta para os ciúmes de Christian (Ewan McGregor) por Satine (Nicole Kidman) quando esta deve entregar-se ao Duque (Richard Roxburgh). A música, a direção de cortes secos, rápidos e intensos, a voz rascante de Koman, a interpretação sensível de Ewan McGregor e as belas palavras da letra convergem para um dos momentos mais fortes, sombrios e emocionantes do cinema moderno. Belíssimo, belíssimo.

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Eu vi coisas que vocês humanos provavelmente nem acreditariam. Naves de ataque em fogo fora do Cinturão de Orion. Eu observei raios-C brilhar pelo negrume perto do portão de Tannhauser. Todos esses momentos ficarão perdidos no tempo… como lágrimas na chuva… Hora de morrer”

(Rutger Hauer em “Blade Runner”)

Why does my heart cries? Feelings I can’t fight! You’re free to leave me, but just don’t deceive me, and please, believe me when I say I love you!”

(Ewan McGregor em “Moulin Rouge!”)

4 de out. de 2010

Dez momentos inesquecíveis do cinema (parte 1)

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Tanto na fase final do Filme-Pipoca quanto no começo desse nosso Anagrama, eu tentei engatar uma série de listas que selecionassem alguns dos meus preferidos quando o assunto era cinema. Eram as “listas da década”, feitas sob o pretexto do primeiro decênio desse século estar chegando ao final. Talvez o problema delas tenha sido mesmo a ambição. Ao começar essa nova seção de listas com a, de alguma forma, grandiosa pretensão de selecionar dez momentos inesquecíveis do cinema, não pretendo compilar o que há de melhor na sétima arte de todos os tempos, senão meramente demonstrar um pouco da minha forma de ver, receber e analisar o cinema. São dez cenas, seqüências, diálogos ou registros que fazem parte da minha memória afetiva e racional em relação ao cinema, e que de alguma forma acrescentaram alguma coisa na visão rica dessa forma de arte ainda mais complexa. Críticas, sugestões, exclusões, novas listas: tudo é bem-vindo. Mas a primeira parte da minha seleção, de uma forma ou de outra, é essa.

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10º Lugar – O Grande Truque [2006] - “Watch closely…”

Duas palavras. É do que Christian Bale, o Alfred Borden de O Grande Truque, precisa para disparar um gatilho de choque, revelações e pura genialidade de roteiro. A trama labiríntica apresentada por Christopher Nolan se revela aos poucos no clímax do filme de mágicos do diretor, que não se furta de sua fumaça e espelhos para revelar tanto o segredo de Borden quanto a grande, genial e trágica sacada de seu nêmesis, feito por Hugh Jackman. Ambas as revelações são cozinhas devagar para o espectador durante todo o filme, e explodem com pressão inesperada em uma sequência perfeita que engana direitinho qualquer um, e deixa com um sorriso no rosto qualquer apreciador de bom cinema.

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9º Lugar – J.C.V.D. [2008] - “Eu sei que é difícil para vocês não me julgarem…”

Pois é, não deveria ser. Julgar é o ato mais hediondo que um ser humano pode cometer, ainda mais contra alguém que, de crimes, está livre há muito tempo. Submetido a um mundo de pressão e muito dinheiro, Jean-Claude Van Damme errou, ele não nega em nenhum momento, envelheceu, ele não deixa de admitir a cada frame de J.C.V.D., mas também amadureceu e se tornou um ator de verdade. E um ser humano que não merece todos os altos e baixos que imprensa e fãs, egoístas e inescrupulosos, deram e dão a ele. Tudo isso transparece no que pode ser o monólogo mais tocante, pungente e bem-atuado da nossa década, uma explosão de sinceridade que atinge em cheio a nossa própria hipocrisia.

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8º Lugar – Equilibrium [2002] – Ouça a música…

Em um mundo sem emoção, para quê vivemos? É a pergunta incômoda que nos faz Equilibrium, a obra genial e ignorada por ser “uma cópia de Matrix”, de Kurt Wimmer. A bem da verdade, Matrix não é nada perto da história de John Preston (Christian Bale), policial de um futuro distópico que repreeende aqueles que demonstam emoções em público, ao mesmo tempo em que para de tomar os remédios que o garantem a condição de frieza e calculismo. É no meio desse comovente processo de humanização que ele entra em contato, quase sem querer, com a música clássica. Sua reação é tudo o que sentimos e não sentimos quando uma obra de arte nos comove. Bale segura as pontas com louvor, e nós (inevitavelmente) nos emocionamos com ele.

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7º lugar – Filadélfia [1993] - “Eu sou o amor!”

Andrew Beckett (Tom Hanks) é um jovem profissional, demitido de sua firma preconceituosa ao descobrir ser portador de HIV, que se junta ao advogado homofóbo feito por Denzel Washington para processar a tal firma. Até aí, nada demais, mas a condição de Andrew piora constantemente e, mesmo que o filme de Jonathan Demme “sanitarize” essa condição para o bem de um público maior, é no momento em que ele declama um trecho de ópera para o já amigo advogado que percebemos o quanto a condição humana daquele personagem é tão ou mais completa do que a nossa. Nós sentimos por ele e, mais adiante, comemoraremos com ele. Tom Hanks se mostra, em todos os sentidos, superlativo. A altura de seu personagem, diga-se de passagem.

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6º lugar – O Suspeito da Rua Arlington [1999] – Sermão no jardim

O inimigo pode estar mais perto do que você imagina: até no seu próprio jardim, se você não se cuidar. O Suspeito da Rua Arlington é um filme ardiloso ao acender a paranóia na mente de cada espectador e do protagonista Jeff Bridges, que suspeita que seu novo vizinho, Oliver Lang (Tim Robbins), possa ser um terrorista. Colocar em pratos limpos, sem revelar absolutamente nada, é o que o personagem de Robbins faz durante uma discussão quase banal com seu nêmesis, em pleno jardim da casa de Bridges. Apático como está no filme, o protagonista leva uma surra, ficcional e criticamente, de Robbins, numa aula de atuação e ameaça que fica na memória por muito tempo.

Continua no próximo post…

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Essa é minha aria favorita. É Maria Callas. ‘Andrea Chenier’. Ela é Madeleine. Ela está dizendo como durante a Revolução Francesa uma multidão colocou fogo em sua casa e sua mãe morreu… para salvá-la. ‘Veja, o lugar que me criou está queimando’. Você pode ouvir a dor na voz dela? Você pode sentir, Joe? Então vêm as cordas, e elas mudam tudo. A música se enche de esperança, e isso vai mudar de novo. Escute… escute… ‘Eu trago sofrimento a quem me ama’. Ah, aquele violoncelo! ‘Foi durante esse sofrimento que o amor veio até mim’. Uma voz tão cheia de harmonia. Ela diz, ‘Ainda viva, eu sou a vida. O paraíso está nos seus olhos. Tudo ao seu redor é só o sangue e a lama? Eu sou o divino. Eu sou o esquecimento. Eu sou o Deus… que vem dos céus, e faz da Terra um Paraíso. Eu sou o amor! Eu sou o amor!’”

(Tom Hanks em “Filadélfia”)

1 de out. de 2010

Voltaire, Felipe Neto, Diogo Mainardi e a liberdade de expressão

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“Não concordo com uma palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o direito que tens de dizê-las”

A frase democrática é atribuída ao filósofo francês Voltaire, talvez o mais interessante dos Iluministas parisienses a ser olhado sobre a ótica do nosso século XXI. Era defensor implacável dos direitos civis e da liberdade de religião e comércio, um artista polivalente com peças, poesias, novelas e ensaios publicados aos borbotões. O que tudo isso nos diz hoje, na era da Internet e dos 140 caracteres do Twitter? Que eu não me passe por pseudo-intelectual por aqui, aliás: Voltaire é apenas uma referência antiga que gravou na minha memória por algum motivo obscuro e que me serve bem para o que pretendo dizer por aqui. Pois bem, contemos uma historinha nesse ponto, então, para elucidar como tudo isso acabou surgindo na minha mente.

Viajando nos mesmos 140 caracteres do Twitter citados anteriormente (a propósito, sigam-me no @caiocoletti), me deparei com uma pequena lição de moral disparada pelo @felipeneto a alguns internautas truculentos que haviam comentado em um de seus vídeos que não faz parte do hoje famoso canal “Não Faz Sentido”, onde ele interpreta um personagem nervosinho que, apesar de fazê-lo de forma mal-educada (e divertida a beça, diga-se de passagem), diz muitas verdades e, no final das contas, representa uma opinião que deve ser respeitada. Quem não conhece o trabalho dele, precisa conhecer: além de engraçado e ator competente, o conteúdo de seus vídeos é muitas vezes inteligente e desafiador para quem consegue encarar a própria consciência depois.

O vídeo em questão, no entanto, é esse, e posso confessar por aqui que não me dei ao trabalho de vê-lo até agora. Mas acontece que, por mais absurdo que pudesse ser o conteúdo de mais essa pérola (e posso ter segurança em dizer, pelo que conheço do trabalho dele, que não deve ser nada tão extremado), nada justifica os comentários ignorantes que Felipe recebeu e continua recebendo em outras investidas suas na rede. Onde foi parar o respeito a opinião alheia, ao raciocínio desenvolvido e a visão de mundo do terceiro em um mundo onde, mais do que nunca, nossa interação com ways of life diferentes do nosso é forçada e empurrada pelo meio de comunicação absurdamente eficiente que é a Internet?

Ainda por esses dias, lendo uma matéria de uma VEJA meio antiga, que achei jogada pelos cantos, me deparei com a coluna do Diogo Mainardi, dizendo que no mundo da Internet muitas vozes falavam ao mesmo tempo, e nenhuma delas tinha real relevância. Fiquei me perguntando, apesar da estranha admiração que nutro pela forma intrincada de sua escrita: em que mundo esse homem vive? Enquanto ele pregava que a televisão era seu “Soma”, seu sedativo, eu me perguntava o quão certos estamos em tentar nos fazer ouvir em um espaço democrático por excelência, que deveria ser a Internet. Com ela, somos todos convidados a conhecer e saber do mundo que nos cerca. É impressão minha, ou o Sr. Mainardi, justo ele, está pregando que fiquemos impassivos, sem ação, diante de tudo isso?

A tendência a desqualificar a crescente junção de vozes surgidas da Internet nada mais é que uma forma de reprimir uma democracia cada vez mais plena de estilos, formas de vida, visões de mundo e opiniões. É nosso dever, o da geração-virtual que criou tudo isso do nada (porque da geração anterior só legamos os equipamentos – os meios – e não as ideias – os fins), mostrar que o que queremos, cada vez mais, é conhecer e respeitar tudo o que está a nossa volta, gostemos ou não. Gosto não se discute, diz a sabedoria popular, como disse Voltaire, implicitamente, naquela frase. Mas liberdade, por essa não só se debate, mas também se luta.

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Alguém aí vai votar no Tiririca? Se for me passa o telefone da sua mãe, por favor, preciso conversar com ela. Não é uma piada, é para mostrar que quem vai votar no Tiririca é um imbecil que não recebeu educação decente. Quando você votar no Tiririca, você vai estar votando em todos os outros do partido dele, isso é uma jogada, será que vocês não estudam? Enfim, é isso. Nada contra o artista Tiririca, que já me fez gargalhar muito, mas política não deveria ser palhaçada, é o nosso país. Fim.”

(Felipe Neto, em mais um ataque de verdades dolorosas, no Twitter)