Review: Dirty Computer (álbum e filme)

Janelle Monáe cria a obra de arte do ano com um álbum visual espetacular - e que desafia descrições.

Os 15 melhores álbuns de 2017

Drake, Lorde e Goldfrapp são apenas três dos artistas que chegaram arrasando na nossa lista.

Review: Me Chame Pelo Seu Nome

Luca Guadagnino cria o filme mais sensual (e importante) do ano.

Review: Lady Bird: A Hora de Voar

Mais uma obra-prima da roteirista mais talentosa da nossa década.

Review: Liga da Justiça

É verdade: o novo filme da DC seria melhor se não tivesse uma Warner (e um Joss Whedon) no caminho.

27 de jul. de 2015

Diário de filmes do mês: Julho/2015

Downloads31

por Caio Coletti

Nem todos os filmes merecem (ou pedem) uma análise complexa como a que fazemos com alguns dos lançamentos mais “quentes” ou filmes que descobrimos e nos surpreendem positivamente. Particularmente, eu não me dou a escrever críticas grandes de filmes que considero ruins ou irrelevantes, porque não vejo sentido em remoer demais os erros de uma produção cinematográfica. É levando em consideração a função da crítica e da resenha como uma orientação do público em relação ao que vai ser visto em determinado filme que eu resolvi criar essa coluna, que visa falar brevemente dos filmes que não ganharam review completo no site. Vamos lá:

home_ver10_xlg

Cada Um na Sua Casa (Home, EUA, 2015)
Direção: Tim Johnson
Roteiro: Tom J. Astle, Matt Ember, baseados no livro de Adam Rex
Elenco: Jim Parsons, Rihanna, Steve Martin, Jennifer Lopez, Matt Jones
94 minutos

É fácil dizer que a Dreamworks Animation está acomodada a uma fórmula – desde que redescobriu que o público é capaz de abraçar qualquer tipo de história desde que ela seja executada com a dose certa de sinceridade emocional, a empresa enfileirou sucessos fora das franquias que a fizeram famosa (Shrek e Madagascar). Para mais detalhes dessa guinada nos filmes da empresa, dá uma olhada nesse artigo, que publicamos no finalzinho do ano passado. Cada Um na Sua Casa não é tão diferente de Os Croods e Megamente, para citar alguns dos títulos recentes da Dreamworks, mas nem por isso deixa de ser uma aventura tão empolgante para as crianças quanto ressonante para os adultos, o que indica que, pelo menos por hora, a tal fórmula está funcionando. O diretor Tim Johnson, responsável por Os Sem-Floresta e Formiguinhaz, é um talentoso criador de visuais animados, e o roteiro de Tom J. Astle e Matt Ember pode até encontrar alguns obstáculos pelo caminho (demora, por exemplo, para a trama acertar no tom do humor), mas chega são e salvo até o final da jornada.

Tal e qual, inclusive, seus protagonistas: o alienígena Oh (Jim Parsons) e a humana Tip (Rihanna). Os dois se unem depois de uma invasão da raça Boov, a qual Oh pertence, na Terra – um outsider entre seus próprios semelhantes, Oh e condenado e caçado por cometer um erro fatal que pode trazer para o novo lar de sua espécie os inimigos mortais dos Boov. Tip, por sua vez, foi separada da mãe (Jennifer Lopez) durante a invasão, e deseja reencontrá-la. Os momentos mais bacanas de Cada Um na Sua Casa são aqueles que fazem do filme um quase-road movie protagonizado por uma dupla que não se afasta muito de todos os pares antagônicos que geralmente protagonizam as obras do gênero. Oh e Tip, especialmente na interpretação vivaz de seus dubladores, são dois personagens cativantes que carregam tranquilamente uma história honesta e tocante sobre coragem, amizade e diversidade. Não dá, sinceramente, para querer mais que isso.

✰✰✰✰ (4/5)

Jack-Reacher-PosterJack Reacher: O Último Tiro (Jack Reacher, EUA, 2012)
Direção: Christopher McQuarrie
Roteiro: Christopher McQuarrie, baseado no livro de Lee Child
Elenco: Tom Cruise, Rosamund Pike, Richard Jenkins, David Oyelowo, Wender Herzog, Jai Courtney, Robert Duvall
130 minutos

Jack Reacher, primeira adaptação para o cinema de uma série de 20 (!) livros assinados por Lee Child sobre um ex-detetive militar que se envolve em uma série de crimes e conspirações, tem uma primeira cena que pertence a um filme muito melhor do que ele. A silenciosa setpiece montada com personalidade pelo diretor e roteirista Christopher McQuarrie, que ganhou o Oscar pelo script de Os Suspeitos, segue primeiro um atirador (Jai Courtney) se preparando para cometer uma série de cinco assassinatos, escolhidos a dedo em um local público; e depois um detetive (David Oyelowo) juntando as pistas e provas desse mesmo crime para fazer a apreensão de um homem que, só o espectador sabe, na verdade é inocente. Além de tremendamente bem realizada, a sequência é uma forma concisa de nos apresentar a premissa do filme, que se desenrolará quase metodicamente (e de forma exponencialmente mal-planejada) nas duas horas seguintes, e é também um intrigante início para uma trama de suspense – um início que, talvez, até o mestre Alfred Hitchcock aprovaria. O problema é que logo em seguida entra em cena o personagem-título, interpretado por um Tom Cruise que, este que vos fala arrisca dizer, nunca esteve tão pouco carismático.

A culpa não é de todo dele, no entanto. Na série Missão: Impossível, o astro interpreta um agente ultra-competente não muito diferente do que encarna em Jack Reacher, mas ao menos os roteiristas tem a decência de trabalhar nos diálogos para que Ethan Hunt não soe tão condescendente quanto Reacher, telegrafado no filme como um bully misógino que nutre profundo desprezo pela humanidade e por qualquer coisa que não seja sua missão “justiceira”. Jack Reacher, o filme, não está interessado em construir um personagem, porque não apresenta essas falhas do seu protagonista como tais (o que seria aceitável) – prefere urdir com seu protagonista uma ode mal-idealizada às piores fantasias masculinas. É uma pena, de fato, porque a trama de Jack Reacher (e seu elenco coadjuvante, que inclui vários ótimos atores lutando contra as limitações do roteiro) poderia render algo bem mais substancial.

✰✰ (2/5)

hp1wlxVNs0ELn59keOoxnlBQysd

Hot Girls Wanted (EUA, 2015)
Direção: Jill Bauer, Ronna Gradus
Roteiro: Brittany Huckabee
84 minutos

Um dos pontos pivotais de Hot Girls Wanted, documentário produzido pela atriz Rashida Jones (Parks & Recreation) sobre a indústria da pornografia amadora, que estreou no Festival de Sundance e depois foi direto para o Netflix, acontece quando uma das principais personagens do filme entrega um intrigante monólogo sobre a forma como o trabalho no pornô não difere tanto do dia-a-dia de qualquer pessoa presa em um trabalho do qual precisa, mas que odeia com todas as forças. Frequentemente, na linguagem do documentário, a visão do diretor (e do roteirista) se impõe sobre uma história de tal forma que outros ângulos dela aparecem em apenas alguns momentos, quase como se tivessem sido deixados no filme sem querer. Em Hot Girls Wanted, esse “outro ângulo” é tão crucial e impositivo que se sobrepõe facilmente diante da mensagem que a dupla de diretoras Jill Bauer e Ronna Gradus (Sexy Baby) tentam passar nas bordas do material recolhido com suas personagens. Tome o começo do filme, por exemplo, que martela dados e imagens impressionantes no espectador a fim de nos convencer, e não muito sutilmente, de que a sociedade contemporânea passa por uma insensibilização sexual que, em grande parte, é culpa da cultura popular – e da relação direta dela com fenômenos como a pornografia online.

Bauer e Gradus podem até estar certas, e seria interessante ver que tipo de filme elas serias capazes de fazer concentradas nessa mensagem, mas o material recolhido das fontes de Hot Girls Wanted não conversa com o espectador sobre o que as diretoras pretendiam conversar. Pegando a dica daquele trechinho sobre as prisões do trabalho no sistema capitalista, a história dessas garotas pede para que o espectador entenda que tipo de necessidade empurrou cada uma delas para uma indústria que eventualmente se mostra tão incapaz de lhe conceder o que elas querem quanto qualquer outra. As frustrações da protagonista Tressa e de todas as outras personagens do filme não diferem muito daquelas que qualquer um enfrenta quando começa a encarar o mundo de frente – em busca de autonomia, liberdade e independência (através do dinheiro, mas também através da distância e da rebeldia), elas encontram um sistema explorador e degradante, que as destrói aos poucos. Hot Girls Wanted pode não provar o ponto que as suas criadoras pretendiam, mas ainda vale a pena ser visto.

✰✰✰✰ (3,5/5)

nina-simone-poster

What Happened, Miss Simone? (EUA, 2015)
Direção e roteiro: Liz Garbus
101 minutos

De forma muito semelhante à extraordinária artista que o inspira, o documentário What Happened, Miss Simone?, produzido pelo Netflix, é uma peça de cinema notavelmente raivosa. Ou quem sabe a melhor palavra para definí-lo seja ”enfurecido”, ou qualquer coisa que expresse o tipo de revolta justificada e recheada de empoderamento que é o combustível do trabalho da diretora/roteirista Liz Garbus (Love, Marilyn) ao trabalhar a vida da cantora e ativista dos diretos civis negros Nina Simone. A “High Priestess of Soul” (algo como “Alta Sacerdotisa do Soul”), como ela foi conhecida, morreu em 2007, mas é a força inspiradora por trás de cada uma das cantoras do gênero que vieram depois dela, especialmente das que tocam em questões sociais. Na época de Martin Luther King e Malcolm X, ela foi a artista que mais apaixonadamente se envolveu com a luta pelo fim da segregação racial nos EUA, e What Happened Miss Simone faz ao espectador um favor ao privilegiar o estudo de sua importância na época (e as consequências desse trabalho social na sua carreira, vida e psicologia) do que de seu duradouro impacto musical na música americana. A preferência é de fontes que contam a experiência de viver àquela época e a forma como Simone a encarou – uma cruzadora de barreiras desde a infância, a artista é apresentada como a porta-voz de um sentimento enraizado de revolta que explodiu de maneira tão desastrosa quanto essencial na época em que ela viveu.

No fim das contas, o filme de Garbus é bem-sucedido em nos mostrar que o mundo talvez não fosse o mesmo sem Nine Simone ter passado por ele, e não é esse o objetivo de qualquer documentário que pretende eternizar seu sujeito? Entrecortando trechos de falas da própria Simone, longas gravações de performances, partes do diário pessoal da cantora e entrevistas com pessoas como a filha Lisa, empresários e amigos, o filme é uma mistura de técnicas cinematográficas curiosa que, em alguns momentos, pode ficar um pouco confusa. O que importa em um documentário, no entanto, é força da história que ele tem para contar, e What Happened Miss Simone? é definitivamente uma peça poderosa de arte, tal e qual era sua musa inspiradora. Única, conflituosa e terrivelmente humana como todos nós, Nina Simone era a encarnação do ultraje de uma época, mas expressava sentimentos tão atemporais quanto sua voz e pessoa, eternizados em vídeo e áudio para a nossa e as próximas gerações.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

Parallels (2015)

Parallels (EUA, 2015)
Direção: Christopher Leone
Roteiro: Laura Harkom, Christopher Leone
Elenco: Mark Hapka, Jessica Rothe, Eric Jungmann, Constance Wu, Yorgo Constantine
83 minutos

Vamos direto ao ponto aqui: Parallels foi planejado para ser uma série de TV. O criador, diretor e roteirista Christopher Leone, que tem no currículo duas web-séries (Suit Up e Wolfpack of Reseda), expandiu os 40 e poucos minutos do episódio piloto original e vendeu o produto final para o Netflix, esperando que o público lhe desse notoriedade o bastante para que a Fox Digital Studios repensasse a decisão de dispensar a trama. Do jeito como está, com pouco menos de uma hora e meia, Parallels é um filme tremendamente frustrante – mas vale a pena lhe dar audiência com base na possibilidade de uma continuação no formato em que ele foi planejado para existir, porque Parallels daria uma série de TV bastante divertida. Só não entre nessa esperando respostas fáceis, porque o que você vai encontrar aqui é um monte de questões cujas resoluções ficam seguramente guardadas para qualquer futuro que essa história possa ter como cinema ou como TV. Com as expectativas devidamente ajustadas, essa trama sobre um grupo de pessoas tentando decifrar os segredos de um prédio misterioso que faz quem se encontra dentro dele “pular” entre universos e realidades paralelas pode ser uma das ficções científicas mais espertas e interessante dos últimos anos.

O elenco não é dos mais brilhantes, mas tampouco atrapalha o andamento do roteiro, esse sim o grande atrativo de Parallels. No texto de Christopher Leone, a premissa criativa do “filme” se transforma em um conto de ficção inspirado nos melhores autores da literatura do gênero e, ao mesmo tempo, ajustado perfeitamente ao formato televisivo. Num futuro possível para a trama, é fácil visualizar a forma como uma temporada inteira de Parallels se estruturaria, e é fácil também se empolgar com essa perspectiva. Pelo menos uma das personagens principais (Polly, interpretada pela Constance Wu) é tremendamente interessante, e os três protagonistas restantes são explorados de maneira esperta pelo roteiro, que deixa as grandes revelações da trama para o final do “filme”, à imagem e semelhança do melhor piloto de TV que vimos no nosso século (o de Lost, obviamente). Parallels vai te deixar torcendo pelo futuro dele, mas não é a experiência mais gratificante em termos de cinema.

✰✰✰ (3/5)

Synedoche

Sinédoque, Nova York (Synecdoche, New York, EUA, 2008)
Direção e roteiro: Charlie Kaufman
Elenco: Philip Seymour Hoffman, Samanta Morton, Michelle Williams, Catherine Keener, Emily Watson, Dianne Wiest, Jennifer Jason Leigh, Hope Davis, Tom Noonan
124 minutos

“Sinédoque” é a palavra em português para um tipo especial de figura de linguagem: quando usamos um termo que se refere a parte de um todo para representá-lo. Quando dizemos “o homem” para representar a espécie humana, por exemplo, fazemos uma sinédoque. De forma classicamente metalinguística que conversa com todas as obras anteriores do roteirista (e aqui diretor estreante) Charlie Kaufman, Sinédoque Nova York aplica esse conceito tanto para a jornada do personagem principal, um diretor de teatro que, depois de receber um prêmio especial, almeja montar uma peça “verdadeira” e desenvolve tamanha obsessão com isso que constrói uma réplica de uma parte de Nova York dentro de um armazém gigantesco (é mais complicado que isso, mas enfim); quanto para a jornada do próprio Kaufman, que usa a ambição do seu protagonista como espelho para a sua, e constrói uma história que mostra uma parcela tão pequena da experiência humana, a jornada de apenas uma pessoa em apenas uma fatia de sua vida, mas tem o objetivo de refletir sobre o todo da vida, suas reentrâncias e particularidades. Assim como o Caden Cotard magnificamente interpretado pelo saudoso Philip Seymour Hoffman (em performance sutil, densa e honesta como todas as suas eram), Kaufman chega a conclusão de que o mundo é grande demais para um escritor só abraçá-lo. Ele pode ser grande demais até para a espécie humana inteira abraçá-lo.

A brincadeira metafíssica/linguística de Kaufman acaba desaguando em uma meditação sobre as agruras da perda, da terrivelmente desesperadora “não-conclusão” das coisas da vida, da amarga falta de entendimento que temos delas, mesmo que achemos o contrário. O elenco é peça importante porque encarna o espírito da trama no sentido de entregar performances que estão o tempo todo conscientes de que são performances – seja no humor absurdista da personagem de Hope Davis, no exagero que Michelle Williams impõe ao seu retrato de uma persona clichê da estrela hollywoodiana, na naturalidade que Samantha Morton mostra frente aos pequenos desajustes do mundo criado por Kaufman (um dos mais inquietantes é a casa de sua personagem, que está perpetuamente pegando fogo). Como trabalho de um roteirista por excelência, Sinédoque é uma obra-prima imperfeita – um filme com uma grande história para contar, que a conta com alguns problemas técnicos pelo caminho. É um trabalho importante, no entanto, corajosamente pessimista e, mesmo assim, bastante belo. Ao reconhecer que todos estamos, essencialmente, atuando como nós mesmos pelo mundo, Kaufman chega ao auge de sua exploração metalinguística da realidade, e faz seu trabalho mais extraordinariamente tocante até hoje.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

wildlike-poster

Wildlike (EUA, 2014)
Direção e roteiro: Frank Hall Green
Elenco: Ella Purnell, Bruce Greenwood, Diane Farr, Nolan Gerard Funk, Brian Geraghty, Joshua Leonard, Ann Dowd
104 minutos

Os dois protagonistas de Wildlike, drama americano independente que está disponível no Netflix, são o que em inglês se chama de loner. A palavra “solitário” não faz bem jus ao termo, que expressa muito mais uma predisposição para o isolamento e a auto-reflexão do que um estado temporário ou forçado de solidão. Na lindíssima metáfora que o filme faz em certo momento, tanto Mackenzie (Ella Purnell) quanto Bart (Bruce Greenwood) são como pipas que escaparam das mãos daqueles que seguravam a outra ponta das suas linhas. A jovem Mackenzie perdeu o pai um ano antes do filme começar, e é deixada pela mãe mentalmente instável para morar com o tio (Brian Geraghty), o que mais tarde se prova ser uma péssima ideia. Obrigada a fugir da casa do anfitrião quando precisa encarar que morar com o tio pode significar um inferno de abusos sexuais, Mackenzie eventualmente topa com Bart, um viúvo que está fazendo sozinho a viagem que costumava fazer com a esposa falecida – o que incluí vários dias de isolamento acampando em um parque natural no Alaska. O diretor estreante Frank Hall Green tira bom proveito das belíssimas paisagens com as quais sua câmera se confronta, ilustrando com a ajuda da fotografia de Hillary Spera (Terror na Ilha) seu roteiro exemplarmente contido, que não desperdiça diálogos e tira o máximo até dos momentos silenciosos.

A sensibilidade particular de Wildlike não é para os espectadores mais inquietos. Um pouco como Boyhood, a obra-prima mal-compreendida que Richard Linklater lançou no ano passado, o filme tira de momentos aparentemente banais muito significado. O elenco pega essa deixa e entrega atuações sutis e inteligentes, que encontram os momentos certos para demonstrar as emoções de personagens que parecem verdadeiramente táteis, tremendamente compreensíveis. O veterano Greenwood, que esteve recentemente na franquia Star Trek, faz um trabalho que merece nota particular, trabalhando linguagem corporal e expressando o pesar de seu personagem pela ausência da esposa muito mais na forma como se relaciona com Mackenzie e os outros personagens do que em grandes discursos e epifanias, luxos que o roteiro não se permite. O mesmo vale para a jovem Purnell e para a pequena participação da grande Ann Dowd (Compliance), que faz em uma cena o que muitas atrizes não conseguem fazer em filmes inteiros – Wildlike, como seus atores, se esforça para ultrapassar os limites da tela e habitar o mundo real. Em grande parte, ele consegue.

✰✰✰✰ (3,5/5)

Wet_Hot_sm

Mais um Verão Americano (Wet Hot American Summer, EUA, 2001)
Direção: David Wain
Roteiro: Michael Showalter, David Wain
Elenco: Janeane Garofalo, David Hyde Pierce, Michael Showalter, Marguerite Moreau, Paul Rudd, Christopher Meloni, Molly Shannon, Ken Marino, Joe Lo Truglio, Amy Poehler, Bradley Cooper, Elizabeth Banks
97 minutos

É curioso como muitos filmes se tornam “obrigatórios” (o que quer que isso realmente signifique) por acaso. Digo isso porque, às vezes, é fácil prever que certos trabalhos vão se tornar marcos, seja pelo trabalho de determinados nomes (diretores, roteiristas, atores), pela importância do tema tratado ou pela circunstância do seu lançamento. Mais um Verão Americano não tinha nada disso a seu favor quando chegou nos cinemas, lá em 2001, e começou a angariar seu status de cult. Quatorze anos depois, o Netflix captou a mensagem dos fãs, comprou o filme e mandou produzir uma minissérie que traz mais aventuras (e desventuras) do grupo de personagens apresentado aqui. No melhor espírito da sátira escrita e dirigida por David Wain e Michael Showalter, os mesmos atores da história original vão retornar à pele de seus personagens, desconsiderando totalmente o envelhecimento de todos eles. Em suma, Wet Hot American Summer (a minissérie) vai ser uma prequel na qual os personagens vão parecer uma década e meia mais velhos do que no original – e o mais bacana é perceber que, em uma história como essa, a discrepância e incoerência é muito mais virtude do que defeito.

O filme acompanha um grupo de monitores de um acampamento de verão, um dos “ritos de passagem” mais tradicionais dos jovens americanos. O estilo quase em sketches do roteiro pode parecer familiar para qualquer um que já se deparou com os filmes da série Todo Mundo em Pânico, com a diferença de que Mais um Verão Americano não confia em referências de filmes específicos (e com data de validade) para funcionar. A comédia aqui vem do exagero no retrato dos estereótipos do personagem, do caráter absurdista de alguns plot points e formas de encenação (a cena em que Beth e Neil saem desesperados a procura de um outro monitor é especialmente marcante), mas também da visão nada cínica que os diretores lançam sobre suas criaturas. Ajuda ter um elenco composto de alguns veteranos (Janeane Garofalo, David Hyde Pierce, Christopher Meloni) perfeitamente sintonizados com o humor do filme e vários novatos (Paul Rudd, Molly Shannon, Joe Lo Truglio, Amy Poehler, Bradley Cooper, Elizabeth Banks) que se tornariam nomes reconhecidos nos anos seguintes. Honesta, de certa forma reverente e – mais importante – frequentemente hilária, a sátira de Mais um Verão Americano é uma pérola que valeu conservar.

✰✰✰✰ (4/5)

22 de jul. de 2015

Review: “Bates Motel” encontra sua zona de conforto no terceiro ano no ar

bates-motel-season-3-poster

por Caio Coletti

Bates Motel não sabia o que estava fazendo quando a primeira temporada estreou, lá em 2013. A série que vimos nos primeiros 10 episódios exibidos pela A&E não era um tomo sobre a lenta descendência de um garoto “comum” para o monstruoso Norman Bates que conhecemos de Psicose, clássico de 1960 de Alfred Hitchcock. Ao invés disso, era a mistura bizarra de elementos narrativos que incluíam a investigação sobre uma rede de prostituição; a relação nada saudável entre Norman e a mãe, Norma; e um suspensezinho de high school que passava longe de convencer. Era Carrie a Estranha com subtons psicossexuais, mas não era uma prequel de Psicose. A série consertou um pouco o seu rumo na segunda temporada, largamente ao descartar o lado escolar da trama e focar no que a produção tinha de melhor: as atuações de Vera Farmiga e Freddie Highmore. Com esse foco, o segundo ano contou uma história mais centrada e consciente do vespeiro em que estava mexendo – mas é só na terceira tentativa, nos 10 episódios exibidos no comecinho desse ano, que Bates Motel consegue se sentir completamente confortável consigo mesma.

Renovada para mais dois anos de vida no A&E, a série encontra nesse terceiro ano seu cerne temático, a matéria mais importante da qual pretende tratar. Mantendo a filosofia cruelmente determinista e freudiana do filme original (e de grande parte da obra de Hitchcock, inclusive), Bates Motel é uma história sobre as origens da maldade e da violência. O mundo desenhado pelos developers Carlton Cuse, Anthony Cipriano e, especialmente, pela muito presente Kerry Ehrin, é um mundo no qual as relações familiares nos moldam de forma irreparável – os roteiristas traçam um paralelo importante entre o instinto super-protetor, controlador e sufocante de Norma em relação ao filho e a própria infância trágica da personagem de Vera Farmiga. Seja na relação dela com o irmão (Kenny Johnson, simultaneamente histriônico e eficiente), com quem possui um histórico complicado ou na forma como os outros personagens gravitam ao seu redor, atraídos pela sua particular mistura de força e fragilidade, Norma é uma figura trágica.

Um dos melhores momentos de Farmiga na temporada é silencioso: sentada na mesa de jantar de sua casa, Norma ouve dos dois filhos que o irmão está de volta à cidade, e que ambos acham que ela deveria retomar contato com ele e “deixar o passado para trás”, ou ao menos permitir que ele lhe peça perdão pelo abuso que perpetrou a ela na adolescência. Bates Motel nem sempre lida com a questão do empoderamento feminino tão bem, especialmente quando se perde em meio às complicações da personalidade de Norma, mas há algo de tão básico no ultraje e na decepção que ela sente ao ouvir essa proposta dos filhos que é completamente compreensível e, nas mãos de Farmiga, um momento tremendamente emocional. Celebrada desde o início da série por sua performance, a impressão que fica é que a atriz lentamente puxou Bates Motel para o território em que ela estava trabalhando, mostrando praticamente sozinha para os escritores o que funcionava em relação a história que eles deveriam contar, e sobre o quê ela deveria discursar. Isso não é tão raro na TV (Michael Emerson fez quase a mesma coisa na segunda metade de Lost), mas é sempre um atestado quanto ao talento do ator.

Por outro lado, a série pouco funcionaria se o retrato de Norman Bates não fosse tão acertado. De forma semelhante à qual Mad Mikkelsen construiu um Hannibal Lecter sutilmente diferente (e igualmente marcante) para si em Hannibal, Freddie Highmore pega as dicas do roteiro e da atuação de Anthony Perkins no filme original para acertar o tom da série em que está inserido e compor um Norman absolutamente particular. Nas mãos do ex-ator mirim, Norman é um assassino dotado de consciência (pelo menos por enquanto), um jovem que luta contra seus impulsos psicológicos numa versão hiperbólica do processo pelo qual todos nós passamos na adolescência. A descoberta da sexualidade para Norman dialoga com a relação sufocante que leva com a mãe, e em muitos momentos Highmore acerta ao agir, especialmente quando os dois estão em cena juntos, quase como uma extensão da atuação de Farmiga como Norma. Há algo de complementar na dupla principal de Bates Motel, e é isso que essencialmente faz a série funcionar – mesmo que a “trama criminal” da temporada ainda seja basicamente uma colcha de retalhos costurada para se integrar à narrativa maior da série.

A terceira temporada de Bates Motel, enfim, não passa incólume pelos 10 episódios, mas encontra um centro muito claro e a zona de conforto na qual pode brincar com os personagens e atuações (além de Farmiga e Highmore, os coadjuvantes Max Thierot, Olivia Cooke e Nestor Carbonell entregam interpretações extremamente valiosas para o todo da série) à vontade sem perder o controle da história que quer contar. Cada vez mais próxima do material que a inspirou, a série do A&E promete pelo menos mais duas temporadas da mistura muito particular de gêneros e mensagens que ela se tornou – mesmo no cenário televisivo inundado de boas produções, essa é uma que vale a pena conferir.

✰✰✰✰ (4/5)

bates

Bates Motel – 3ª temporada (EUA, 2015)
Direção: Tucker Gates, Tim Southam, Christopher Nelson, Nestor Carbonell, Phil Abraham, Ed Bianchi, Roxann Dawson
Roteiro: Carlton Cuse, Kerry Ehrin, Steve Kornacki, Alysson Evans, Erica Lipez, Scott Kosar, Philip Buiser, Bill Balas, Torrey Speer
Elenco: Freddie Highmore, Vera Farmiga, Max Thierot, Olivia Cooke, Kenny Johnson, Nestor Carbonell, Nicola Peltz, Kevin Rahm, Andrew Howard, Anina Noni Rose, Ryan Hurst, Joshua Leonard, Keenan Tracey
10 episódios

17 de jul. de 2015

Review: “Advantageous” e o poder renovador da ficção científica

adva

por Caio Coletti

Eu não sei exatamente qual foi o meu primeiro contato com uma obra do gênero que convencionamos chamar ficção científica – existem tantas ramificações e maneiras de posicionar uma história de ficção hoje em dia que fica difícil acompanhar todas elas. Há um momento que eu posso apontar com certeza, no entanto, como àquele no qual eu me apaixonei de verdade pelas histórias “impossíveis” e “fantasiosas”: foi quando abri pela primeira vez O Viajante do Tempo, um livro de contos assinado por Ray Bradbury. Eu não devia ter mais do que 13 ou 14 anos, mas em meio àquelas páginas envelhecidas pelo tempo encontrei pela primeira vez a identificação do que significava escrever ficção – do ato de criar algo extremamente pessoal que, mesmo assim, ressoe com tanta gente; do esforço para refletir, através de fantasias, a realidade. Embora muitos associem a ficção científica ao espaço sideral, ela é muito mais um espelho do que jamais será um telescópio: uma ferramenta para olharmos para nós mesmos, e não para as estrelas.

Hoje em dia, ficção científica é um rótulo um pouco vazio em Hollywood. Filmes com uma pletora de virtudes, como o criativo e divertido No Limite do Amanhã, usam essa etiqueta classificatória por tratar de aliens, do futuro ou de tecnologias inexistentes na nossa realidade. Espetáculos do cinemão americano, nem todos tão bacanas quanto o já citado star-vehicle do Tom Cruise, montam uma sequência impressionante de cenas de ação em cima de uma premissa vagamente fantasiosa, e chamam isso de ficção científica. A verdade, no entanto, é que não é bem assim: ficção científica de verdade implica um pensamento mais elaborado, e isso não significa que todos os filmes do gênero precisem ser dramas arrastados e verborrágicos – o que eles precisam ser é uma reflexão precisa sobre a natureza humana, e que aspectos dela podem ser mudados e sublinhados pelo que existe de diferente no mundo criado pelo escritor. Nos últimos anos, poucos filmes fora do circuito alternativo tem acertado nesse tom (o subestimado Transcendence, estrelado pelo Johnny Depp, é um), e Advantageous é mais um exemplo de que o cinema independente americano continua anos-luz à frente de Hollywood.

O efeito do filme de Jennifer Phang (Half-Life), apenas em seu terceiro longa-metragem, é de restauração da fé no poder da narrativa, e também da narrativa cinematográfica em especial. O roteiro assinado pela diretora e pela também protagonista Jacqueline Kim é uma meditação melancólica e ascética sobre a natureza da maternidade, do amadurecimento e do envelhecimento, e é tremendamente inteligente ao usar os elementos de ficção científica ao seu favor para passar essa mensagem. A trama acompanha Gwen (Kim), uma mãe solteira que por anos foi o rosto das propagandas de uma organização científica duvidosa cujo novo produto é um procedimento cirúrgico em que a consciência de seus clientes é transferida de um corpo envelhecido para um mais novo. A fim de manter seu emprego e continuar provendo para a filha em um mundo onde o mercado de trabalho, especialmente para as mulheres, é escasso, Gwen aceita se submeter ela mesma ao procedimento, se tornando a jovem interpretada por Freya Adams (The Blacklist)  – não é preciso dizer que nada sai exatamente como o esperado.

Advantageous, de certas formas, é uma fábula feminista, colocando uma protagonista forte e determinada em um mundo em que as mulheres são pressionadas a retornar para a ocupação de donas-de-casa, e deixar que os homens provenham para a família. Gwen não só não tem essa opção como sente algum orgulho de sua independência – Jacqueline Kim faz um trabalho excepcional ao demonstrar esse sentimento particular quando Gwen é obrigada a retomar contato com sua irmã e o cunhado (Jennifer Ikeda e o comediante Ken Jeong, que entrega uma atuação agradavelmente contida e expressiva aqui) como último recurso de suporte financeiro a fim de “escapar” da tal operação. Nas cenas que divide com sua filha na história, Kim mostra ainda mais competência e conexão com a história – como co-roteirista, a atriz entende a personagem e coloca, sem dúvida, muito de si nela. Carismática, ela ainda passa por cima do tom insípido do filme para dialogar o tempo todo com o espectador e fazê-lo se identificar com a postura desafiadora da personagem frente a sociedade em ruínas (disfarçadas) ao seu redor.

Silencioso, tremendamente sensível e com um leque de temas tão amplo quanto bem-trabalhado, Advantageous é um drama sobre as dores do tempo, e desenha uma conexão irremediavelmente bela entre a evolução do mundo futurista e pessimista ao seu redor com a trajetória de vida de seus próprios personagens. É uma história triste e dona de uma beleza terrível (no melhor sentido da palavra), um filme que usa as ferramentas da ficção científica para realçar o comportamento humano e nos mostrar a tragédia e a alegria contidas nele. É ficção científica de verdade, e cinema de primeira qualidade. Nos faz realizar nossa humanidade mais plenamente, ao encarar o nosso futuro, refletindo as características imutáveis que existem em cada um de nós. Em suma: Advantageous é uma das melhores coisas que este que vos fala viu em 2015.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

15301-2-1100

Advantageous (EUA, 2015)
Direção: Jennifer Phang
Roteiro: Jacqueline Kim, Jennifer Phang
Elenco: Jacqueline Kim, James Urbaniak, Freya Adams, Ken Jeong, Jennifer Ehle, Samantha Kim, Jennifer Ikeda
90 minutos

13 de jul. de 2015

Review: “Mad Max: Estrada da Fúria” é uma subversão de tudo que o blockbuster representa

10636937_661847177254140_3001186770164503894_o

por Caio Coletti

Nós já tivemos mais que a nossa cota de super-heróis no cinemão americano desde o começo do século XXI. De X-Men para cá, pelo menos uma vez por ano os multiplexes ao redor do mundo são invadidos por seres de poderes extraordinários, seja por qual razão for – aranhas radioativas, genes modificados, uma tonelada de dinheiro e uma obsessão por morcegos. Em 2015, no entanto, ficou claro que as adaptações de quadrinhos e histórias derivadas foram se tornando um hábito de consumo muito mais do que uma obsessão do público, e o filme que chegou para roubar esse lugar no coração dos espectadores não poderia ser melhor do que Mad Max: Estrada da Fúria. É de conhecimento público que a obra de George Miller é um reboot da trilogia original protagonizada por Mel Gibson entre 1979 em 1985, mas só quem viu o filme é capaz de testemunhar o quanto ele vai muito além disso. Mad Max: Estrada da Fúria é, em muitos sentidos, o anti-blockbuster-do-século-XXI, e como tal tem em seu centro um tipo diferente de protagonista. Imperator Furiosa (Charlize Theron) não é uma super-heroína pelo que tem de excepcional, mas justamente pelo que tem de humano.

Antes de qualquer coisa, no entanto, vamos tirar o elefante branco do caminho: um dos motivos pelos quais Furiosa é tão diferente de todos os outros heróis que estamos acostumados a ver no centro das histórias de Hollywood está no fato de que ela é uma mulher. Isso é muito mais um crédito para a forma como Estrada da Fúria constrói seu mundo e seus personagens do que qualquer outra coisa, porque no universo pós-apocalíptico recriado por George Miller e pelos roteiristas Breandan McCarthy e Nick Lathouris (ambos estreantes), as mulheres são as portadoras de uma esperança e de uma determinação que vai além da sobrevivência,  à qual os homens parecem irremediavelmente presos. Cada um dos personagens masculinos do roteiro responde a um comportamento feral, que não conhece passado e não reconhece nenhum futuro. Nux (Nicholas Hoult) e seus colegas warboys vivem uma meia-vida lutando e, no final, se sacrificam pela promessa de uma eternidade no paraíso; o vilão Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne) quer um filho sadio e reafirma sua “propriedade” sobre todas as coisas e pessoas na Cidadela, mas sua sede por poder parece muito mais instintiva, como a de um leão sádico e feroz, do que racional.

Quando o filme começa, nosso ostensivo protagonista Max (Tom Hardy) não está muito longe disso. Ele é “aquele que foge dos mortos e também dos vivos”, aquele que diz que “a esperança é um erro” e uma série de outros bordões cunhados para sublinhar o estado de completo desolamento do mundo futurista de Miller e companhia. Max é um símbolo muito mais que um personagem, e é largamente pelos esforços nobres de Hardy que ele se torna mais que isso – o ator empresa à Max um olhar curioso e uma gama de sentimentos que precisa ser expressada silenciosamente, porque não está nos diálogos do roteiro. Hardy desenha o arco de personagem de Max, espertamente, junto à jornada da trama e ao tempo que ele passa ao lado de Furiosa, a verdadeira protagonista da história. A “road trip” que estrutura o filme, e que os dois fazem juntos pela maior parte do tempo, mostra que há algo na personagem de Theron que falta em cada um dos antagonistas e coadjuvantes: uma perspectiva para o futuro e a vontade de torná-lo possível. Furiosa desperta o que há de humano em Max, em Nux e nas esposas de Immortan, que rapta da prisão em que o vilão as deixava, e luta ferozmente tanto por si quanto por essa nova humanidade que descobriu neles. Num mundo em que a sobrevivência parece ser ó único instinto restante numa humanidade que matou o próprio planeta, não há nada mais heroico que isso.

Como toda boa ficção científica (o que o filme essencialmente é), é claro, Mad Max: Estrada da Fúria obviamente se mostra muito uma reflexão da nossa realidade. “Onde precisamos ir, nós que caminhamos nessa terra destruída, procurando pelos nossos melhores eus?”, proclama a epígrafe do filme, criada pelo diretor George Miller para fazer parte da mitologia do universo de Max e companhia. Estrada da Fúria nos pergunta o quanto somos parecidos com os títeres insanos que percorrem seus caminhos poeirentos, seja buscando a confirmação de nossa propriedade sobre coisas e outras pessoas, celebrando a violência ou vivendo uma vida medíocre em busca de uma salvação final. O quanto nos contentamos em sobreviver, não importa em que condições, ao invés de nos conectarmos com as pessoas ao nosso redor e buscarmos alguma espécie de esperança? O quão perto estamos de matar o nosso mundo, o quão longe estamos do egoísmo absoluto que mora dentro de um homem cujo único e verdadeiro instinto é a sobrevivência? Estrada da Fúria é um blockbuster, um filme de ação com questões importantes para fazer, e que não foge da responsabilidade de fazê-las.

O filme de Miller, inclusive, talvez seja um dos mais corajosos a saírem de Hollywood em muito, muito tempo. Existe um desafio inerente a cada aspecto e escolha envolvida nele, a começar pela opção pela fotografia intensa e constrastante do mestre Jon Seale (Oscar por O Paciente Inglês) – laranja e branco resplandecentes durante o dia, azul e preto severos durante a noite, com pequenas bolsas de luz e cor, e intenso preto-e-branco durante a tempestade de areia inacreditável pela qual nossos personagens passam em certo ponto do filme. Estrada da Fúria ousa fazer da cor e das (nem tantas) partes em CGI elementos artísticos que auxiliam na compreensão da obra – isso numa Hollywood que quer mastigar a informação visual para os seus espectadores e assaltá-los com a familiaridade de efeitos visuais sem nenhum estilo distintivo além da busca pela imitação perfeita da realidade. A trilha de Junkie XL (300: A Ascensão do Império) combina a intervenção pontual de cordas e orquestras com o uso de guitarras e tambores para as cenas de ação, o que só ajuda a sublinhar o quão absurdamente bem estruturados, planejados e executados são os momentos em que a adrenalina domina o filme. O diretor George Miller, para ajudar, trabalha com a editora Margaret Sixel (Happy Feet) e não se rende ao frenesi que domina a maioria dos blockbusters, construindo essas cenas com a serenidade e o olhar orgulhoso de quem supervisionou a construção de uma sequência cinematográfica perfeitamente coreografada e montada.

No centro de tudo isso, segurando o firmamento de um filme que não toma atalhos ou caminhos fáceis na hora de contar uma história e entregar algo de excelência notável para o espectador, está a atuação de Charlize Theron como a nossa aclamada heroína. Mais focada do que nunca, a oscarizada sul-africana se entrega a personagem física e mentalmente, trabalhando a linguagem corporal e os movimentos de Furiosa de forma a emprestar a ela não a constituição de uma heroína de ação, mas a agilidade e destreza de uma mulher acostumada a lutar. Ao mesmo tempo, a atriz carrega nos olhos e na expressão do rosto o cansaço e a compreensão de que cada uma dessas lutas que a formou pode ser essencialmente inútil no mundo em que ela vive. Há um pesar e uma resignação que Furiosa enterra por cima da determinação de ferro de quem não está disposta a apenas sobreviver – mas a forçar a sobrevivência de cada fiapo de humanidade que ela encontra em si e nos outros pelo caminho. Estrada da Fúria é uma verdadeira injeção de adrenalina que desafia a preguiça e a castração da criatividade que reinam em Hollywood, é o melhor filme de ação em anos, e é uma tremenda lição de storytelling. De fato, algo excepcional de se testemunhar.

✰✰✰✰✰ (5/5)

ap_film_review-mad_max__fury_road_72968740

Mad Max: Estrada da Fúria (Mad Max: Fury Road, Austrália/EUA, 2015)
Direção: George Miller
Roteiro: George Miller, Brendan McCarthy, Nick Lathouris
Elenco: Charlize Theron, Tom Hardy, Nicholas Hoult, Hugh Keays-Byrne, Josh Helman, Nathan Jones, Zoë Kravitz, Rosie Huntington-Whiteley, Riley Keough, Abbey Lee, Courtney Eaton
120 minutos

7 de jul. de 2015

Você precisa conhecer: a colisão do folk com o eletrônico na música do Handsome Ghost

© Meredith Truax

por Caio Coletti

Frequentemente, os melhores novos artistas são aqueles que emprestam um conceito com o qual o público e a crítica já estão acostumados e o fazem empolgante de novo. O Handsome Ghost, projeto do nova-iorquino Tim Noyes que ganhou proeminência nos últimos meses, definitivamente é um desses artistas: não é nenhuma novidade misturar elementos eletrônicos com sensibilidade folk, como os fãs de Postal Service e alguns outros nomes devem testemunhar, mas o que Noyes faz no EP de estreia do Handsome Ghost consegue ser ao mesmo tempo reverente à influência desses pioneiros e tremendamente pessoal. Ex-integrante de uma banda de folk e também ex-professor de Ensino Médio, o americano consegue adicionar um edge mais pop na mistura (se aproximando, mas não desaguando completamente, no que o Owl City faz), e ainda completa o pacote com uma sensibilidade madura que escapa das poesias fáceis que assombram o gênero. É como se o The 1975 abandonasse as guitarras elétricas, como se a nova direção musical do Coldplay fosse inspirada no cenário indie.

Por falar no The 1975, aliás, Noyes até gravou um cover de “Sex”, uma das melhores canções do grupo. Confere aí embaixo:

Embora não considere o Handsome Ghost um projeto de cantor-compositor, é assim que Noyes se define como artista. Complicado? Nem tanto. Acontece que, sob esse pseudônimo, o músico consegue se sentir mais livre para explorar fora das barreiras de gênero, e colaborar com outros instrumentistas (como o companheiro de tour Eddie Buyn, que toca os sintetizadores das músicas) e produtores. O primeiro EP, Steps, foi concebido com a ajuda de Matt Squire, que trabalhou com artistas bem díspares como Panic! At the Disco, 3OH!3 e Ke$ha. A influência do eclético produtor se faz sentir na forma como as canções, compostas por Noyes no violão acústico, se ajustam à moldura mais pop e eletrônica do som desejado pelo músico. “[O Handsome Ghost] é muito mais do que um cara com um violão, mas é dessa forma que as músicas começam. Então eu me considero um cantor-compositor que está em um projeto que é mais do que isso”, esclarece Noyes.

Nas seis canções do EP de estreia, que deve se transformar em álbum em breve se nos fiarmos às declarações do líder do projeto (“A turnê [abrindo o show do MisterWives] tem sido incrível, mas eu estou ansioso para ter algumas semanas para compor para o álbum”), Noyes destila essa mistura musical refinada e complexa que desenvolveu para o Handsome Ghost. “Bloodshot”, a quinta faixa, é também a que foi composta a mais tempo (segundo o próprio cantor), e impressiona pela franqueza com a qual Noyes expõe as letras escritas no que sem dúvida foram momentos vulneráveis da juventude: “I wanted to crash your party/ But I couldn’t find your house/ I wanted to touch your body/ And kiss you on the mouth”, clama ele logo antes de desaguar em um refrão simples e arrepiante pela bela melodia. O mais bacana do Handsome Ghost é a forma como a poesia das letras se molda à construção melódica e ao instrumental, de forma que, mesmo quando não conta uma história linear, o feeling do produto final é surpreendentemente evocativo.

“Eu não escrevo de forma muito literal – eu não vou me sentar e escrever o que fiz ontem a noite, mas eu gosto que as minhas canções capturem momentos, sejam meu jeito de digerir o que está acontecendo comigo. Eu posso ouvir uma música minha e lembrar ‘oh, era inverno e eu estava em Boston’”, conta Noyes.

Ouça as seis músicas do EP aí embaixo, e veja os clipes de “Blood Stutter” (que nós amamos!) e “Steps”.

Pra quem gosta de: The Postal Service, Owl City, Coldplay, The 1975, Active Child

6 de jul. de 2015

Review: “House of Cards” segue um caminho inesperado na terceira temporada

HOC_S3_Keyart_TARMAC_US-MAIN-720x1064

por Caio Coletti

Em um dos subplots da terceira temporada de House of Cards (e nada disso é um grande spoiler, fiquem tranquilos), nosso protagonista e agora presidente Frank Underwood contrata um escritor para assinar um livro sobre o programa governamental mais polêmico do seu curto mandato substituindo o deposto Presidente Walker. Durante o tempo que passa em companhia de Frank para escrever seu tomo, no entanto, o tal escritor (interpretado por Paul Sparks, que os fãs de Boardwalk Empire vão reconhecer) passa por muitas “fases” criativas, e o livro que era para ser sobre uma ideia grandiosa para o país passa a ser sobre o homem que teve essa ideia e, finalmente, sobre o casal (Frank e Claire) que ocupa a Casa Branca. A impressão que fica é que, com a subtrama estrelada pelo personagem de Sparks, House of Cards quer nos mostrar que a série passou exatamente por esse mesmo processo – de uma trama exclusivamente preocupada com o que queria dizer, House of Cards se tornou um pungente drama de relacionamento entrelaçado com mensagens e manobras políticas, exemplarmente comprometido em desvendar quem está dizendo. E ficou muito melhor pelo caminho.

A verdade é que esse terceiro ano é também o momento em que House of Cards mais se aproxima do que aprendemos a convencionar como a linguagem televisiva. Isso porque é redundância dizer, hoje em dia, que uma série tem “tom cinematográfico” –  a diferença entre as duas mídias está muito mais no modelo narrativo do que nos valores de produção, e a terceira temporada de House of Cards é decisivamente uma narrativa de TV. Essa é a primeira vez que cada um dos episódios, mesmo inseridos em uma trama serializada, arquiva um “feeling” diferente, como se formassem juntos um quebra-cabeças que não tira a autonomia de cada uma das peças. Nas duas temporada anteriores, House of Cards trabalhou com um modelo que, de certa forma, é muito mais complicado de se escrever, desenhando uma única linha narrativa exponencial que caminhava junto com a temporada. A diferença, basicamente, é que, nos anos anteriores, a série de Beau Willimon era um longo (e ótimo) filme de 13 horas, e dessa vez entregou uma tremenda temporada de televisão.

Nessa crônica do tempo de presidência de Frank, os escritores ganham mais autonomia para explorar o personagem e sua relação com a esposa sem o tom estoico e misterioso que enevoou o relacionamento dos dois nas temporadas anteriores. Sob pressão inédita como comandante-em-chefe do país e passando por um momento decisivo no seu casamento, no qual as ambições e promessas que fez para a esposa na caminhada em direção ao poder precisam ser cumpridas, o protagonista quase perde a aura daquele monstro quase caricato que vimos nos outros anos. “Quase” porque Kevin Spacey não deixa o personagem escapar de suas mãos, revelando-o para o espectador em toda a sua qualidade patética de humano de formas sutis, e desvendando com essa interpretação de onde vem o bravado e a verve cruel e autoritária que Frank demonstra nos momentos de raiva. É um retrato muito humano e tremendamente sensível do estado de espírito vulnerável e inseguro do qual vêm todos os atos tirânicos de quem se embebeda de poder – e Frank é definitivamente esse tipo de pessoa.

Talvez por isso que a atuação de Robin Wright brilhe tão mais aqui do que nos anos anteriores, também. Sua Claire é muito semelhante ao marido nesse sentimento que domina a psique de Frank no Salão Oval – uma mulher faminta por reconhecimento cujo estômago revira (literalmente) ao menor sinal de que sua posição em um relacionamento está sendo diminuída pelo poder que o outro detém nas mãos, seja como presidente ou como homem em uma sociedade patriarcal. Existe um compasso moral na personagem, no entanto, mesmo que ele só funcione quando as consequências humanas dos seus atos políticos apareçam claras como o dia na sua frente. É o que acontece no excepcional sexto capítulo da temporada, quando Claire e Frank vão à Rússia visitar um ativista americano dos direitos homossexuais que foi preso pelo presidente e negociar sua soltura. O diálogo entre Wright e o prisioneiro, interpretado por Christian Camargo (Dexter), e as consequências finais da negociação confrontam a primeira-dama com os limites de sua consciência e deixam ver uma rachadura inevitável entre ela e o marido, que culmina lá no final da temporada em uma das decisões de trama mais corajosas da série até hoje.

Sem nomes como Joel Schumacher e David Fincher assinando a direção dos episódios (Agnieszka Holland, de O Jardim Secreto, dirige dois), House of Cards suaviza o tratamento visual a fim de deixar as atuações e o trabalho dos roteiristas brilharem. É uma decisão esperta, que eleva a série de uma trama bem conduzida em termos de produção para um brilhante drama político com tantas implicações sociais quanto emocionais para o espectador. O terceiro ano da série do Netflix é também seu ano de amadurecimento – House of Cards mostra, finalmente, a quê veio no cenário de narrativas televisivas e reafirma-se não só como pioneira de uma nova liberdade de produção (afinal, foi a primeira série feita por um serviço de streaming) mas principalmente como história que precisa ser contada e assistida. Que tal isso como legado, Sr. Presidente?

Notinhas adicionais:

  • Spacey e Wright são os pilares da série, mas o elenco todo brilha: vale destacar a curtinha participação de Rachel Broshanan, que faz um trabalho primoroso com pouco tempo em tela; a performance compenetrada e expressiva de Michael Kelly, dando continuidade ao bom trabalho na segunda temporada; e a excelência sutil de Molly Parker, como a congressista de alianças duvidosas Jackie Sharp.
  • Robin Wright, inclusive, dirige dois episódios dessa terceira temporada e, assim como fez na segunda, mostra que tem domínio visual e narrativo incomparáveis sobre a série que estrela. Fica a torcida para que as investidas de Wright atrás das câmeras não parem por aqui!

✰✰✰✰✰ (5/5)

54ee19d28d77134d68d40b98_house-of-cards-season-3

House of Cards – 3ª temporada (EUA, 2015)
Direção: John David Coles, Tucker Gates, James Foley, John Dahl, Robin Wright, Angnieszka Holland
Roteiro: Beau Willimon, John Mankiewicz, Frank Pugliese, Laura Eason, Kenneth Lin, Melissa James Gibson, Bill Kennedy, baseados nas novelas de Michael Dobbs e na minissérie de Andrew Davies
Elenco: Kevin Spacey, Robin Wright, Michael Kelly, Elizabeth Marvel, Jimmi Simpson, Paul Sparks, Molly Parker, Kim Dickens, Derek Cecil, Mahershala Ali, Nathan Darrow, Lars Mikkelsen
13 episódios

Emmy watch – possíveis indicações:
Melhor Série Dramática
Melhor Ator em Série Dramática (Kevin Spacey)
Melhor Atriz em Série Dramática (Robin Wright)
Melhor Roteiro em Série Dramática (Melissa James Gibson, “Chapter 32”)
Melhor Direção em Série Dramática (Robin Wright, “Chapter 35”)

1 de jul. de 2015

Review: “Wolf Hall” encontra um poderoso estudo de personagem em uma história batida

Wolf-Hall-Poster

por Caio Coletti

Retratos ficcionais do turbulento reinado de Henrique VIII da Inglaterra não faltam. Os polêmicos múltiplos casamentos do monarca, com direito a execução de duas das ex-esposas e anulação de vários outros matrimônios, além da universalmente fabulada troca de amantes entre as irmãs Boleyn (Mary & Anne), deram material farto para novelistas, roteiristas e diretores ao redor do mundo. Duas das mais famosas encarnações da história, a série The Tudors e o filme A Outra, provavelmente servirão de parâmetro para o espectador incauto que trombar com Wolf Hall, minissérie da BBC que adapta dois livros de Hilary Martel em que o protagonista não é exatamente o monarca mulherengo, mas Thomas Cromwell, uma figura polêmica na história inglesa. Advogado por formação, Cromwell passou em um punhado de anos de braço direito de um cardeal em decadência para conselheiro mais próximo de Henrique e arquiteto de boa parte de suas separações, violentas ou não.

O Cromwell de Wolf Hall é o ator britânico Mark Rylance, e a série o acompanha desde a contratação como advogado pelo Cardeal Wosley (Jonathan Pryce, que esteve em Game of Thrones esse ano e está fantástico em ambos os papéis) até o julgamento e condenação de Anne Boleyn (Claire Foy, de Crossbones) por suposta infidelidade para com o rei. Rylance, que está com 55 anos e aparece no cinema desde 1985, é um ator bissexto, que prefere o teatro, mas esteve até em outra encarnação da mesma história, o filme A Outra, estrelado por Natalie Portman e Scarlett Johansson, que citamos ali em cima. Faz diferença ter à frente da história um ator com experiência predominante nos palcos, porque sua construção do protagonista é sutil e comunicativa como deveria ser, se aproveitando do olhar privilegiado da câmera para esconder no fundo dos olhos de Cromwell a angústia e a alma de um homem terrivelmente pragmático, que parece usar uma máscara mortuária o tempo todo. Ele mantém a moralidade ambígua que o roteiro e a época histórica pedem (afinal, era também o início da guerra entre católicos e protestantes, e Cromwell mais tarde se tornaria notoriamente um guerreiro sangrento pela causa dos segundos), e que Wolf Hall tão brilhantemente usa em seu favor ao humanizar intensamente, ainda que ao estilo britânico contido, todos os seus personagens.

Rylance divide bem a cena com Jonathan Pryce e mesmo com Damian Lewis (Homeland), uma escolha ousada para o papel do monarca, que surpreende ao entender o caráter duvidoso do personagem e pintar por cima dele uma personalidade exuberantemente carismática, entregando uma interpretação intensa e dúbia que sem dúvida se encaixa na perfeita metáfora do roteiro de Peter Straughan (O Espião Que Sabia Demais) para o personagem: um leão dócil ao ser acariciado, mas ainda um leão. A verdadeira mágica acontece, no entanto, quando Wolf Hall se volta para o arco da relação entre Cromwell e Anne – o estilo contido de Rylance, que se recusa a atuar pela vaidade de devorar cenários, se confronta diretamente com a ofegante tenacidade de Claire Foy em cena, entregando-se a personagem de maneira comovente e nervosa, pintando uma Anne em cores fortes que é supremamente egoísta, mas também terrivelmente trágica. Foy abraça o simbolismo de uma história como a da sua personagem, uma mulher esmagada pelas pressões da sociedade de sua época que encontrou um caminho para o topo mas ficou a mercê de um predador indomável com uma coroa sobre a cabeça. Wolf Hall não julga Anne por sua ambição, como uma obra menor faria, e Foy em resposta a interpreta escapando de quaisquer estereótipos e presunções que o espectador possa fazer sobre ela.

Wolf Hall é lindamente dirigida pelo veterano de TV britânica Peter Kosminsky, que em vários momentos brinca com a iluminação das cenas e com as simbologias do roteiro de Straughan (o tema de animais de estimação é particularmente recorrente, há de se notar) e cria uma encenação sóbria e tensa mesmo que muitas vezes o script arrisque perder a atenção do espectador, desafiando a estrutura convencional dramática de uma narrativa exponencial e tomando seu tempo para estabelecer cada um dos estratagemas e relacionamentos que compõem a teia de intrigas de Wolf Hall. Não surpreendentemente, mas sem dúvida de forma muito eficiente, a minissérie quer conversar sobre o significado do poder e sua constituição frágil e inconstante, sobre as consequências que a consciência de um ser humano pode sofrer ao buscá-lo, e sobre a forma como o passado informa nossas decisões, seja na forma de vingança ou de desprendimento emocional. Wolf Hall não é, o tempo todo, uma narrativa poderosa e envolvente, mas vale a pena ser vista tanto pelo refinamento de sua produção quanto pela coerência de sua mensagem.

Notinhas adicionais:

  • O elenco da série merece uma nota a parte, como é de costume para as produções da BBC. O quarteto principal é a espinha dorsal da trama, mas coadjuvantes como Bernard Hill (Duque de Norfolk), Jessica Raine (Jane Rochford), Tom Holland (Gregory Cromwell), Kate Phillips (Jane Seymour), Mark Gatiss (Stephen Gardiner), Anton Lesser (Thomas More) e Charity Wakefield (Mary Boleyn) fazem toda a diferença.
  • O terceiro livro da trilogia começada com Wolf Hall (a minissérie também cobre o segundo, Bring Up the Bodies) sai ainda esse ano segundo a autora, então devemos esperar uma futura continuação da história na televisão também?

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

wh-gk-8-7-14-04229-e1421516932904

Wolf Hall (Inglaterra, 2015)
Direção: Peter Kosminsky
Roteiro: Peter Straughan, baseado nas novelas de Hilary Martel
Elenco: Mark Rylance, Damian Lewis, Claire Foy, Jonathan Pryce, Thomas Brodie-Sangster, Bernard Hill, Jessica Raine, Tom Holland, Kate Phillips, Ed Speelers, Mark Gatiss, Anton Lesser, Max Fowler, Joanne Whalley, Charity Wakefield, Harry Lloyd
6/7 episódios

Emmy watch – possíveis indicações:
Melhor Minissérie
Melhor Ator em Minissérie ou Filme (Mark Rylance)
Melhor Ator Coadjuvante em Minissérie ou Filme (Damian Lewis)
Melhor Atriz Coadjuvante em Minissérie ou Filme (Claire Foy)