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29 de dez. de 2014

Review: O jogo de gato e rato perverso de “Garota Exemplar”

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por Caio Coletti

Se você perdeu a oportunidade de ir ao cinema e está se perguntando há uns bons meses o que possivelmente poderia haver de tão perturbador em Garota Exemplar,  aqui está a sua resposta: o novo filme de David Fincher  é uma história de amor. E de certa forma, ele o é de uma maneira bem clássica – o roteiro de Gillian Flynn, que adapta seu próprio best-seller, retrata as circunstâncias extraordinárias que fazem o casal principal, antes tentando salvar um relacionamento em ruinas, se mostrar de verdade um para o outro pela primeira vez na vida, sem encenações ou mentiras. Garota Exemplar não é um tomo idealista sobre a força do amor, no entanto: é um cruel estudo sobre as dissimulações que vendemos para as pessoas ao nosso redor, sobre o local profundamente enterrado na nossa consciência em que escondemos a verdade sobre nós mesmos, e as diferentes mentiras que contamos para quem nos cerca. Fincher e Gillian Flynn olham para isso tudo e declaram categoricamente que essa sátira corrosiva de humanidade é o que convencionamos chamar de amor. Perturbador o bastante pra você?

É preciso dizer que ninguém executaria um filme como esse tão bem quanto Fincher. O ex-diretor de videoclipes, eterno injustiçado do Oscar e autor de algumas das maiores pérolas do cinema contemporâneo (de Clube da Luta a A Rede Social) funciona como uma máquina. O trabalho de câmera realizado com o diretor de fotografia (e parceiro de longa data) Jeff Cronenweth enquadra a cidade minúscula em que o casal Dunne vive com a exatidão de um procedural televisivo, trabalhando com a edição ágil de Kirk Baxter e a trilha-sonora climática de Trent Reznor e Atticus Ross (vencedores do Oscar por A Rede Social) para criar a impressão de um thriller doméstico-sexual daqueles dos anos 80, na melhor tradição de Brian DePalma. Ao mesmo tempo, Fincher trabalha a favor do roteiro na direção dos atores e da encenação, ajudando Flynn no processo de se manter sempre um passo a frente do espectador, perpetuando entre nós (plateia) e eles (autores) o mesmo perverso jogo de gato e rato que se desenrola entre Amy e Nick. Muita gente se refere a Fincher como um cineasta pouco envolvido emocionalmente com seus filmes – mas é flagrante, pelo menos para este que vos fala, a sensibilidade do americano ao lidar com a natureza da história que tem em mãos.

Graças à delicadeza de Fincher por trás das câmeras, Garota Exemplar é um passeio de montanha-russa tanto quanto é uma sombria sátira social, e uma seríssima observação da natureza humana. Para não estragar detalhes da história, que tem mais reviravoltas do que se pode contar, basta dizer que Amy (Rosamund Pike) desaparece misteriosamente da luxuosa casa que divide com o marido Nick (Ben Affleck), no dia do aniversário de 5 anos de casamento dos dois. Enquanto a busca pela moça mobiliza toda a pequena cidade do Missouri, descobrimos pelo diário de Amy o histórico do relacionamento, desde o dia em que os dois se conheceram em Nova York até os problemas monetários e a doença da mãe de Nick, que os trouxeram de volta à cidade natal do moço, e aos anos mais sombrios desse casamento. Há algo de “novelizado” nessa história contada em voice-over pela personagem de Rosamund Pike, no entanto, e Garota Exemplar nunca nos dá motivos suficientes para confiar em qualquer um de seus protagonistas. Seja atuando para as câmeras de TV, para ex-namorados, ou para os próprios irmãos, eles são tão caricatos em seus traços maquiavélicos quanto são humanos.

Affleck e Pike ajudam muito nesse sentido, é claro. Ele arquiva uma de suas atuações mais sutis e bem-pensadas até hoje, se despindo do carisma de astro de Hollywood para criar um Nick exasperadamente ingênuo na primeira hora de filme, um paradigma perfeito do bom-mocismo americano, ao mesmo tempo em que trata de colocar nas dicas mais miúdas, no fundo dos olhos do personagem, o enorme egocentrismo de que ele é capaz. Pike é ainda mais eficiente nesse sentido, escondendo a Amy controladora por trás da fachada de garota perfeita, esposa perfeita, profissional perfeita. Há algo de superlativo na forma como ela retrata o raciocínio que guia os atos da personagem, e essa é definitivamente a performance que vai alçá-la ao lugar que sempre foi seu no Olimpo das grandes atrizes de sua geração. Talvez pela eficiência de seus protagonistas, Fincher trabalhe com tanto afinco nos coadjuvantes: bem guiados, Neil Patrick Harris, Tyler Perry, Kim Dickens, Patrick Fugit e Carrie Coon, entre outros, entregam performances desafiadoras.

Garota Exemplar não está acima de trapacear e manipular o espectador para que ele caia nas suas muitas armadilhas e se veja surpreendido por uma de suas reviravoltas. Pelo contrário, tira um prazer quase sádico em nos mostrar não conhecemos de verdade esses personagens – há de se argumentar que esse joguinho cruel com o espectador é parte da própria premissa do filme. Há algo de metalinguístico na forma como Flynn estrutura sua trama de místério, dialogando com clichês do gênero e inserindo narrativas dentro de narrativas para montar seu plot (o diário, a “caça ao tesouro”, a investigação policial, o circo da mídia – todos eles funcionam como linhas independentes que se cruzam numa história só). Nas mãos de Fincher, essa história é uma friamente calculada teia de mentiras, mas também uma angustiante realização das entranhas mais feias da intimidade conjugal, e da solidão essencial que existe em guardar as verdades mais sujas dentro de nossas próprias mentes.

✰✰✰✰✰ (5/5)

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Garota Exemplar (Gone Girl, EUA, 2014)
Direção: David Fincher
Roteiro: Gillian Flynn, baseada na novela de sua autoria
Elenco: Ben Aflleck, Rosamund Pike, Neil Patrick Harris, Tyler Perry, Carrie Coon, Kim Dickens, Patrick Fugit, Missi Pyle, Emily Ratajkowski, Sela Ward
149 minutos

25 de dez. de 2014

Person of Interest 4x10: The Cold War

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ATENÇAO: esse review contem spoilers!

por Caio Coletti

Person of Interest é uma história cruel. De forma quase sádica, semana após semana, a série de Jonathan Nolan se tornou cada vez mais ambiciosa na missão de mostrar o lado mais feio da humanidade. Mesmo que através do filtro “limpinho” da TV aberta americana, Person não nos furta do fato de que temos todos um segredo para esconder, e a tendência a cometer atos extremamente violentos para protegê-lo. É um trunfo da série lidar com essa temática, visto que se localiza em um mundo (cada vez mais futurista-distópico) em que todos somos vigiados 24h por uma entidade todo-poderosa capaz de interpelar humanos para agirem em seu nome. É quase como se o Deus “juiz, júri e carrasco” do Velho Testamento mandasse seu exército de anjos vingadores para a Terra, a princípio, mas Person fez um bom trabalho em mostrar o papel da compaixão e do código moral nesse processo – até Samaritan aparecer.

“The Cold War” mostra exatamente até onde o poder do sistema de vigilância comandado por Greer vai, e com a tensa cena em que Samaritan e Machine conversam através de suas interfaces humanas, é muito mais fácil enxergar porque Finch constantemente chama esse embate de inteligências artificiais “uma guerra entre deuses”. Person muito espertamente antropomorfiza essas figuras enigmáticas, da mesma forma que os gregos fizeram com as forças da natureza (Poseidon para o mar, Zeus para o trovão), e nos mostra as consequências de sermos fantoches em um conflito por controle. Por alguns momentos, enquanto Root e o pequeno Gabriel (Oakes Fegley, que esteve em Boardwalk Empire) se enfrentam usando as palavras de seus respectivos mestres, Person se transforma nessa estranha reflexão mitológica sobre autoritarismo, a natureza humana e liberdade.

Essa é também a melhor parte do caótico roteiro assinado por Amanda Segel (3x10, “The Devil’s Share” – review), que aplica reviravoltas e não parece se decidir quanto ao foco principal do episódio. O que não significa que ele seja ruim, pelo amor de Deus! “The Cold War” não perde pontos por não ser uma boa obra contida em si mesma, porque não almeja o ser: insere flashbacks do vilão Greer (com o charmoso Emrhys Cooper no papel) que nos levam para a época da Guerra Fria, dialogando com o tema ao mostrar o que levou o personagem a ver o mundo de maneira tão descrente; traz de volta Julian Ovenden (The Assets) como um agente do Samaritan, formando um par muito eficiente com Cara Buono em cena; e tem a maior concentração de discursos inflamados de Finch, o que é sempre bom para firmar a bússola moral da série – e dar a Michael Emerson a oportunidade de brilhar. Claro que nessa confusão Reese e Fusco ficam parecendo baratas tontas pela narrativa, mas esse é um problema menor quando todo o resto funciona tão bem.

Como de costume, Person sabe exatamente para onde está indo e o que quer dizer. Enquanto o embate ideológico (muito parecido com a Guerra Fria, que batiza o episódio) entre Samaritan e Machine se desenrola em um plano quase sobrenatural, a série nos firma decididamente no mundo real ao mostrar a humanidade em toda a sua gloriosa falibilidade.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

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Próximo Person of Interest: 4x11 – If-Then-Else (06/01)

24 de dez. de 2014

Review: “O Abutre” é o filme mais cínico (e mais assustador) do ano

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por Caio Coletti

“Um amigo é um presente que você dá a si mesmo”. Embora não dê para dizer que essa é uma das frases mais marcantes proferidas por Lou Bloom (Jake Gyllenhaal), protagonista de O Abutre, ela é exemplar para entender de que forma o filme de Dan Gilroy subverte certos conceitos e nos mostra uma realidade dura e sutilmente assustadora. A primeira obra do cineasta, que já tinha escrito roteiros para Gigantes de Aço e O Legado Bourne (entre outros), é um neoclássico americano porque observa os clichês e ideais mais arraigados na mentalidade contemporânea, e especialmente na mentalidade ianque, e mostra o lado vil e feio de todos eles. Lou Bloom tem tudo para ser um herói do mundo capitalista – ambicioso, proativo, metódico, carismático e autodidata –, mas O Abutre faz questão de mostrar o quão inócuos são seus discursos idealistas quando a única verdadeira regra é fazer o que for preciso para conseguir mais (dinheiro, prestígio, posição social, amor).

Em um trabalho de roteiro excepcional, Gilroy nos faz olhar para esse conjunto formidável de normas e condutas do “herói americano” e o traduz para o mundo real de maneira quase sádica. O Abutre é impiedoso com o espectador, eventualmente dono de um humor negro que é só seu, e de um olhar aguçado sobre as idiossincrasias humanas e a montanha de hipocrisia sobre a qual se sustenta a nossa sociedade. É também uma crítica ferina ao jornalismo sensacionalista, ao mote intocável do “if it bleeds, it leads”, e especialmente uma elegia sofrida para as faíscas de idealismo que um dia existiram nos jornalistas retratados em tela. A figura mais marcante nesse sentido é Nina (Rene Russo, perfeita), produtora de uma emissora de Los Angeles que começa a comprar as filmagens de Lou quando ele se envolve no negócio de buscar acidentes, assassinatos e outros acontecimentos sangrentos pelas ruas da cidade a fim de ganhar dinheiro vendendo as imagens para as famintas mídias locais.

Gilroy definitivamente escolheu o universo certo para localizar sua história: não só os nightcrawlers existem de verdade, como são um ramo profissional que reflete um dos lados menos convidativos da sociedade do espetáculo. Durante as duas horas de O Abutre, acompanhamos o personagem de Gyllenhaal explorar sem pudor algum a tragédia humana, a violência gráfica e a privacidade alheia, em troca de uma encenação melhor (e dos dólares a mais que vêm com ela). Não é só voyeurismo, não. Tampouco é fascinação pela estética sangrenta desses acontecimentos reais, ou banalização da violência. É a transformação da experiência humana em produto, da miséria em capital, do sentimento em mercadoria – O Abutre não precisa se esforçar para ser chocante, mas é eloquente o bastante para passar essa mensagem com a dose certa de sutileza.

Ajuda muito que todas as peças do quebra-cabeças de O Abutre como obra cinematográfica estejam perfeitamente no lugar, a começar pela trilha-sonora de James Newton Howard (indicado a 8 Oscar na categoria, e responsável pela música de todos os Jogos Vorazes). O compositor americano aposta num synthpop cheio de cordas e batidas aceleradas, que carregam o ritmo do filme nas costas e adicionam mais uma camada de ironia a O Abutre – Lou não é só um herói americano virado do avesso, como o é acompanhado de uma trilha que não cairia mal em algum filme oitentista de ação. Jake Gyllenhaal, por sua vez, pega as dicas do roteiro e da produção para compor o protagonista de forma impressionante: nas mãos do eterno Donnie Darko, Lou é um sociopata sutil de fala mansa, mas é também uma figura fora desse mundo. Há uma fome por ascensão social muito humana no olhar de Jake, mas há também a sombra de um espírito malevolente por trás dos sorrisos e risadas foras de hora, do cinismo do trato interpessoal, da violência contida por trás do disfarce civilizado. Gyllenhaal entende o personagem que está interpretando, mas acima de tudo entende o filme em que ele está inserido – e é tornando-se parte indispensável dele que sua performance se torna verdadeiramente superlativa.

O Abutre é um thriller intensamente urbano e atual, uma obra de narrativa infindavelmente mordaz e afiada, que sabe em que feridas cutucar e com que cores pintar seu horrendo retrato da sociedade contemporânea. É um trabalho muitíssimo preciso, que não se intimida de deixar um gosto amargo na boca do espectador mais atento. Se observado de perto, O Abutre pode muito bem se passar por um filme de terror: é assustadora a forma como ele retrata um mundo em que tudo é uma negociação, uma barganha, uma troca de favores. A conclusão inevitável a qual o filme chega é que não nos sobra nada de humano – cada vez mais, tudo é capital.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

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O Abutre (Nightcrawler, EUA, 2014)
Direção e roteiro: Dan Gilroy
Elenco: Jake Gyllenhaal, Rene Russo, Riz Ahmed, Bill Paxton
117 minutos

15 de dez. de 2014

The Newsroom 3x06: What Kind of Day Has it Been [SERIES FINALE]

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ATENÇÃO: esse review contem spoilers!

por Caio Coletti

“Há um buraco no casco do seu barco”, diz Will McAvoy para a esposa (e futura mãe dos seus filhos! yay!) McKenzie algumas cenas depois de descobrirmos que ela foi promovida ao cargo de nova presidente da ACN, e portanto vai passar o resto da carreira lutando contra executivos como o odiável Pruit (B.J. Novak), que atazanou a vida dos nossos protagonistas no episódio passado. “Esse buraco nunca vai ser consertado, nunca vai desaparecer, e você não pode comprar um novo barco. O que você tem que fazer é jogar água para fora mais rápido do que ela está entrando”, ele conclui. É difícil perdoar Aaron Sorkin pela discussão pífia e completamente iludida sobre estupro que ele promoveu em “Oh Shenandoah” (review), mas “What Kind of Day Has it Been” conclui The Newsroom da forma como ela viveu: uma série que precisa ser assistida por quem quer refletir sobre jornalismo, e redescobrir nela os conceitos mais fundamentais da sua profissão.

Sorkin nunca negou que sua série fosse um conto idealista – as metáforas envolvendo Dom Quixote vem desde a primeira temporada –, mas com a evolução da premissa e a vontade de abraçar mais diálogos em sua história, o roteirista foi capaz de descobrir as próprias falhas e, ao mesmo tempo, reafirmar em que pontos suas críticas eram válidas, e seu resgate de princípios era crucial. O tempo e a crítica fez bem a The Newsroom, porque ela não seria uma obra tão completa sem retratar de forma contundente, como o fez, a necessidade do confronto entre pontos de vista no processo jornalístico. A série da HBO, no final das contas, fugiu do moralismo e viu as situações do mundo moderno ensinando e desafiando tanto aos antiquados anti-heróis de Sorkin quanto eles ensinavam ao espectador desavisado.

É muito bacana a forma como “What Kind of Day Has it Been” é fiel ao que fez The Newsroom o que ela sempre foi: tanto nos flashbacks que mostram momentos de Charlie com Will e Mac, além de interações entre personagens secundários; quanto na presença de Leona (a sempre bem-vinda Jane Fonda), cravando num confronto com Pruit o ponto fundamental daquela situação do “buraco no casco do barco” que Will cita para Mac durante o que pode ser o diálogo mais crucial do episódio. Tanto um personagem quanto o outro encaram de frente uma situação muito real: o confronto entre o departamento financeiro e o departamento jornalístico não é só inevitável – é necessário. Significa que ambos estão fazendo seus trabalhos da maneira certa, e constitui só mais uma das milhões de negociações e jogos de poder dos quais o nosso mundo é feito.

Se há algo em que a terceira temporada de The Newsroom foi excelente, é em retratar esses conflitos. Em colocar a ética exigida dos nossos personagens em rota de colisão com a humanidade que é inerente deles, e em posicionar as forças que fazem oposição ao trabalho que eles precisam fazer no dia-a-dia. “What Kind of Day Has it Been” termina de forma muito emblemática, com o “good evening” de Will na bancada do News Night sinalizando que os conflitos desses personagens não acabam ali – embora The Newsroom se feche direitinho como narrativa, os desafios no jornalismo não admitem um ponto final. Caso admitissem, a própria prática da atividade perderia o sentido.

Notinhas adicionais:

  • Como esse é o último episódio de The Newsroom, é mais que apropriado render aplausos ao trabalho do elenco, que segurou a barra dos diálogos de Sorkin e da missão nada fácil de serem plataformas para as opiniões e discussões do roteirista ao mesmo tempo em que construíam seres humanos profundamente falhos e tridimensionais.
  • Inclusive, uma prova de que as personagens femininas de Sorkin não são caricaturas (embora esse processo tenha precisado de uma boa evolução desde a primeira temporada) são as atuações de Emily Mortimer, Alison Pill e Olivia Munn, só para citar as três protagonistas.
  • Uma série tão boa realmente precisava de uma trama como a da estudante vítima de estupro em “Oh Shenandoah”? Fica a lição, Sr. Sorkin: mais pesquisa antes de escrever e, principalmente, mais humildade na hora de abrir discussão sobre um assunto tão delicado.
  • B’bye, ACN!

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

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13 de dez. de 2014

Review: “Boyhood” é um dos feitos mais extraordinários do cinema (e da narrativa)

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por Caio Coletti

Boyhood não cabe em uma descrição. Esse é um daqueles filmes que precisam ser vistos porque as sensações que ele passa são tão surpreendentes, tão sutis, tão diferentes de tudo o que você já viveu em uma sala de cinema (e, talvez por isso, tão semelhantes as que você viveu na vida real), que deixar de vê-lo seria um crime. Vá para o cinema, use seu serviço de torrent, faça o que for preciso. Você não pode passar sem essa experiência, mas fique avisado: quando os primeiros segundos de Boyhood começarem na tela, dê ao filme tudo o que você tem. Não reaja a ele de maneira automática, não o julgue pelos parâmetros frios de quem espera ser eletrizado pelo incansável ímpeto narrativo e pelo milhão de acontecimentos absurdos em tela. Quando as luzes do cinema apagarem, respire fundo e se livre de toda essa expectativa – Richard Linklater fez do seu filme uma experiência transformadora, mas ele precisa que você se permita essa transformação.

Ele precisa que você se encante com a experiência de vida de Mason, e que veja o extraordinário no fundo dos olhos da personagem de Patricia Arquette, em uma atuação majestosamente sensível, e despida de qualquer ego, como a mãe do protagonista. Boyhood exige que você encontre o espetacular no rotineiro dos anos que passam – sabe como o tempo prega essa peça em que nada parece acontecer, mas quando olhamos para trás nos espantamos com o mundo de coisas que aconteceram? O filme de Linklater é completamente fiel a esse princípio. Ele quer que você se apaixone pelo carisma a toda prova de Ethan Hawke na pele do pai de Mason, mesmo que ele não seja o homem mais responsável, ou mais confiável, do mundo. Do seu jeito um pouco inapto, o personagem de Hawke encontra uma sabedoria imensa, ao mesmo tempo em que se mostra tão desorientado pelos solavancos da vida quanto o filho, em processo de amadurecimento.

Assistir à performance de Ellar Coltrane é algo semelhante a abrir uma cápsula do tempo, como muitos outros críticos apontaram. O protagonista foi contratado aos 7 anos de idade por Linklater, que se comprometeu a moldar seu filme de acordo com o que o ator se sentisse mais confortável e relacionasse melhor com a própria vida. Sorte do diretor, portanto, que Coltrane cresceu para se tornar um jovem com extraordinário poder magnético, que ele foi capaz de vestir o personagem por completo a partir de um certo momento, encarnando a introspecção e cada sensibilidade de Mason. É fácil ver como ator e personagem se confundem, e é uma experiência quase documental que Linklater filma com uma câmera pouquíssimo intrusiva – talvez a melhor decisão do diretor. Ele nos faz observar o tempo que passa e a experiência desses personagens sem de fato mergulhar neles, sem lançar mão de recursos subjetivos e ultra-sensíveis, deixando que a história faça o trabalho de nos envolver nela mesma.

A verdade é que todos nós estamos em crescimento, e é isso que Boyhood retrata. Talvez a missão mais difícil que ele peça de seu espectador seja a de olhar para essa conclusão, para essa observação de que todos nós somos obras inacabadas e navios errantes (a cena final da personagem de Arquette é simbólica em relação a isso, além de emocionalmente brutal), e encontrar a beleza nisso. Linklater nos diz, em seu roteiro que quebra todas as regras da narrativa convencional em favor de uma abordagem muito mais naturalista dos acontecimentos (como não poderia deixar de ser em um filme feito no decorrer de 11 anos), que nossa eterna busca por propósito é fútil, mas é também o que nos traz os momentos mais excepcionais que vamos presenciar. Nos diz que somos meros peõezinhos do tempo, nos agarrando aos amores que encontramos, e aos que por sorte ganhamos pelo caminho – e mostra que dentro dessa percepção existe uma liberdade absurda, que nós mal conseguimos imaginar.

Após uma troca de olhares de soslaio, Boyhood resume a sua colossal jornada cinematográfica em silêncio. É como se, depois de quase três horas de filme, ele já tivesse nos mostrado o bastante. Linklater não precisa de uma palavra final, porque reconhece que não existem palavras finais. Nessa aproximação quase assustadora com a realidade é que ele cria um dos feitos mais extraordinários que o cinema já alcançou como mídia, e como meio de contar histórias. De fato, Boyhood contou a maior história que poderia ser contada – a de todos nós.

✰✰✰✰✰ (5/5)

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Boyhood: Da Infância à Juventude (Boyhood, EUA, 2014)
Direção e roteiro: Richard Linklater
Elenco: Ellar Coltrane, Patricia Arquette, Ethan Hawke, Lorelei Linklater
162 minutos

9 de dez. de 2014

The Newsroom 3x04/05: Contempt/Oh Shenandoah

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ATENÇÃO: esse review contem spoilers!

por Caio Coletti

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Correndo o risco de ser um pouco auto-depreciativo, a maneira perfeita de começar a falar sobre “Contempt” é com o seguinte conselho: não confie em tudo o que a crítica diz, especialmente quando se trata de The Newsroom. Há um limite em relação ao quão equilibrados podem ser os jornalistas que assistem essa obra de ficção sobre a profissão que eles aprenderam a conhecer como a palma de suas mãos – o que não significa que alguma reflexão sobre a série deva ser descreditada, só é preciso ter em mente que um oceano de pré-concepções muito pessoais está envolvido nela. O crescimento de The Newsroom como série tem muito a ver com ouvir as críticas que foram atiradas em sua direção, mas também tem a ver com a evolução natural da narrativa televisiva. Esse terceiro ano é melhor porque The Newsroom está mais segura de si do que nunca, e é claro que está, depois de três temporadas no ar.

É fácil odiar o discurso de Aaron Sorkin sobre a nova mídia, por exemplo, em grande parte representada pela subtrama romântica entre Jim e Hallie, especialmente quando se vive constantemente no ambiente que o roteirista tanto critica. Falta um pouco de autocrítica para o escritor de internet entender que Sorkin sabe, também, em que momentos está certo ou errado. “Contempt” é inevitavelmente a cria do seu idealizador, mas não faltam momentos em que fica claro como o script tem consciência das falhas e das ações analógicas de seus personagens. The Newsroom é como o conto decadente de uma forma de fazer jornalismo que está prestes a morrer, e não parece advogar contra essa morte – parece tentar eternizar o que havia de bom nessa peça de museu e chamar a nova mídia para uma auto-análise menos soberba. Os detratores de The Newsroom a denunciam por ser moralista, mas não descem do próprio pedestal para fazê-lo.

O episódio é bem marcante nesse sentido meio metalinguístico, especialmente porque mostra a passagem de Will pela justiça americana no caso da fonte confidencial que já fez Neal fugir para a Venezuela. Esse terceiro ano parece ter sido reservado para The Newsroom contar sua própria história, e poucas vezes a mira de Sorkin foi tão precisa nos diálogos e nas interações entre os personagens, culminando em uma cena impactante entre Mac e a tal fonte, interpretada com olhar de desafio por Clea DuVall. É uma pena que tanta gente tenha uma visão tão limitada e maniqueísta (sim, maniqueísta) sobre a discussão que The Newsroom, mesmo com todos os vícios do seu autor, tenta levantar. Presos num eterno julgamento que quer decidir se uma peça de ficção é “correta” ou não, esquecemos de observar e nos envolver na discussão moral que ela tenta levantar. É a mesma grande falha do mau jornalismo moderno, aliás (que, ironicamente, repete as falhas do mau jornalismo anacrônico): presos no jogo de acusação, esquecemos do diálogo.

Observações adicionais:

  • Sorkin não esqueceu que seus personagens são essencialmente humanos, e nós também não. Apesar do moço sempre derrapar um pouco nas cenas mais sentimentais, ainda acontecem momentos tocantes como Will e Mac se casando, e o casal formado por Hallie e Jim se desfazendo.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

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3x05 – Oh Shenandoah

Ok, vamos falar sobre “Oh Shenandoah”. Para o pré-finale de uma série que se mostrou tão consciente de si mesma durante toda a terceira temporada, esse episódio é uma egotrip de primeira – e, talvez pela primeira vez em todos os meus reviews de The Newsroom, eu não estou dizendo isso de uma forma positiva. Do simples egocentrismo a mais flagrante falta de um senso de apatia por qualquer pesonagem e qualquer situação que Aaron Sorkin não tenha construído dentro de sua própria trama, “Oh Shenandoah” escapa com uma (só uma!) boa subtrama e um monte de bobagens revoltantes ao redor dela. Talvez a gente deva começar falando do que é bom, tudo bem? Só para não soar pessimista demais.

Quando voltamos para a newsroom da ACN, já fazem 52 dias que Will está preso, enquanto o governo espera que o tempo na cadeia o faça mudar de ideia e revelar a identidade de sua fonte confidencial (really, FBI, essa é sua melhor estratégia?). Enquanto isso, a emissora sente a tomada de controle por parte de Pruit, que está colocando em prática os conceitos de jornalismo cidadão que os protagonistas de Sorkin (e ele próprio, claramente) tanto desprezam. Não vale nem a pena gastar muitas linhas dizendo que o retrato que o roteirista faz dessa inovação na área é bem limitado – se estivéssemos em Star Wars, seria como dizer que só existe o Lado Negro da Força, mas até aí Sorkin se sai bem porque consegue criticar os pontos certos desse mundo que lhe deve parecer tão novo e estranho. Há um problema muito claro em chamar de jornalismo determinados elementos da expressão popular, e Sorkin é bom em identificá-los. É excelente a cena em que Sloan entrevista o técnico do ACN online sobre um aplicativo que é não só uma potencial ferramenta para stalkers de celebridades, mas também uma expressão gritante da banalidade social embutida em chamar isso de jornalismo.

Esse seria o ponto perfeito para The Newsroom concentrar seu episódio, mostrando como sempre que Sorkin possui a clareza da auto-crítica, mas também precisa ser ouvido. O problema é que “Oh Shenandoah” também quer discutir estupro, e nesse território o roteirista não encontra o espaço para diálogo que existe no jornalismo – e nem deveria encontrar. Quando Don tem seu encontro com Mary, vítima universitária de violência sexual que o todo-poderoso Pruit quer dentro de um estúdio com o garoto que ela acusou de ser seu violentador, a elaboração de Sorkin não está protegida pelo mesmo manto da convivência possível entre duas opiniões. Dizer que o antigo jornalismo está morrendo e que nem todos os princípios dele devem morrer junto é uma coisa, dizer que acusados de estupro – mesmo que inocentes – podem ser hostilizados pela sociedade se alguma plataforma denunciá-los sem o devido processo judicial é outra. A diferença aí está em uma simples presunção de realidade: enquanto o antigo jornalismo está de fato morrendo, acusados de estupro não estão de fato sendo hostilizados pela sociedade (como a reviewer do AVClub.com destacou brilhantemente no início desse review). E tentar calar o protesto de uma vítima não devidamente amparada pela lei é ainda mais revoltante por causa disso.

Da primeira temporada para cá, Sorkin evoluiu muito sua escrita em relação às personagens femininas, que ganharam traços mais fortes e atitudes bastante pró-ativas frente aos homens da trama. Mac, Maggie e Sloan são mulheres muito mais tridimensionais aqui do que foram no primeiro ano, mantendo uma humanidade básica (e, portanto, algumas falhas de caráter) ao mesmo tempo em que demonstram inteligência emocional, maturidade e eficiência no trabalho que fazem. É quando os elogios sobem à cabeça, quando pisa um pouco fora do ambiente cuidadosamente controlado, que Sorkin derrapa – e derrapa muito feio. Além de toda a grossa incompetência na história envolvendo Don e a vítima de estupro, o episódio ainda gasta tempo com Will, trancado em uma cela com o delírio materializado de seu pai, que joga todas as falhas que sabemos que o protagonista tem bem na cara do espectador. Não é tão fácil assistir um anti-herói preconceituoso e com ilusões de grandeza quando se sabe que ele (por ser o próprio alter-ego de Sorkin na trama) concordaria com cada palavra dita naquele desastroso diálogo num dormitório de faculdade.

Notinhas adicionais:

  • Também é difícil ligar muito para Maggie e Jim finalmente admitindo a atração um pelo outro. O único golpe emocional de “Oh Shenandoah” é a morte de Charlie, que deixará muitas saudades.

✰✰✰(2,5/5)

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Próximo The Newsroom: 3x06 – What Kind of Day it Was (14/12)

Red Band Society 1x10: What I Did For Love

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Ao invés de fazer uma cobertura detalhada de cada episódio de Red Band Society, O Anagrama vai trazer uma review por mês, de preferência de episódios marcantes para a continuidade da série.

ATENÇÃO: esse review contem spoilers!

por Caio Coletti

Nós d’O Anagrama tivemos muita sorte com Red Band Society nessa primeira leva de 10 episódios que a série lançou. Todas as vezes que resolvemos checar a quantas andava o drama, caímos em episódios acima da média para o que a temporada tem apresentado – tanto o piloto (review) quanto “Ergo Ergo” (review) mostraram uma produção que tinha consciência perfeita dos seus personagens, do ambiente em que a história se passava e da forma de lidar com ele. O mesmo acontece em “What I Did for Love”, o fall finale da temporada (mais três episódios já foram gravados para finalizar o primeiro ano, mas a FOX não anunciou uma data de transmissão ainda), embora seja preciso destacar que em capítulos anteriores Red Band apresentou muito mais inconsistência de tom, falha natural para séries estreantes, do que aqui.

Lembra do Hunter, aquele rebelde sem causa que apareceu em “Ergo Ergo” para mexer com as estruturas da bad girl Kara? Os episódios passaram e o moço, que parecia mais um dispositivo de trama do que um personagem, ganhou em profundidade e personalidade, se tornando um dos mais valiosos jogadores da série nesse décimo episódio. A forma como a história dele revolve a vida da personagem interpretada por Zoe Levin é essencial para o desenvolvimento dela, mas é também uma narrativa muito forte por si só, que se entrelaça no tema e clima geral do episódio de maneira triunfante. “What I Did For Love” coloca os problemas pessoas dos protagonistas da série em perspectiva, mas não parece diminuí-los – é como se o espetáculo de intrigas e ciúmes fosse tão humano quanto qualquer coisa que acontecesse em um ambiente em que vidas estão em jogo o tempo todo.

Red Band reproduz assim, à sua maneira muito particular, a mágica de tantos outros dramalhões hospitalares que conquistam fãs de televisão por aí (a referência óbvia é Grey’s Anatomy, é claro). “What I Did For Love” é um bom episódio de TV porque tira seus conflitos de uma situação muito específica que seus personagens estão passando, e ao mesmo tempo consegue ressoar de uma forma muito universal para o espectador. O dilema moral de Jordi; a conexão entre Kara e Leo (Zoe Levin e Charlie Rowe tem uma química perfeita); até o humor que aparece no flerte entre a enfermeira Jackson e o Dr. Naday; tudo nessa décima entrada da temporada é muito bem equilibrado de uma forma que Red Band Society não exatamente foi durante toda a trajetória desses primeiros episódios.

Garantidamente, a série teve seus momentos extraordinários, especialmente para uma estreante. Mesmo sem um futuro garantido na FOX, Red Band pode descansar em paz se terminar por aqui (ao contrário dos fãs, que foram deixados com muitas dúvidas no final do episódio): cumpriu com méritos a missão de contar a história de personagens facilmente identificáveis, e retratar de forma muito humana a situação pela qual eles passam.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

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7 de dez. de 2014

Review: “Fahrenheit 451” e a violência da auto-satisfação

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por Caio Coletti

Futuros distópicos já foram a grande tendência da ficção científica antes da nossa era de Jogos Vorazes e Divergente. Nos anos após a Segunda Guerra Mundial e a bomba de Hiroshima, escritores de fantasia por todo o mundo voltaram seus olhos para o futuro e encontraram perspectivas mais sombrias do que o público estava acostumado a ler. Daí nasceu a obra mais emblemática do gênero, 1984 de George Orwell, nos introduzindo a um governo extremamente totalitário e a uma sociedade que vivia de acordo com a propaganda governamental. Era um mundo onde a “verdade” era acatada, não questionada.

Publicada quatro anos depois de 1984, a obra definitiva do americano Ray Bradbury é Fahrenheit 451, uma visão emotiva de um mundo semelhante ao de Orwell, mas em vários sentidos muito mais desesperador. Conhecido pelo estilo evocativo de escrever e pela intensa poetização das emoções de seus personagens, Bradbury coloca em primeiro plano as consequências psicológicas da sua distopia, ao invés de focar nos meandros políticos e na complicação lógica de um mundo em que verdade e mentira são conceitos pra lá de abstratos.

Nosso protagonista é Guy Montag, um bombeiro dessa nova era, em que a profissão perdeu a função de apagar incêndios e passou a ateá-los, mais especificamente quando algum rebelde é denunciado por ter livros guardados em casa. A leitura é ilegal no mundo de Bradbury, e a rotina de seus personagens parece ser cuidadosamente desenhada para que eles absolutamente não tenham tempo para “pensar sobre as coisas”. Em Fahrenheit 451, seres humanos passam suas vidas olhando para as telas de um salão de TV em que tudo é um espetáculo e as pessoas na tela são chamadas de A Família – e, quando não estão fazendo isso, estão dirigindo seus carros a quase 200 km/h para desviar a mente do que quer que lhes deixe triste. Essa é a sociedade da diversão, mas Bradbury faz questão de mostrar que isso não significa que todos sejam felizes.

A personagem simbólica dessa diferenciação é Mildred, esposa do protagonista. A apatia e a alegria superficial que ela demonstra em boa parte da narrativa é contrastada com a cena, logo no início do livro, em que Montag chega em casa para descobrir que a mulher tomou um franco inteiro de comprimidos e está inerte na cama. Ela passa por um estranho tratamento médico (ou talvez seja mais espiritual, dependendo de como o leitor interpretar a metafórica descrição que Bradbury faz da cena) que a traz de volta à vida, mas a marca dessa descoberta é algo que ressoa infinitamente por Fahrenheit 451 – é o lado feio de uma sociedade que faz questão de esconder suas imperfeições e suas emoções negativas. Essa sociedade suprime o luto, a amargura e a depressão, e é incrível como Bradbury nos mostra que o sufocamento dessas partes tão sombrias da vida leva a um resultado ainda mais escabroso.

ray-bradbury-zenRay Bradbury (1920-2012)

Enquanto a maioria dos personagens segue acreditando nesse espetáculo que eles mesmo encenam, nosso protagonista encontra alguns aliados e algumas reflexões em seu caminho para a rebeldia. Faber é um velho literato de outra época do mundo, um sábio covarde demais para se voltar contra aquela ordem social que tanto lhe desagrada, e uma fonte inesgotável (ainda que falha) de informação para Montag. Bradbury retrata as descobertas do seu protagonista de forma paciente, fazendo-o passar pela infância, adolescência e amadurecimento das ideias que viram seu mundo de cabeça para baixo e colocam-no em frente a uma realidade completamente diferente da que ele (não) racionalizava em sua fúria de agente da destruição.

O chefe dos bombeiros Beatty é uma força antagonista tão formidável porque usa o conhecimento que Montag tanto quer adquirir contra ele. O escorregadio vilão criado por Bradbury é um intelectual venenoso que demonstra o quanto a cultura pode ser virada contra o indivíduo – e esse meio tão belo das palavras, que pode ser um instrumento incrível de libertação da ditadura do entretenimento, é o mesmo meio usado para construir as barras dessa prisão.

Em muitos sentidos, Fahrenheit 451 é mais alarmante ainda que 1984. O retrato desolador que o autor pinta desse futuro anestesiado, e do papel fundamental que as distrações (o “circo” daquele velho clichê do “pão e circo”) tem na construção desse cenário, é muito mais próximo do nosso mundo do que podemos imaginar. Talvez ainda não tenhamos proibido a leitura, mas dá para negar que a reflexão de mundo, e o tempo livre para realizá-la, anda se tornando um artigo cada vez mais raro? O grande terror de Fahrenheit 451 não vem de uma força extraordinária que nos inibe, mas de uma funesta auto-satisfação que nos faz dóceis e acomodados perante à noção torta de felicidade em que somos levados a acreditar.

Ray Bradbury escreveu sua obra-maior à sombra de uma das grandes tragédias da humanidade, talvez o ato de brutalidade mais descomunal do qual fomos capazes como espécie, mas reler Fahrenheit 451 hoje em dia precisa, urgentemente, ser um processo de reflexão. Montag, Mildred, Faber, Beatty e Clarisse voltam à vida e parecem nos olhar desafiadores, com os rostos chamuscados do fogo que arde na sociedade futurista da obra, e perguntar: o que mudou?

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

Fahrenheit-451 -

Nota adicional: Fahrenheit 451 (1966), de François Truffaut

Impossível dizer que a adaptação para o cinema do diretor francês envelheceu tão bem quanto a obra original, mas Fahrenheit 451 sempre pertenceu muito mais às páginas do que às telas. Mesmo trabalhando fora do elemento natural da história, o lendário cineasta de Jules & Jim faz um trabalho admirável de transpor para uma outra mídia a sensação agourenta do trabalho de Bradbury. 451 é um filme estranho, cheio de momentos intensos psicologicamente e tem atuações centrais no ponto – mesmo com a lendária briga com o diretor, Oskar Werner é um Montag absurdamente expressivo. Uma jovem, bela e talentosa Julie Christie faz papel duplo e protagoniza as principais mudanças da adaptação: foi ampliado o papel de Clarisse na história, com ela fazendo as vezes de guia de Montag pelo mundo da leitura (mesmo porque Faber foi eliminado na transposição).

Muito mais datado do que sua contraparte literária, Fahrenheit 451, o filme, segue sendo uma experiência mais do que válida pelas soluções inteligentes de Truffaut e as inventivas adições ao universo criado por Bradbury. O filme colore bem a história para quem já a conhece, mas não se sustenta tão bem como obra própria – especialmente se comparada ao impacto que a escrita do mestre americano provoca no leitor.

✰✰✰ (3/5)

Livro:

Fahrenheit 451 (Ray Bradbury, 1953)
Editora (no Brasil): Biblioteca Azul/Globo de Bolso
Disponível em: edição normal - edição de bolso

Filme:

Fahrenheit 451 (Inglaterra, 1966)
Direção: François Truffaut
Roteiro: François Truffaut, Jean-Louis Richard, baseados na novela de Ray Bradbury
Elenco: Julie Christie, Oskar Werner, Cyril Cusack, Anton Diffring
112 minutos

4 de dez. de 2014

Person of Interest 4x08/09: Point of Origin/The Devil You Know

Person of Interest

ATENÇÃO: esse review contem spoilers!

por Caio Coletti

4x08 – Point of Origin

Para uma série tão atual e relevante, Person of Interest é bastante antiquada. E o mais legal de vê-la se desdobrar temporada após temporada é perceber o quanto ela sabe o ser da forma certa – seja na estrutura narrativa exemplar, na determinação de ferro que os roteiristas mantem de olhar sempre para frente, ou mesmo nos temas e elaborações de cada episódio. Há algo de genial na forma como Person observa um mundo em completo caos urbano, esse bicho de sete cabeças com o qual aprendemos a conviver todos os dias, e extrai dele e de todas as suas peculiaridades tecnológicas tudo aquilo que permanece de mais básico e de mais fundamentalmente humano. Muitas vezes já se disse que Person é uma série sobre conexões humanas e o quão perdidos estamos sem elas, mas pouco se aprecia a forma como ela é capaz de caçar pelas pequenas infiltrações de humanidade no concreto cruel do mundo que retrata.

“Point of Origin” é um ponto essencial para a quarta temporada de Person, especialmente porque mostra a engenhosidade da trama que os roteiristas conduziram até aqui e a conecta com essa qualidade fundamental que a série sempre teve. Essa é uma história sobre a insustentabilidade de uma vida falsa – há um discurso de cerceamento de liberdade que todos nós sabemos que Person vai fazer conforme a temporada for evoluindo, mas há também a curiosa observação de que ninguém passa pelo mundo ser provocar impacto. É como jogar uma pedra no lago e esperar que ela não provoque aquelas famosas ondas concêntricas que se espalham por extensões infinitas.

Uma boa parte de “Point of Origin” mostra a agente do Samaritan, Martine (uma Cara Buono cruel e cheia de personalidade), “caçando” nossa amada Shaw com pouca ou nenhuma ajuda da formidável máquina de vigilância para a qual trabalha. E talvez seja por isso que ela e Dominic, o temido chefão da gangue The Brotherhood, sejam os vilões por excelência dessa quarta temporada de Person: eles entendem que nenhuma máquina endeusada é capaz de navegar o terreno das relações humanas, e sabem que essas relações são a própria matéria da vida de qualquer pessoa (e, portanto, as armas mais poderosas para quebrá-la). Conhecer de verdade as pessoas que protegem é a vantagem que o #TeamMachine sempre teve sobre quem quer que se confrontasse com ele, e é assustador perceber que agora eles não são os únicos com essa visão panorâmica das coisas.

A trama da semana complementa bem esse tema, e também traz Dominic e a Brotherhood para a ação, retomando aquela característica de Person de conectar os seus casos semanais à trama maior da temporada, especialmente em momentos fundamentais como esse. A guest star Adria Arjona, que vai estar na segunda temporada de True Detective, faz um trabalho cativante como uma policial infiltrada na academia procurando por um possível espião dentro da organização. É também nas relações pessoais que Person vai buscar a resolução dessa narrativa principal do episódio, perpetuando a missão do roteiro de Tony Camerino (3x18, “Allegiance” – review) em mostrar que todas as ações são motivadas e produzem consequências que afetam diretamente o mundo real.

Apesar de ter prometido uma guerra entre deuses no final da temporada passada, Person está nos entregando uma conclusão muito mais aterradora: o campo de batalha é bem aqui.

Notas adicionais:

  • Por último mas não menos importante: BEAR ACTION!

✰✰✰✰✰ (5/5)

Person of Interest

4x09 – The Devil You Know

Carl Elias é um exemplo clássico de como o desenvolvimento de personagens através das temporadas de Person of Interest é cuidado de maneira perfeita para o tipo de série que o thriller da CBS é. Como uma narrativa que se recusa a olhar para trás e encara cada virada de jogo sem medo de nos mostrar as consequências que ela traz para a trama, Person trata de seus personagens de maneira semelhante – eles nunca voltam a ser as pessoas que um dia foram, e a perspectiva do espectador em relação a eles é por vezes completamente alterada, de maneira que parece muito natural justamente porque se fundamenta num processo paciente de construção de personalidade e localização do personagem no mundo ficcional da série. “The Devil You Know”, nona entrada do quarto ano e fall finale da temporada, faz isso de maneira muito eficiente com o mafioso interpretado por Enrico Colantoni.

O ator ajuda bastante, é claro. Desde que apareceu devorando cenários com seu retrato escorregadio do criminoso capaz de derrubar, num jogo de pura inteligência, todos os chefões de Nova York, esse canadense de 51 anos acompanhou cada novo desenvolvimento da história de Elias com naturalidade. Na interpretação de Colantoni, vimos o personagem passar de vilão engenhoso para uma figura elusiva e ambígua, até chegarmos nessa quarta temporada e descobrirmos que Elias não é tão mau assim, se você pensar bem. Sua intelectualidade é certamente menos sombria do que a de Dominic, líder da Brotherhood, e como Finch se apressa em apontar: ele trouxe ordem para o caos. É audacioso da parte de Person of Interest dizer isso de um personagem que pode ser tão brutal, mas talvez Elias faça mais bem do que mau, no final das contas.

O fato de que esse tipo de figura é uma aliada importante do #TeamMachine só realça o quanto Person se tornou uma série que vê o mundo a sua volta de maneira perigosa – não poderia deixar de ser, com os agentes malignos da Samaritan espalhados por aí e, nesse episódio em especial, a identidade secreta de Shaw comprometida após um encontro nada fortuito com a esperta Martine. A série não suaviza as bordas do quanto um mundo vigiado pode ser funesto, beirando a ficção científica distópica, por vezes, no seu retrato do vilão-mor Greer e dos perseguidos heróis rebeldes em que nossos protagonistas se transformaram. O grande trunfo de Person, como aliás acontece com a maioria das distopias, é conseguir ser assim sem deixar de ser flagrantemente atual.

Enquanto se desenrola uma guerra de gigantes em um mundo construído à imagem do Panóptico (pra quem não lembra, relê o review do 4x01, que inclusive divide o roteirista Erik Mountain com esse episódio), Person retrata um outro embate muito mais urgente acontecendo em campos terrenos. A forma como as duas coisas estão interligadas é a arte da série, e o que nos faz voltar semana após semana para ver como a situação dos nossos heróis é cada vez mais adversa.

Notinhas adicionais:

  • A química entre Amy Acker e Sarah Shahi está cada vez mais adorável.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

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