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26 de fev. de 2017

O Oscar 2017 será lembrado como o grande símbolo das contradições da Academia (e do nosso tempo)

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por Caio Coletti

É, isso aconteceu. Em um momento de entrar para a história, para o bem ou para o mal (provavelmente para o mal), dos prêmios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, Warren Beatty leu o envelope errado e entregou para La La Land o prêmio de Melhor Filme do Oscar 2017, quando o verdadeiro vencedor era Moonlight. O produtor do musical, Justin Horowitz (visto na foto acima segurando o papel com o nome do filme “adversário”), notou o erro e ajudou a corrigí-lo, em um dos momentos mais constrangedores, bizarros e surpreendentes da história da premiação. Horowitz também dispensou a sugestão do apresentador Jimmy Kimmel, que queria que a equipe de La La Land permanecesse com suas estatuetas apesar do erro, dizendo: “Eu vou ficar muito feliz de entregar isso para meus amigos de Moonlight”. Enquanto Horowitz abraçava o diretor Barry Jenkins e a equipe do drama independente que subia ao palco, o Oscar mais chocante dos últimos tempos terminava com um gesto admirável de fair play.

Review: Moonlight é uma obra prima discreta, mas absolutamente fundamental

Na verdade, eu não deveria usar esse termo, porque arte não é esporte – algo que o Oscar nunca realmente entendeu, visto que iria contra a própria premissa de sua existência. Em uma era de produção cinematográfica tão rica e diversa, La La Land e Moonlight podem existir, e entrar para a história do cinema como realizações brilhantes, sem anularem um ao outro. Como costuma acontecer nas temporadas de premiação, esses dois gigantes que competiram até o final pelas honrarias são filmes absurdamente diferentes: um é um musical que homenageia os clássicos do gênero com pompa e encanto, uma realização técnica impecável, que traz modernidade e idealismo de volta a uma forma de arte quase morta (e que não deveria estar); outro é uma história urgente, contada com delicadeza e floreios artísticos transcendentes, socialmente fundamental e tecnicamente brilhante, dono de uma poesia que o torna muito maior do que a soma de suas (já espetaculares) partes.

Como aconteceu com Birdman e Boyhood, lá no Oscar 2015, são duas obras primas que podem fundamentalmente coexistir e, de suas próprias formas, mudar o rumo do cinema como arte. Exatamente como aconteceu com aqueles dois filmes, no entanto, um dos dois favoritos do Oscar 2017 tinha claramente a maior importância na narrativa cultural, e desta vez era Moonlight. Então, sim, a Academia acertou em cheio ao dar ao filme de Barry Jenkins o prêmio maior da noite, e não é justo que sua vitória seja manchada por esse erro bobo, tanto quanto não foi justa a montanha-russa de fortuna e “desgraça” que a equipe de La La Land passou no palco.

Essa contradição, no entanto, foi só a última de muitas que observei no Oscar 2017. Com ou sem erro de envelope, ele já estava destinado a ser simbólico do tempo em que vivemos como sociedade – qualquer um que acompanhe o mundo do entretenimento ou da política (ou ambos, como este que vos fala) entende que os últimos anos foram, para ser propositalmente vago sobre algo que não pode ser definido em palavras, complicados. A ideia de que arte é narrativa social, e que ela pode fazer diferença politicamente, tem se tornado mais comum, mas a resistência a isso vem de um grupo que diverge do ponto de vista naturalmente mais liberal da comunidade artística, que se vê hostilizada pela extrema direita nos EUA, no Brasil e no mundo todo.

Review: Artificial e genuíno, La La Land encarna a própria contradição do cinema

Como ponto de confluência desse diálogo social, o Oscar se via em uma encruzilhada em que cada decisão seria vista como política, além de artística. Eu, particularmente, acho que isso é positivo – quando a arte é forçada a ter um ponto de vista, o discurso social caminha adiante, quer você concorde com esse ponto de vista ou não. A vitória de Moonlight, todas as circunstâncias deixadas de lado, sinaliza que a Academia, renovada pela presidenta Cheryl Boone Isaacs após a polêmica do #OscarsSoWhite nos últimos anos, também entende que arte é discurso social. Moonlight é o primeiro em muitas coisas: feito com apenas US$1.5 milhão, o filme de Barry Jenkins é muito provavelmente o mais barato a vencer o prêmio principal do Oscar; é também o primeiro com um protagonista LGBT a alcançar tal feito, e o primeiro com um elenco completamente negro (outro filme com tal distinção, Fences, estava indicado esse ano).

E sim, apesar de nenhuma dessas coisas ser o fator decisivo pelo qual o filme é tão excelente quanto é, não podemos simplesmente dispensá-las, porque elas tem valor simbólico imenso, especialmente agora que Moonlight é um vencedor do Oscar de Melhor Filme, o prêmio cinematográfico de maior prestígio e visibilidade internacional (sim, mais que Palma de Ouro – infelizmente, talvez). Há algo de doce e saboroso em saber que um filme com essas características pode ser contemplado com esse tipo de prestígio literalmente acadêmico, em um prêmio que costuma ter um gosto muito específico, rígido, conservador no sentido de incapaz de mudar e se adaptar aos tempos. É uma vitória incontestável em muitos sentidos, porque é merecida e é concretamente positiva para nós como sociedade.

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E no entanto, não é uma vitória completa, porque a Academia não poderia nos dar esse gostinho. Como devoto do mundo do entretenimento, assistir ao Oscar sempre foi uma experiência agridoce – ele é como nossa criança mal-criada, que toma decisão errada atrás de decisão errada, mas que é tão importante para a indústria que nós acompanhamos tão de perto o ano todo que não podemos simplesmente deixá-lo sem supervisão. Em 2017, vimos um número recorde de pessoas não-brancas indicadas às categorias de atuação, o primeiro diretor de fotografia negro a conseguir entrar na disputa, o primeiro vencedor muçulmano de um prêmio de melhor ator (Mahershala Ali, também de Moonlight), o diretor mais jovem a vencer a estatueta de sua categoria (Damien Chazelle, de La La Land). Nesse ano, a Academia andou vários passos para frente – mas não sem dar alguns para trás.

O maior deles provavelmente é a vitória de Casey Affleck (na foto acima), por Manchester à Beira Mar, na categoria Melhor Ator. O irmão mais novo de Ben Affleck tem um passado conturbado, para dizer o mínimo – em 2010, foi acusado por uma produtora e uma diretora de fotografia de assédio sexual. Ambas trabalhavam no seu filme de estreia na direção, Eu Ainda Estou Aqui, um falso documentário estrelado por Joaquin Phoenix. Affleck não quis levar o caso ao tribunal, preferindo pagar indenizações às suas vítimas, e nunca falou publicamente sobre isso (nunca foi pressionado tampouco, diga-se de passagem). É uma questão complexa: embora oficialmente o caso tenha sido resolvido na justiça, fica mais que claro para qualquer um com dois olhos e algum bom senso que o sistema judiciário é injusto com mulheres que sofrem abuso sexual. Caso escolhessem ir aos tribunais, essas mulheres enfrentariam o escrutínio e provavelmente a humilhação de um júri popular, sampleado de uma sociedade ainda absurdamente misógina.

Review: O luto no cinema nunca foi tão real quanto em Manchester à Beira Mar

Por essas razões, há de se desconfiar do “acordo” feito por Affleck com suas vítimas, e há de se questionar a moralidade de celebrar e laurear um profissional com esse tipo de histórico. O mesmo vale para Mel Gibson, que, menos de uma década depois de soltar veneno anti-Semita e homofóbico publicamente, estava indicado ao prêmio de Melhor Direção por seu maniqueísta e ultra-violento (no mau sentido) épico de guerra Até o Último Homem. A ideia de que o Oscar deveria julgar apenas talento, sem interferência da vida pessoal dos artistas, apela para a razão de muita gente que defende a decisão da Academia de indicar ou premiar essas pessoas, mas fundamentalmente eleva esses artistas a um patamar em que suas ações não afetam suas vidas concretas como aconteceria com outras pessoas comuns. Um bibliotecário que assediasse sua colega de trabalho seria despedido (ou acharíamos justo que fosse), mas Casey Affleck ganha um Oscar? I call it: um peso, duas medidas.

Essa contradição da Academia apareceu de formas menores em outras categorias. Basta olhar para o triunfo de Até o Último Homem na categoria Mehor Edição e para a vitória de Mogli – O Menino Lobo em Melhores Efeitos Especiais. Ambos são incríveis feitos técnicos, mas bateram trabalhos mais criativos e inteligentes em suas categorias – a vitória de Mogli, especialmente, soa como um triunfo do fotorrealismo digital sobre a visão artística no uso dos efeitos digitais no cinema. Enquanto isso, a vitória da jovem ingénue Emma Stone (que absolutamente mereceu sua indicação por La La Land) sobre os retratos duros e ambiciosos de mulheres complicadas realizados por Isabelle Huppert (Elle) e Natalie Portman (Jackie) fala a uma veia tradicionalista do Oscar que ainda está lá. Por outro lado, a Academia falou alto contra Donald Trump ao entregar o prêmio de Melhor Filme Estrangeiro para Asghar Farhadi, de O Apartamento, que foi proibido de entrar nos EUA graças à nova política de imigração do presidente americano.

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Quando alguém me perguntar o que o Oscar significa para a indústria do entretenimento, para a sociedade, e para mim pessoalmente, eu vou apontar para a edição de 2017. Em seu momento mais glorioso, e mais terrível, o Oscar 2017 foi a reflexão perfeita do momento que vivemos no mundo, da incansável batalha de cabo de guerra entre uma força cultural inescapável, que nos empurra para progresso social e civil, e uma resistência igualmente formidável. Quanto mais forte a primeira bate (Moonlight), mais furiosamente a segunda revida (Affleck) – mas deveríamos celebrar o quanto de progresso conseguimos fazer, aproveitar os (ainda que insuficientes) pedaços de luz que conseguimos jogar em um mundo em conflito através da nossa arte.

No último episódio da primeira temporada de True Detective, Rust conversa com o seu parceiro, Marty, sob um céu salpicado de estrelas. Rust postula que existe apenas uma grande história sendo contada pela humanidade, seja em sua trajetória natural pelos tempos ou na ficção que produz: uma história de luz vs. escuridão. Olhando para o céu, Marty lamenta que os pontos estrelados sejam tão mínimos em relação ao negrume que os cerca. “Eu acho que você está olhando para isso errado”, responde Rust. “Um dia, houve apenas escuridão. Se você me perguntar, a luz está ganhando”.

23 de fev. de 2017

Diário de filmes do mês: Fevereiro/2017

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por Caio Coletti

Nem todos os filmes merecem (ou pedem) uma análise complexa como a que fazemos com alguns dos lançamentos mais “quentes” ou filmes que descobrimos e nos surpreendem positivamente. É levando em consideração a função da crítica e da resenha como uma orientação do público em relação ao que vai ser visto em determinado filme que eu resolvi criar essa coluna, que visa falar brevemente dos filmes que não ganharam review completo no site. Vamos lá:

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Lion: Uma Jornada Para Casa (Lion, Austrália/EUA/Inglaterra, 2016)
Direção: Garth Davis
Roteiro: Luke Davies, baseado no livro de Saroo Brierley
Elenco: Dev Patel, Rooney Mara, Nicole Kidman, David Wenham, Sunny Pawar
118 minutos

O diretor Garth Davis, que faz sua estreia em longas-metragens com Lion: Uma Jornada Para Casa, tem formação no mercado de comerciais. A superfície polida de seu filme deixa transparecer esse passado, assim como a escolha de tratar a primeira parte da história de Saroo (quando criança, interpretado por Sunny Pawar) de forma linear. Mais para frente no filme, Davis brinca com o roteiro de Luke Davies (Candy), costurando memórias e sentimentos de maneira hábil, que talvez faça o espectador lamentar o potencial perdido pela primeira metade. Trata-se de uma reclamação mesquinha, no entanto, já que essa escolha criativa pouco inspirada é o único passo em falso em um drama perfeitamente brilhante. A história acompanha o garotinho indiano que se perde da família ao dormir dentro de um trem e acordar em uma região estranha do país – adotado por uma família australiana e crescido, Saroo (Dev Patel) começa a procurar suas origens utilizando o Google Earth, então uma novidade tecnológica. Trata-se de uma história real, adaptada pelo roteirista Davies de um livro de memórias do próprio Saroo Brierley, e é bacana ver como o filme molda as temáticas dessa história com habilidade, analisando a relação do protagonista com aqueles a sua volta conforme a obsessão por encontrar a família se desenvolve, tomando conta de sua vida.

Lion busca a compreensão dos motivos e sentimentos de todos seus personagens com afinco, e o diretor Davis confia em seus atores para expressar as complexidades das relações que vemos em tela. Dev Patel entrega a atuação de sua carreira como o Saroo adulto, exalando uma determinação tranquila e uma confiança humanizada que o torna muito real para o espectador atento. De sua forma tipicamente transparente, Nicole Kidman domina as cenas em que está presente com autoridade, navegando por emoções complicadas para representar de forma genuína uma mãe adotiva com propósito e pulso firme. Envolvidos por uma bela fotografia, adepta de ambientes iluminados e fascinada pelas imperfeições dos rostos de seus atores (obra de Greig Fraser, que também assinou Rogue One), esses atores e aqueles a sua volta criam um filme inteligente, que foge da pieguice e encontra emoção genuína em sua história.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

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Até o Último Homem (Hacksaw Ridge, Austrália/EUA, 2016)
Direção: Mel Gibson
Roteiro: Robert Schenkkan, Andrew Knight
Elenco: Andrew Garfield, Hugo Weaving, Teresa Palmer, Vince Vaughn, Sam Worthington, Richard Roxburgh
139 minutos

Pode parecer brincadeira, mas é verdade: para fazer cinema de guerra, é preciso sutileza. Quando Steven Spielberg nos colocou no centro do furacão do Dia D na cena de abertura de O Resgate do Soldado Ryan, é claro que explosões, violência e sangue eram necessários para comunicar o verdadeiro horror da guerra – no entanto, é o equilíbrio delicado arquivado pelo diretor, entre mostrar e explorar essa violência, que faz a cena (e o filme, como peça moral de cinema) funcionar. Mel Gibson é muitas coisas, pessoalmente e profissionalmente, mas sutil absolutamente não é uma delas. Em Até o Último Homem, celebrado por suas cenas de batalha, o diretor que nos deu A Paixão de Cristo encara cada ato de barbaridade como um obstáculo a mais para ultrapassar, seja a fim de fazer auto-propaganda e reabiltar sua imagem, ou a fim de sublinhar a mensagem essencialmente pró-guerra do filme. A relação do cinema americano com a guerra é complicada porque a relação dos EUA com a guerra também é – em Até o Último Homem, no entanto, sobra pouco espaço para questionamentos da moral, da validade ou do real efeito do conflito nos homens que o enfrentam. Isso é especialmente decepcionante porque a história de Desmond Doss se prestava a essa reflexão mais marcantemente que a maioria das tramas de guerra.

Doss se alistou no exército durante a Segunda Guerra Mundial a partir de um senso de reponsabilidade com seu país, mas se recusou a sequer tocar em armas de fogo durante seu treinamento e, mais tarde, sua atuação contra as tropas japonesas. Como socorrista em campo de batalha, salvou centenas de soldados aliados (e inimigos!) sem nunca disparar um tiro sequer, e foi o primeiro objetor a ganhar a medalha de honra do exército americano. Na visão miópica de Gibson e seus roteiristas, no entanto, as moralidades complicadas desse personagem são reduzidas a um vago senso de religiosidade, por mais que Andrew Garfield genuinamente se esforçe para imbui-lo de personalidade tridimensional.

A impressão que fica é que Gibson colocou pouco ou nenhum pensamento concreto na história e desenvolvimento de Até o Ùltimo Homem, e o cinismo dessa sua “volta por cima” acaba passando como um insulto aos personagens reais que retrata. Nem o sempre excelente Hugo Weaving, na pele do pai de Desmond, consegue salvar esse filme da completa mediocridade.

✰✰✰ (2,5/5)

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Sete Minutos Depois da Meia-Noite (A Monster Calls, EUA/Espanha, 2016)
Direção: J.A. Bayona
Roteiro: Patrick Ness, baseado no seu próprio livro
Elenco: Lewis MacDougall, Sigourney Weaver, Felicity Jones, Toby Kebbell, Liam Neeson, Geraldine Chaplin
108 minutos

“Eu me lembro perfeitamente da minha infância… Eu sabia de coisas terríveis”. A famosa frase do escritor Maurice Sendak, autor de Onde Vivem os Monstros, é perfeita para definir um tipo de fantasia infanto juvenil que parece cada vez mais perdida. Com tendências góticas em sua temática (e por vezes visual), esse tipo de fantasia usa os elementos impossíveis para conversar sobre temas muito reais, e busca imputar às crianças ou jovens adultos da história uma consciência maior da situação que as cerca. Sete Minutos Depois da Meia-Noite, adaptado do livro de Patrick Ness pelo próprio autor, é exatamente esse tipo de fantasia – acompanhamos o jovem Conor (Lewis MacDougall), que vive com a mãe doente (Felicity Jones) e sofre bullying na escola. Certa noite, ele é visitado por um monstro em forma de árvore gigante (Liam Neeson), que lhe conta três histórias a fim de ajudá-lo a processar seu próprio luto conforme a doença da mãe toma uma direção trágica. Assim como fez com O Impossível e O Orfanato, o talentoso diretor J.A. Bayona nunca perde o coração do filme de vista, mas encontra espaço para o trabalho criativo genioso de sua equipe brilhar, especialmente nas belíssimas sequências de animação que ilustram as histórias contadas pelo monstro.

As atuações do trio principal, formado por MacDougall, Jones e Sigourney Weaver (como a severa avó do menino), estão no cerne da reflexão do filme sobre luto em todas as suas facetas e dimensões. O jovem MacDougall é capaz de expressar a fúria contida de Conor com maestria, e a tristeza intrínseca de uma situação da qual ele, dolorosamente, tem plena consciência. Jones ganha a atenção do espectador com facilidade em sua atuação fragilizada e emocional, enquanto Weaver toma um caminho mais complicado, e constrói a personagem de dentro para fora, se revelando aos poucos para o espectador. Há anos que a atriz não tinha uma oportunidade de flexionar os músculos dramáticos em uma história tão rica – após ver Sete Minutos Depois da Meia-Noite, é impossível negar que ela fez muita falta.

Esse tipo de fantasia também faz falta – em um mundo de cinema comercial em que os filmes infantis e juvenis começam a redescobrir que seu público é capaz de absorver e entender mais do que eles poderiam esperar, Sete Minutos Depois da Meia-Noite é uma piéce resistance que encanta, emociona e marca a memória de forma definitiva.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

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Trolls (EUA, 2016)
Direção: Walt Dohrn, Mike Mitchell
Roteiro: Jonathan Aibel, Glenn Berger
Elenco: Anna Kendrick, Justin Timberlake, Zooey Deshanel, Christopher Mintz-Plasse, Christine Baranski, Russell Brand, Gwen Stefani, John Cleese, James Corden, Jeffrey Tambor, Quvenzhané Wallis, Rhys Darby
92 minutos

Há algo de marcantemente artístico na forma como Trolls é realizado, ainda que seu roteiro não denuncie. A estridentemente colorida aventura animada da Dreamworks encontra em seus rápidos 92 minutos momentos de pura genialidade visual, tudo enquanto conta uma história previsível, ainda que carregando uma mensagem positiva, baseada em uma linha de brinquedos que deixou de ser popular há pelo menos duas décadas. A trama acompanha a Princesa Poppy (Anna Kendrick), uma animada troll, uma raça de pequenos seres capazes de infinita alegria e musicalidade, enquanto ela tenta salvar seus amigos dos bergens, monstros que só conseguem sentir alegria ao comer trolls. Poppy tem a ajuda de Branch (Justin Timberlake), o único troll pessimista de todo o vilarejo, e a partir daí está montada a moral manjada sobre encontrar a felicidade dentro de si, e não nas circunstâncias que o cercam. As boas sacadas cômicas do roteiro são quase sempre concentradas na personagem Bridget (Zooey Deschanel), uma bergen apaixonada pelo príncipe de seu reino que os trolls acabam ajudando em troca da vida de seus amigos capturados.

Versões anêmicas de músicas reconhecíveis aparecem durante o filme, incluindo (é claro) o clássico “True Colors”, de Cyndi Lauper, mas Trolls não parece comprometido de verdade em ser um musical. As poucas canções originais são usadas em momentos marcantes do filme, incluindo a ótima “Get Back Up Again”, escrita pela dupla Benj Pasek e Justin Paul (mesma do filme La La Land) e performada com gosto por Kendrick. Visualmente, o filme da DreamWorks é um banquete, e musicalmente tem seus momentos marcantes, mas a verdade é que Trolls passa pelo espectador como uma leve brisa, que desaparece da memória assim que para de soprar. Profundidade definitivamente não é o forte aqui.

✰✰✰ (3/5)

elle

Elle (França/Alemanha/Bélgica, 2016)
Direção: Paul Verhoeven
Roteiro: David Birke, baseado no livro de Philippe Dijan
Elenco: Isabelle Huppert, Laurent Lafitte, Anne Consigny, Charles Berling, Virginie Efira, Judith Megra, Christian Berkel
130 minutos

É muito óbvio o quanto Paul Verhoeven se diverte atrás das câmeras. O lendário e subversivo mestre holandês entrega uma obra deliciosamente pervertida com Elle, mas em um sentido muito mais profundo do que parece. Parte significativa disso é Isabelle Huppert, que se alia ao diretor para transformar um roteiro básico, que explora violência e sexo com o gosto de um filme B americano, em uma história mais complexa de libertação através desses elementos “tabu” imbutidos na trama. Huppert interpreta Michéle LeBlanc, bem-sucedida diretora de uma empresa de games que, certo dia, tem sua casa invadida e é estuprada pelo invasor. Com receio de envolver a polícia no acontecido graças ao seu passado como filha de um conhecidíssimo assassino em série, Michéle tenta descobrir a identidade de seu estuprador sozinha, e se vingar dele de maneira perversa (ou quase isso, mas não quero estragar as surpresas do filme). Na direção, Verhoeven tira prazer da forma como subverte nossas expectativas de tratamento de determinados temas e emoções, se aliando à direção de fotografia (de Stéphane Fontaine) e à trilha sonora (de Anne Dudley) para imputar um tom de comédia de humor negro aos procedimentos, sem perder de vista, ao mesmo tempo, os desenvolvimentos dramáticos que desenham os arcos de personagem do filme.

Huppert triunfa menos pela frieza da personagem, e mais pelo entendimento psicológico que procura trazer a ela, misturando indignação, prazer, frustração e autoridade na mesma mulher, e às vezes no mesmo olhar. Ao seu lado, Anne Consigny arquiva uma interpretação subestimada como a melhor amiga de Michéle, Anna, com quem a personagem cultiva talvez a relação mais significativa de sua vida – servir como apoio para Huppert e ainda conseguir definir decisivamente sua personagem não é missão para qualquer atriz, e Consigny faz maravilhas com seu pouco tempo em tela. O filme é, essencialmente, a história de ambas, e um tratado sobre a forma como a presença feminina domina e molda a nossa sociedade de forma decisiva, mesmo que a opressão sistêmica do machismo queira negar essa realidade. Com desejos complicados e relações difíceis com o mundo ao seu redor, Elle mostra personagens femininas que só encontram compreensão umas com as outras.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

7

Sete Homens e Um Destino (The Magnificent Seven, EUA, 2016)
Direção: Antoine Fuqua
Roteiro: Richard Wenk, Nic Pizzolatto, baseados no roteiro original de Akira Kurosawa, Shinobu Hashimoto, Hideo Oguni
Elenco: Denzel Washington, Chris Pratt, Ethan Hawke, Vincent D’Onofrio, Byung-hun Lee, Manuel Garcia-Rulfo, Martin Sensmeier, Haley Bennett, Peter Sarsgaard, Luke Grimes, Matt Bomer
133 minutos

Sete Homens e Um Destino é um clássico do faroeste americano por muitos motivos, e o remake comandado por Antoine Fuqua não tenta reproduzir nenhum deles. Essa é talvez a decisão mais sábia tomada pelos roteiristas Richard Wenk e Nic Pizzolatto, que preferem modernizar a narrativa ao retratar o Velho Oeste americano de forma mais realista, misturando etnias entre os sete protagonistas e abordando relações de poder entre classes diferentes em um EUA pós-Guerra Civil. A ideia aqui é retratar o mundo do western como um de homens despedaçados por traumas de um conflito violento, que procuram um senso de justiça mesmo quando parecem efetivamente fugir dela – nas mãos hábeis de Fuqua, Sete Homens e Um Destino é também um filme de ação de primeira. A trama é basicamente a mesma do original: uma jovem viúva contrata um caçador de recompensas, que por sua vez reúne um time de foras-da-lei e pistoleiros variados a fim de salvar uma pequena cidade do domínio de um milionário megalomaníaco que quer as terras para si.

A diferença chave aqui é que não só os heróis não são sete homens brancos, como o filme empresta mais agência à viúva em questão (interpretada por Haley Bennett), e o vilão da vez é a ganância corporativa, e não um bando de latinos sem rosto. A construção dos personagens é ágil e impressiona – Vincent D’ONofrio e Ethan Hawke, especialmente, entregam performances deliciosamente teatrais e no ponto, confluindo bem com o estilo ultra-observador de Fuqua na direção. Fotografia e trilha-sonora fazem o seu melhor para apresentar uma mistura de clássico e inovador em termos de faroeste, e o resultado é um épico de ação inteligente, artigo cada vez mais raro em Hollywood. Está na hora de começarmos a apreciá-los quando eles aparecem.

✰✰✰✰ (4/5)

14 de fev. de 2017

Review: O luto no cinema nunca foi tão real quanto em Manchester à Beira-Mar

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por Caio Coletti

É um terrível clichê da crítica cinematográfica dizer que o maior trunfo de um filme, especialmente um filme dramático, é sua honestidade. Em Manchester à Beira-Mar, no entanto, essa parece ser a definição certa – o filme de Kenneth Lonergan cativa o público porque, apesar de sua trama cruel e deprimente, não se permite enfeitar ou mentir sobre o estado emocional e as circunstâncias de seus personagens. O luto que permeia Manchester como uma praga não é mais desesperador por causa disso, mas sim mais contido, ajustado às realidades pragmáticas e humanidades falhas que cercam os personagens. Em sua honestidade de observador da condição humana, Lonergan criou um filme em que esse luto existe de forma mais obíqua, e pode ser analisado mais de perto, do que em qualquer obra do cinema americano na memória recente.

A trama do filme acompanha Lee Chandler (Casey Affleck), um faz-tudo em um subúrbio de Boston que tem que voltar para sua Manchester natal a fim de cuidar do sobrinho, Patrick (Lucas Hedges), que acaba de perder o pai, irmão de Lee. Ao chegar à Manchester, além de precisar lidar com a sua perda mais recente, Lee tem que encarar erros e tragédias de seu passado, ligadas a sua ex-esposa, Randi (Michelle Williams). Lonergan encontra o coração de sua história em irritações e incômodos simples, ao invés de encontrá-lo em grandes momentos emocionais – a sensação da perda de alguém querido aparece em detalhes banais, em uma tensão que existe muito mais no ambiente corriqueiro da vida de quem foi deixado para trás do que em gestos grandiloquentes de desespero. Manchester é mais um blues arrastado, comtemplativo, do que um soul urgente, e qualquer um que passou por situação semelhante poderá se identificar com isso.

Por essa própria natureza do roteiro de Lonergan, é difícil imaginar outro ator no papel de Lee além de Casey Affleck. O irmão mais novo do atual Batman, Ben Affleck, sempre foi um intérprete de sutilezas e composições essencialmente físicas (vide sua indicação anterior ao Oscar por O Assassinato de Jesse James), e em Lee ele encontra o personagem perfeito para explorar uma emoção reprimida não por teimosia, mas por instinto de sobrevivência. As inúmeras premiações dispensadas à Affleck são um paradoxo, visto que sua atuação é indiscutivelmente impressionante, mas o histórico pessoal do ator, incluindo várias acusações de assédio sexual que resultaram em acordo judicial e pagamento de multas, faz questionar a ética de entregar mais troféus a ele. O filme e a atuação fazem com que seja fácil esquecer que é Affleck a pessoa que vemos na tela, mas quando os créditos sobem, devemos continuar esquecendo?

Ao redor do protagonista, um filme excepcional é construído. Não só Lonergan estrutura seu roteiro de forma inteligente, revelando aos poucos a dor e a história de Lee,  como também arquiva uma direção de tirar o fôlego, inteligente na forma como escolhe firmar o espectador na posição de observador dos acontecimentos, e não mergulhá-lo no mundo que constrói. Ao lado da diretora de fotografia Jody Lee Pipes, Lonergan escolhe filmar os personagens de longe em vários momentos-chaves da trama, especialmente no início do filme, evitando o close-up no rosto dos atores – por falar nisso, vale ficar de olho na participação especial do diretor, que interpreta um pedestre inconveniente que tenta dar lições de paternidade para Lee em certa cena (quase) divertida do filme.

Pode parecer sacrilégio, mas a abordagem meio fugral de Manchester à Beira-Mar em relação ao luto, a mesma que produz o clima opressivo do filme, também o posiciona, curiosamente, como uma cuidadosa comédia de observação. O filme de Lonergan não é engraçado, por assim dizer, mas tem um olho aguçado para os constrangimentos e restrições do dia-a-dia que, por vezes, são realçados tanto pelo diretor quanto pela edição magistral da talentosíssima Jennifer Lame (Frances Ha), que dá ritmo ao filme com intervenções discretas e cortes rápidos em certas cenas. Poucos editores cinematográficos em atividade tem tanta assinatura própria quanto Lame, que é capaz de criar movimento mesmo onde ele não existe, comunicando o ponto de que, mesmo sob a interminável tristeza que retrata, Manchester é um filme terrivelmente vivo.

A única grande explosão de emoção no filme pertence à sempre excepcional Michelle Williams, uma das melhores atrizes de sua geração, que entrega em uma cena-chave o exasperamento inarticulado de um luto que nunca deixa de existir na consciência de quem passa por qualquer tipo de tragédia. Manchester à Beira-Mar não entrega soluções fáceis – seria uma traição inimaginável da filosofia de honestidade pela qual parece ter sido feito. Ao invés disso, nos permite enxergar um tipo pálido de esperança que todos nós já fomos obrigados a encarar de frente uma vez na vida, e deixa que nos agarremos a ela como se fosse um bote salva-vidas, porque é exatamente isso que ela é.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

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Manchester à Beira-Mar (Manchester by the Sea, EUA, 2016)
Direção e roteiro: Kenneth Lonergan
Elenco: Casey Affleck, Lucas Hedges, Kyle Chandler, Michelle Williams, C.J. Wilson, Tate Donovan, Matthew Broderick
137 minutos

6 de fev. de 2017

Lady Gaga no Super Bowl: Por que ela ainda é a artista pop mais importante do nosso tempo?

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por Caio Coletti

“Tudo mudou quando Gaga chegou”. Quem proferiu essa frase fatídica foi a artista pop Allie X, em entrevista à Noisey – promessa de anos recentes que nunca caiu no gosto do público, Allie continua produzindo single incrível atrás de single incrível. Foi a primeira vez que eu vi uma nova artista dar esse crédito à Lady Gaga, e é interessante observar como, com o passar do tempo desde sua estreia em 2008, ficou cada vez mais fácil subestimar a influência dessa ítalo-americana de 30 anos de idade e cinco álbuns nas costas. Na noite desse domingo (05), ao se apresentar no SuperBowl 51, Gaga nos lembrou do por que ela é a artista pop definidora do nosso tempo, e o quanto ela fez para mudar nosso próprio conceito do “gênero”.

Gênero entre aspas, mesmo, porque o pop nunca foi um gênero musical. É importante estabelecer isso porque, antes de Gaga, havia uma sólida percepção de que pop era música eletrônica feita com sintetizadores, uma noção cristalizada muito pelo sucesso do Fever, álbum de Kylie Minogue que marcou o nascimento da era digital na música mainstream. Não é culpa de Kylie, a bem dizer – ícone do pop muito antes do Fever estrear, a australiana nunca pretendeu diminuir sua área de atuação a um estilo rígido de fazer música, e sempre entendeu que há muito mais na elaboração pop do que uma análise rasa poderia antever. Vale também sublinhar que, como elaboração musical. o Fever é um resgate de cacoetes da produção musical dos anos 80/90, anos antes disso virar moda graças ao Confessions on a Dancefloor, da Madonna. É infeliz o papel limitador que a história reservou para um disco tão incrível.

andyMas se o pop não é gênero, é o quê? Andy Warhol já diria que é procedimento artístico. Movimentos e gêneros musicais já inspiraram arte de outras áreas da produção humana (video o punk), mas só com o pop o contrário aconteceu. Surgido nas artes plásticas, o pop estabeleceu uma nova relação entre o artista e sua produção, sua sociedade, suas inspirações e seu público – o que Warhol fazia, em sua típica iconoclastia experimental, era ressignificar símbolos do consumismo ocidental em obras enganosamente simples que eram, na verdade, críticas veladas a esse mesmo consumismo ocidental. Ele se alimentava de ícones contemporâneos para produzir ícones ainda mais contemporâneos, em uma retroalimentação geniosa que acelerava um processo já natural da produção artística humana (afinal, tudo é inspirado em alguma coisa que veio antes).

É nesse complexo ciclo iconoclasta que se define o pop em todas as áreas de produção artística, incluindo a música. Lady Gaga entende isso melhor do que ninguém no cenário atual. Para dar-se o devido crédito, gente como Marina & the Diamonds, Lana Del Rey, Beyoncé e até Rihanna fazem arte pop com variados graus de discurso e competência, mas nenhuma delas entende o processo e a significância do que fazem tanto quanto Gaga. Quando Gaga surgiu em 2008, resgatando o eurodance e encontrando um senso de decadência e teatro no pop que estava perdido há décadas, não foi só um respiro de ar fresco – foi a última vez que testemunhamos uma revolução artística no meio mainstream.

Prova disso é a influência que ela teve, e tem até hoje. Ainda em 2008, Beyoncé lançaria o álbum I Am… Sasha Fierce, que estabelecia na artista uma dualidade e uma complexidade que não existia anteriormente. As parcerias com Gaga em “Video Phone” (do álbum de Beyoncé) e “Telephone” (do disco de Gaga) mudaram a imagem de Beyoncé para sempre – e é de se admirar a paixão com a qual a artista se jogou nas elaborações iconoclastas do pop, quase como se estivesse esperando por isso sua vida toda. Gaga abriu espaço para ela e outras artistas flexionarem seus músculos em um sentido que era convenientemente sufocado pela indústria antes disso.

lanaEssa liberdade conceitual dá espaço para uma evolução acelerada da cultura pop, operada, especial e primariamente, por mulheres. Basta olhar para a multiplicidade de “funções” que elas hoje desempenham na narrativa pop: La Roux chega com discos bissextos para resumir as influências da produção contemporânea, com seu ouvido aguçado firmemente plantado no chão (vide “Uptight Downton”); Lana Del Rey é uma elusiva comentadora cultural que esconde nas entrelinhas de suas odes tristes influenciadas pelo jazz e pelo hip hop uma crítica ácida e esperta à geração que a ouve (essencial: “Brooklyn Baby”); Rihanna usa de sua voz marcante como representação de uma personalidade forte que conversa com os anseios mais íntimos das lutas sociais sem perder o caráter essencialmente pessoal das letras (atenção para “Man Down”); Lorde trouxe uma sensibilidade alternativa e jovem a um gênero que estava começando a envelhecer (“Ribs”); e por aí vai.

Independente do caminho seguido por essas artistas, elas estão alargando um conceito aberto, no contexto do século XXI, por Lady Gaga. É prerrogativa de cada um apreciar ou não o que ela faz como música, mas seu status como figura cultural dentro do contexto pop é absolutamente irrevogável.

De volta para o presente

Onde entra o SuperBowl nessa história toda, no entanto? Na noite de domingo (05), Gaga fez em 13 minutos o que a maioria das artistas de sua geração não conseguiria fazer em 2 horas de show – uma união perfeita entre teatro, visual e música, um passeio por sua carreira que incorporou não só hits antigos como peças de iconografia das épocas em que eles foram lançados. A importância do legado de Gaga fica óbvia não só quando ouvimos “Bad Romance”, mas principalmente quando a vemos portando um keytar espelhado ou um disco stick. Mais do que isso, Gaga começou a se permitir auto-referência, no sentido em que usa elementos criados por ela mesma em um novo contexto, e cria novos significados para eles.

Ao cantar “Born This Way” quase completa, o que Gaga fez foi reutilizar um hino de aceitação em tempos de (relativa) paz como uma canção de protesto. Assistida pelo vice-presidente dos EUA, Mike Pence, cujas posições anti-LGBT são notórias, Gaga parecia mandar um recado: “Eu disse para vocês que essa música seria importante…”. Hoje em dia, ela passa como um recado político até discreto, mas não menos poderoso, através da música; na época, muita gente a criticou por ser “literal demais” em sua composição. A performance de Gaga no SuperBowl é um testamento de como o tempo influencia nossa percepção da cultura pop, e seu papel na história.

Com menos de uma década de carreira, o trabalho de Gaga já significa muito mais hoje do que significava na época, e mesmo assim parece que a imensa maioria do público não entendeu o recado. Ninguém vê uma revolução como uma revolução enquanto ela está acontecendo – os marcadores culturais são definidos de forma posterior, por um processo que é muito mais natural de memória humana do que controlado por qualquer indústria. O mito de que obras-primas são criadas por artistas que não tem pretensão de criá-las é ridículo em um contexto pós-arte pop, em que pretensão e intenção contam tanto quanto a recepção de uma obra. A arte pop só funciona se você está conscientemente querendo empurrá-la adiante, quebrando paradigmas sociais ou artísticos, extrapolando sua zona de conforto.

Ninguém tentou mais do que Lady Gaga nos últimos anos, e o resultado é esse: mesmo quando ela falha, ainda faz muito mais do que a maioria das artistas à sua volta. Andy Warhol ficaria orgulhoso.

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5 de fev. de 2017

Review: Por toda a sua importância, Fences ganha vida graças a um elenco fora de série

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por Caio Coletti

Você nunca viu nada como Fences no cinema antes. Assim como a peça de teatro de August Wilson foi pioneira em 1983 ao fazer sucesso falando de uma fatia da população (negra, pobre, dos anos 1950) raramente vista no teatro, a adaptação para o cinema dirigida por Denzel Washington, mais de três décadas mais tarde, continua sendo uma anomalia. Em parte, isso é trágico; por outro lado, é o que faz de Fences uma experiência tão densa e especial, quase obrigatória. Porque não conhecemos essas pessoas e as vidas que elas levam, a fascinação dos personagens e a coragem de fazê-los complexos e (por vezes) odiáveis é sublinhada, e a importância do filme como documento social reiterada.

A história não perde sua verve teatral na adaptação para o cinema – os longos diálogos e a mise-en-scene minuciosamente coreografada estão todos aqui, assim como os poucos cenários e o elenco de personagens limitado. Como diretor, Washington encontra sua voz nas sutilezas, conduzindo a montanha russa de emoções da história adaptada pelo próprio August Wilson com a segurança de quem conhece as linhas e entrelinhas de Fences como a palma de sua mão. Imersivo, Fences pode deixar o espectador exausto ao subir dos créditos, mas não foje dos tons e subtons mais pesados do material, gentilmente nos guiando pelos detalhes sórdidos das vidas invisíveis que revela.

A trama acompanha Troy (Denzel Washington), que trabalha como lixeiro para sustentar a família: a esposa dona-de-casa Rose (Viola Davis), o filho adolescente dos dois, Corey (Jovan Adepo), e o irmão Gabriel (Mykelti Williamson), que luta contra problemas psicológicos após sofrer um ferimento na guerra. Nas beiradas dessa história, o melhor amigo Jim Bono (Stephen Henderson), e o filho de Troy de outro relacionamento, o músico Lyons (Russell Hornsby). Fences se desenrola nas relações entre esses personagens, e analisa como uma personalidade gigantesca como a de Troy pode afetar aqueles a sua volta, sem ignorar as condições sociais que os conduziram até ali e continuam ditando tanto de suas ações.

Por toda a sua importâcia como registro social, no entanto, Fences ganha vida para o espectador por causa de seu elenco. No papel principal, Washington entrega sua melhor interpretação em anos – a linguagem corporal do seu Troy diz muito, do andar expansivo sob as roupas largas até a postura ameaçadora quando o filho lhe confronta. Washington é uma força da natureza em cena, dominando os espaços confinados de Fences com energia e autoridade, um paralelo perfeito para o que seu personagem faz com aqueles a sua volta. A sorte é que Viola Davis é a atriz do seu lado, e a americana entrega uma atuação supremamente emocional e desafiadora – a afeição entre os dois em cena e palpável, mas a competitividade também. Da mesma forma com que Rose não se deixa “esmagar” por Troy, Viola escapa da presença pervasiva de Washington (muitas vezes literalmente, se desvencilhando de seu abraço) para construir, discreta e sublimemente, uma personagem inesquecível.

O duelo entre os dois é fascinante de se observar, mas no colossal Fences sobra espaço para os coadjuvantes brilharem. Mykelti Williamson está especialmente engajante como Gabriel, fugindo de trejeitos fáceis para criar um retrato genuinamente tocante de um homem mentalmente quebrado pela guerra, mas estranhamente sábio em sua simplicidade. Stephen Henderson e Russell Hornsby , por terem menos presença em tela, lutam ainda mais para achar espaço para criar seus personagens à sombra de Washington, mas encontram respiros de genialidade em sua sutileza. O elo mais fraco da corrente é o jovem Jovan Adepo, mas o ator de The Leftovers entrega uma performance perfeitamente adequada para seu papel no filme – é só que, frente a tamanha grandeza, ele parece minúsculo.

Fences é talvez o mais perto de um verdadeiro épico que a temporada de premiações 2017 nos entregou. Com quase 2h30, ele nos leva para uma jornada dramática em que os personagens são completos mistérios para o espectador – mesmo ao desvendar seus passados, mentiras e decisões, a história escrita por August Wilson não parece interessada em fazer-nos entender de verdade quem essas pessoas são, mas em obrigar-nos a considerar e testemunhar suas ações como parte do ambiente social de sua época (e de hoje em dia também). Fences é poderoso pelo que mostra, muito mais do que pelo que diz, e nesse sentido poucas peças de teatro se prestariam a uma tradução tão genuinamente cinematográfica.

✰✰✰✰✰ (5/5)

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Fences (EUA, 2016)
Direção: Denzel Washington
Roteiro: August Wilson, baseado em sua própria peça de teatro
 Elenco: Denzel Washington, Viola Davis, Stephen Henderson, Jovan Adepo, Russell Hornsby, Mykelti Williamson, Saniyya Sidney
139 minutos

2 de fev. de 2017

Entendendo o Batman, ou: em defesa de Gotham e do cinema/TV camp

jerome-bruce_thumb2Jerome (Cameron Monaghan) e Bruce (David Mazouz) em Gotham

Eu sempre tive essa estranha fascinação por Batman Eternamente, filme de 1995 dirigido por Joel Schumacher, que surpreendeu a Warner pelo sucesso comercial e seguiu dois elogiados filmes do Homem Morcego dirigidos por Tim Burton. Vejam bem, eu sei que Batman Eternamente não é um bom filme. O diálogo é abismal, os personagens mal desenvolvidos e a extravagante direção de arte “um pouco demais” até para os puristas dos quadrinhos. Ainda assim, havia algo explorado em Batman Eternamente que as gerações posteriores do herói nos cinemas e na TV deixavam de lado, e isso me atraía para ele de uma forma inexplicável, que vai muito além daquela fascinação mórbida por filmes ruins que os amantes do trash, como eu, sempre cultivam.

Nos últimos dois episódios de Gotham, série da Fox que explora a juventude de Bruce Wayne e os primeiros passos do Comissário Gordon e de todos os vilões e heróis do mundo do Batman, eu vi essa fascinação renascer. Os episódios retrataram o retorno de Jerome Valeska (Cameron Monaghan), um ex-ajudante de circo que enlouqueceu e inspirou uma legião de fanáticos com seus crimes – tais fanáticos, por suas vezes, encontraram um jeito de trazê-lo de volta à vida, e ele continuou sua missão de trazer caos para Gotham City e, é claro, matar o jovem Bruce Wayne. Há algo na interpretação de Monaghan, na produção de Gotham e na forma como conta sua história, que ascendeu a chama de compreensão que Batman Eternamente não foi capaz de ascender.

Após uma adolescência e pós-adolescência inteira fascinado pelo Batman, foi a subestimada Gotham que me fez entender exatamente quem ele é.

forever_thumb2Charada (Jim Carrey) e Duas-Caras (Tommy Lee Jones) em Batman Eternamente

Keep it gay

Antes de qualquer coisa, que fique abudantemente claro aqui: o Batman é gay. Eu não estou dizendo que Bruce Wayne é homossexual, mas que o conceito do Batman é irrevogavelmente gay. Para quem souber inglês, vale dar uma olhada no espetacular artigo The Gayness of Batman: A Brief History, de Andrew Wheeler, publicado ainda em 2012 no site Comics Alliance. Um breve resumo: a partir da introdução do Robin, a sexualização do Homem Morcego foi inevitável, especialmente quando considera-se a repressão sexual que está entrelaçada com o personagem, incapaz de manter um relacionamento com seus interesses amorosos (todos femininos). Isso acontece, de acordo com Frank Miller, por um motivo simples: “Os desejos sexuais de Batman são tão drasticamente sublimados a sua luta contra o crime que não há espaço para qualquer outra atividade emocional. Note o quão ínspidas e frias são as histórias do Batman em que ele tem algum interesse amoroso”.

Embora Miller continue nessa entrevista a negar que o Batman seja gay (“Se ele fosse gay, seria muito mais saudável”), o autor se esquece de que, na época da criação do Homem Morcego, e ainda por muitas décadas enquanto suas histórias seguiam sendo publicadas, “sublimar os desejos sexuais” era um sentimento que a comunidade gay conhecia bem. A noção de que a homossexualidade era ruim, ou pecado, ou aberrante, levava muitos homens e mulheres homossexuais a se dedicarem a relacionamentos héteros a fim de “sufocar” sua verdadeira natureza. Isso ainda acontece atualmente, em larga escala, em determinados círculos sociais. Portanto, embora Bruce Wayne, como personagem, não seja homossexual, e provavelmente nunca vá ser, o conceito da criação do Batman e sua psicologia é extremamente conectado à história da comunidade gay.

batsy_thumb2Criadores se aproveitaram dessa associação para criar histórias que espertamente carregavam duplo sentido, estreladas pelo Batman, desde sempre. Como qualquer estudioso da narrativa gay pode lhe informar, as décadas passadas são cheias de histórias com entrelinhas gays, mas que nunca de fato tornavam explícitas essas “preferências sexuais” dos personagens. A série de TV do Batman, exibida entre 1966 e 1968, cimentou a conexão do Homem Morcego ao visual camp e aos vilões teatrais, e o que Joel Schumacher fez em Batman Eternamente (e no ainda mais terrível Batman & Robin) foi extrapolar tudo isso com pouca ou nenhuma sutileza. Em Eternamente, o traje do herói tem marcas anatômicas homoeróticas, o Bat-móvel é um símbolo fálico ainda mais óbvio, e a dupla de vilões Charada e Duas-Caras remonta a outro casal gay subentendido do cinema: o de Pacto Sinistro (1951), de Hitchcock.

O problema é que fazer cinema camp é uma corda bamba. Há um equilíbrio muito delicado que o diretor e a sua equipe precisam arquivar, e nem todo mundo é talentoso o bastante para isso – durante duas temporadas inteiras, Gotham raramente foi. Embora buscasse resgatar esse lado da série original, introduzindo caracterizações góticas dos vilões em ascensão, a série da Fox precisou do empurrãozinho de seus atores (especialmente Monaghan, Robin Lord Taylor e Jada Pinkett Smith) para seguir pelo caminho que sempre foi destinada a seguir. No terceiro ano, ao introduzir a paixão (não-correspondida) do Pinguim pelo Charada e, agora, trazer de volta o Coringa “alternativo” de Monaghan, Gotham se mostra a herdeira legítima de uma tradição teatral e grandiloquente do Batman, desvencilhada de pretensões realistas, que traduz o conceito sombrio do Homem Morcego em um mundo extravagante que lhe confronta.

O próprio Frank Miller admite que o relacionamento Batman/Coringa é um “pesadelo homofóbico” – a figura infeliz e reprimida, vestida de kevlar negro, é confrontada por um homem de trejeitos exagerados, maquiagem, roupas coloridas e cabelo tingido, cuja missão é destruir todas as convenções sociais ao seu redor. Há de se dizer que a codificação de um como herói e outro como vilão foi mais tarde aliviada de seus tons homofóbicos pela postulação de que a anarquia do Coringa vai muito além de sua extravagância, e é aí que chegamos no nosso próximo ponto.

joker_thumb2Coringa (Heath Ledger) em O Cavaleiro das Trevas

Justiça para todos

No final do episódio mais recente de Gotham, intitulado “The Gentle Art of Making Enemies” (spoilers a seguir), Bruce Wayne escolhe não matar Jerome, o proverbial Coringa em formação dessa história, mesmo pesando ser ele o responsável pela morte de Alfred, seu fiel mordomo e figura paterna. É claro, Alfred não morreu de verdade, mas Bruce acha que sim – poucas horas depois, na Mansão Wayne, uma conversa entre o jovem herdeiro e seu mordomo institui a primeira e mais famosa regra do Batman: não matar. Desde a sua incepção, Gotham sabia que qualquer história sobre o Batman precisava ser sobre a linha entre justiça e vigilantismo. O ambiente da cidade ficcional do título postula que a lei não é o bastante para colocar ordem na sociedade, e os bem intencionados da série precisam lidar com esse dilema o tempo todo.

O amadurecimento de Bruce é marcado por essa realização em Gotham, após anos de concentrar esse problema no outro protagonista, o Detetive Gordon (Ben McKenzie). O senso de justiça do jovem Batman se forja em uma situação extrema na qual ele vai se ver muitas vezes no futuro: com a oportunidade de matar um de seus inimigos, que causou tamanha dor a tanta gente, o perturbado garoto que perdeu os pais para um crime violento ainda assim escolhe o caminho mais difícil. As duas dimensões da história do Batman (essa do dilema da justiça, e aquela do mundo extravagante confrontando o herói reprimido) coexistem de forma tensa em toda e qualquer grande história do Homem Morcego desde sua incepção.

Christopher Nolan sufocou a parte camp do herói em sua trilogia de filmes, e por causa do talento do diretor, o resultado foram grandes thrillers criminais, mas não grandes filmes do Batman. Também por causa dele, e de forma sistêmica por causa de diretores badalados que equalizam narrativa “séria” com narrativa sombria, a noção de que cinema pop, kitsch e camp não pode nos dizer nada de significativo existe de forma muito mais intensa dentro da nova geração de cinéfilos e fãs de cultura pop em geral. No passado, havia tanto diálogo entre o que era considerado “erudito” e o que era considerado “popular” que essa divisão quase não existia – vide filmes como The Rocky Horror Picture Show (1975), Tubarão (1975), Star Wars (1977), De Volta para o Futuro (1985) e afins. A nostalgia pelo tempo em que “filmes de Hollywood eram melhores” não passa de nostalgia por um tempo em que os levávamos mais a sério.

E sim, eu sei que Gotham não tem o toque habilidoso e esperto de um Steven Spielberg ou um Robert Zemeckis – a série da Fox em muitos momentos pende mais para o camp desleixado de Joel Schumacher, mas eventualmente encontra grandeza em sua própria maneira, como fez nos episódios mais recentes. É preciso enxergar essa grandeza e celebrá-la, porque passamos por uma época decisiva para como a narrativa pop será vista no futuro. A dominação de “narrativas de prestígio” dentro dos circuitos acadêmicos do cinema e da TV nunca foi tão pervasiva e tão ultrajante – sob a pena de ignorar produções de gênero como Orphan Black, Penny Dreadful, ou todo o cinema independente de horror americano, recompensamos os mesmos tipos de excelências rígidas que aprendemos a recompensar. Nesse ambiente, um Batman que entende o lado kitsch do personagem é uma preciosidade que precisa ser preservada.

bvs_thumb2Batman (Ben Affleck) e Superman (Henry Cavill) em Batman vs Superman

O reverso da fortuna

É impossível falar de Batman hoje em dia sem falar do elefante na sala: Zack Snyder, Ben Affleck e Batman vs. Superman, que introduziu a nova versão cinematográfica do Homem Morcego. Tirando mais do que algumas dicas de The Dark Knight Returns, de Frank Miller, o filme nos introduziu a um Bruce Wayne envelhecido e cínico, que mata indiscriminadamente e considera o Homem de Aço uma ameaça à humanidade, mesmo que todas as suas ações indiquem o contrário. O retrato do personagem dessa forma causou ira em uma parcela dos fãs, que não reconheceram seu Batman justiceiro, ou mesmo viram sombra do dilema que o assombrou e o definiu por toda a sua história. Para o Bruce Wayne de Affleck, justiça com as próprias mãos não é uma dúvida, mas um imperativo.

É compreensível essa ira dos fãs. Não só a face do personagem apareceu desfigurada na versão de Snyder e seus roteiristas David S. Goyer e Chris Terrio, como essa mudança não faz sentido dentro de um paradigma de narrativa pop que aprendemos, mesmo instintivamente, a reconhecer. A maioria das histórias começa com um protagonista em posição confortável, ainda que com determinados problemas, até que algo joga seu mundo de cabeça para baixo, e nós podemos observá-lo se adaptar a essa nova circunstância e chegar transformado ao final da jornada (para mais sobre esse paradigma, vale ver o vídeo “Every Story is the Same”). Batman vs Superman adere a esse modelo de forma mais complicada, graças às exigências mercadológicas conectadas a ele.

Desde o lançamento do filme, em março de 2016, eu tenho repetido: Batman vs Superman precisa ser visto como um filme de horror remodelado por um setor corporativo que busca criar uma franquia de sucesso. A jornada do Batman durante o filme é o maior exemplo disso – fosse esse só um filme do Homem Morcego, nós veríamos o Superman como o vilão, mas não como o monstro da história. As assombrações e demônios de Bruce Wayne fariam esse papel, e Snyder, como grande esteticista que é, encontra uma forma única de elaborar isso, mostrando um Bruce machucado pelo tempo e pelas perdas que vieram com ele. Batman nunca foi tão reprimido, tão travado, tão desesperançoso quanto aqui. Sua jornada é do cinismo puro para a esperança cautelosa, e não o contrário – ele é como o Benjamin Button dos filmes de quadrinhos contemporâneos.

robin_thumb2A fantasia do Robin em Batman vs Superman

E sim, como momento de virada da história, a cena em que os dois heróis param de brigar por causa do nome de suas mães (“Martha”) é um pouco fraca, mas adquire uma nova dimensão se você pensar em Batman vs Superman como um filme do Homem Morcego que teve a perspectiva do Filho de Krypton embaraçosamente incluída para vender mais ingressos. Se víssemos essa história apenas pelo ângulo do Batman, esse seria o único momento em que a inerente humanidade do Superman, a parte humana desse “falso Deus” na Terra, nos seria revelada. Há uma grande história para ser contada em Batman vs Superman, e é preciso admirar sua ambição como blockbuster em contá-la da forma irrepreensível de Snyder, mesmo que outras exigências tenham entrado no caminho.

Mas e o tal lado kitsch do Batman, Caio? E o papo todo sobre o Batman ser gay? Há algo de fetichista ainda na forma como Snyder e Affleck constróem o seu Bruce Wayne – embora seja improvável que isso seja explorado nos próximos filmes, as dicas estão ali, da longa cena de preparação física do herói para enfrentar seu “nêmesis” até o momento em que vemos o uniforme de um antigo Robin pendurado como lembrete do motivo pelo qual o Batman de Affleck nos aparece tão amargo. Esquadrão Suicida e o Coringa de Jared Leto podem ter estragado essa noção ao tornar o vilão uma ameaça física e cheia de testosterona, desprovindo-o do contraste sexual e ideológico que ele representava ao Homem Morcego, mas não é o que vem ao caso aqui.

Gotham e Batman vs Superman podem não ser produtos de prestígio, mas marcarão época como a série de TV estrelada por Adam West fez nos anos 60, ou como os filmes de Burton/Schumacher fizeram nos 90. Eles expressam a contradição do Batman como mito (no sentido de mitologia): ele é sobre justiça e vingança, liberdade e repressão, trevas e luz. Em sua enganosa complexidade, Bruce Wayne assusta e fascina porque representa, como todo ícone da cultura pop, um produto do meio humano em que vivemos.