Review: Dirty Computer (álbum e filme)

Janelle Monáe cria a obra de arte do ano com um álbum visual espetacular - e que desafia descrições.

Os 15 melhores álbuns de 2017

Drake, Lorde e Goldfrapp são apenas três dos artistas que chegaram arrasando na nossa lista.

Review: Me Chame Pelo Seu Nome

Luca Guadagnino cria o filme mais sensual (e importante) do ano.

Review: Lady Bird: A Hora de Voar

Mais uma obra-prima da roteirista mais talentosa da nossa década.

Review: Liga da Justiça

É verdade: o novo filme da DC seria melhor se não tivesse uma Warner (e um Joss Whedon) no caminho.

16 de abr. de 2017

Lady Gaga – The Cure: Onde erramos quando falamos de música pop?

chellaLady Gaga em seu show no Coachella 2017

por Caio Coletti

Nesse domingo de Páscoa (16), acordei com a notícia de que Lady Gaga havia estreado uma nova música na sua aparição no Festival de Coachella 2017. O show, transmitido para todo o mundo na internet, teve a cantora desfilando criações de seus quatro álbuns, com uma ênfase especial no Joanne, lançado no ano passado. E então veio “The Cure” (que você pode ouvir mais abaixo), supostamente o primeiro single de um EP ou edição especial do disco, no estilo The Fame Monster, lançado como complemento e oposição ao The Fame, disco de estreia de Gaga.

“The Cure” começa com sintetizadores agudos entoando um micro-gancho repetitivo que alude a algumas das canções pop mais bem sucedidas (e mais imediatamente esquecíveis) dos últimos anos, das criações do The Chainsmokers à “Sorry”, do Justin Bieber. Em seguida, a música desagua em uma melodia redondinha levada com garra por Gaga, sempre convicta nos vocais – em termos de composição, o refrão é formalmente esperto, fugindo discretamente da rigidez do estilo, mas “The Cure” nunca quebra o molde contemporâneo do pop-eletrônico de forma significativa.

Eu não quero dizer, caro leitor, que você não pode gostar de “The Cure”. Não tenho autoridade nenhuma para dizer isso, nem se quisesse. É uma canção competente cuja conexão pessoal com você depende de inúmeros fatores externos à criação da artista, do momento que você está passando em sua vida até o conjunto de gostos e conceitos que você acumulou com os anos. O objetivo de qualquer crítica que possa se seguir nesse texto não é atacar seu gosto pessoal pela canção, mas observar o contexto em que ela aparece, e o que ela significa para a carreira e a narrativa de Lady Gaga.

Esse é o problema que me incentivou a dar a esse texto o título que ele tem. Nosso erro ao falar de música pop é que nos perdemos em paixões e pessoalidades, em discussões cheias de respostas rasas, e não somos capazes de admitir as falhas naquilo que gostamos. “The Cure” não é o meu tipo de pop inofensivo, e é por isso que eu, particularmente, não gosto dela. No entanto, muito além disso, eu me posiciono como crítico a ela porque o pop, na minha visão, não pode e não deve ser inofensivo, mesmo que haja pop inofensivo por aí que eu goste de ouvir.

Já expliquei nesse site centenas de vezes qual é a minha visão sobre o pop como arte – mais recentemente, em um artigo sobre a própria Gaga. A ideia do pop como “música descartável” não me desce porque ele tem o poder de deixar uma marca indelével na cultura, nas pessoas e, por consequência, no mundo. Ele tem a potencialidade de ajudar a quebrar tabus, e alimenta de forma definitiva as produções artísticas que virão depois dele. Como a própria Gaga costumava colocar: “No pop, você sabe que foi bem sucedido quando sua arte tem um elemento de crime”.

Há elemento de crime (cultural) em “Perfect Illusion”. O lead single do Joanne é uma óbvia e inteligente reversão de expectativas, inserindo um pop com pulso e garra de rock n’ roll, mudança de tom ao estilo anos 80, e uma letra sobre o passageiro sentimento de êxtase do mundo contemporâneo, sempre em velocidade alucinante (como a canção, inclusive). No dia do lançamento de “Perfect Illusion”, cada repetição da música nos meus fones de ouvido era uma nova camada no meu entendimento dela. Em “The Cure”, essa dimensão profunda e fascinante não existe, não importa quantas audições você faça.

Eu não acho que Lady Gaga fez “The Cure” para “relaxar e se divertir”. Acho que fez de forma calculada para ganhar um hit tradicional nas paradas americanas – o que, a longo prazo, pode ser uma jogada acertada. É de se lamentar, no entanto, que uma artista tão única e genuína quanto ela precise fazer pop “inofensivo” para chegar lá, e o meu medo é que, quanto mais elogiarmos e aclamarmos decisões como essa, mais fundo no poço do “mais do mesmo” o nosso pop ficará.

Lady Gaga é a artista pop mais importante do nosso tempo porque ela faz escolhas diferentes. Porque tira prazer em chocar ouvidos despreparados e conquistá-los mesmo assim. Porque tem afetado e moldado a nossa cultura de forma mais definitiva do que qualquer outra artista pop. Se esse lançamento for indicativo de um novo caminho pelo qual Gaga pretende seguir, seja por pressão comercial ou vontade própria, e não importa o quanto eu ou você goste ou desgoste da canção, nós acabamos de perder uma das nossas grandes inovadoras. Na trajetória dela, “The Cure” precisa ser a exceção, e não a regra.

coach

4 de abr. de 2017

“Em terra de cego…”: Legion não é tudo isso que você ouviu (e, ao mesmo tempo, é)

legionDan Stevens como David Haller e Aubrey Plaza como Lenny

por Caio Coletti

“Em terra de cego, quem tem um olho é rei”. Essa é a frase, um daqueles ditados de “sabedoria” popular/clichês literários, que continuava surgindo na minha cabeça enquanto eu assistia ao oitavo e último episódio da primeira temporada de Legion, da FX. Um pouco de contexto para quem caiu de pàra-quedas nesse texto: a série em questão é uma parceria da emissora americana com a Marvel Studios, adaptando um personagem do cânone dos X-Men, um filho do Professor Xavier que tem a mente dividida em várias personalidades, cada uma controladora de um tipo de poder. Legion toma várias liberdades com o personagem, é claro, mas essa não é a questão aqui.

A aclamação quase universal da produção da FX, comandada por Noah Hawley (Fargo), me incomodou durante todas as oito semanas em que a série ficou no ar. Tanto da parte da crítica quanto (principalmente) do público, Legion se tornou unanimidade – uma produção tão absurdamene diferente e completamente genial que virou uma das paradas obrigatórias de 2017 para quem é ligado em cultura pop. A ideia difundida  era que Hawley, com liberdade criativa após o sucesso de Fargo, havia virado a fórmula da história de super-heróis de cabeça para baixo, introduzindo elementos bizarros e engenhosidades psicológicas à história do mutante David Haller, criando um espetáculo visual como nenhum outro no gênero até hoje.

rotator_xlarge_uncannyDavid Haller, o Legion, nos quadrinhos

Em muitos sentidos, essa ideia está correta. Se você, caro leitor, passeou pelos oito episódios de Legion durante os últimos dois meses, sabe do que estou falando – os diretores da série, especialmente Michael Uppendahl, constroem um mundo hipnotizante para os olhos, tirando ideias de uma fonte inesgotável de criatividade. Embora o uso de câmera lenta seja talvez excessivo, Legion tira belas invenções visuais de outros cantos, seja do trabalho excepcional de cabelo & maquiagem na série ou das brincadeiras conceituais com filmes mudos (em uma inesquecível sequência no episódio 7 da temporada) e referências estéticas do cinema de horror. Que testamento glorioso para a era de ouro da televisão o fato que Hawley, Upeendahl e companhia tiveram liberdade para fazer tudo isso dentro de sua plataforma.

Narrativamente, Legion é construída em terreno mais instável do que visualmente, e é aí que começa o meu problema com a série. Em muitos sentidos, a jornada de David durante esses oito primeiros episódios é uma metáfora esperta para a convivência de um homem com uma doença mental, e o isolamento que ele sente da mulher que ama (a Syd Barrett de Rachel Keller) é de quebrar o coração para quem conhece histórias reais tão similares, ainda que separadas por todo um universo de fantasia. Fosse coesa e genuinamente interessada nessa temática, Legion poderia ser uma obra prima – no entanto, Hawley e companhia parecem usar a metáfora inteligente que encontraram apenas como escada, assim como fazem com outras temáticas nas quais tocam, mas nunca desenvolvem (de co-dependência psicológica à corrupção institucional, passando por política de coexistência).

legion402O deliciosamente exagerado Jemaine Clement como Oliver

Mais decepcionante ainda é perceber que o lugar aonde Legion quer chegar usando essas escadas é absolutamente convencional. Pode não parecer, em meio as maluquices do roteiro e da direção, mas você já viu isso antes – em seu coração, Legion é só mais uma história de um salvador bem intencionado e dado ao auto sacrifício, só mais uma história da namoradinha do herói que tem exatamente o poder certo para salvá-lo, só mais uma história de um vilão megalomaníaco que deseja ser Deus. Certos momentos são gritantes dessa tendência da série ao clichê, seja o confronto final entre David e sua “personalidade má” ou na missão de salvamento que seus amigos montam não uma, mas várias vezes, para o protagonista. Hawley estica e distorce essas histórias sobre sua lente freaky, mas elas ainda são as mesmas histórias que estamos ouvindo há décadas, e elas fogem insistentemente do impulso de dizer algo novo.

Essa característica é também muito reflexiva do público de quadrinhos, e portanto dos produtos audiovisuais derivados deles – ao mesmo tempo em que clamamos por inovação, parecemos viver em constante terror que as editoras façam uma mudança definitiva em seus personagens e padrões narrativos. Essa desconfiança pública amedronta as companhias de entretenimento, que ficam presas em um meio termo entre novidade e tradição impossível de se arquivar sem comprometer a integridade artística, mesmo quando ela é o principal ponto de venda do produto, como com Legion. Da forma como pode ser feita, a série da FX é um banquete para os olhos e uma frustração para os ouvidos genuinamente cansados de ouvir histórias repetitivas no subgênero mais importante da nossa cultura pop.

6549c0dc-74b8-4840-895f-510344982883Heróis se encaram em imagem promocional de Capitão América: Guerra Civil

A aclamação de Legion é óbvia e imediatista, e a série não é “tudo isso” que você tem ouvido, pelo menos não se você parar por um segundo para prestar atenção nela. Dito isso, seu sucesso com uma abordagem visual tão única ainda pode trazer bons frutos para a evolução do gênero, porque embora discutam temas muito mais bem trançados e importantes (militarização, identidade e ética governamental, para citar os primeiros que vem à mente), os filmes do Universo Marvel ainda são ridiculamente indistinguíveis em sua abordagem estética e narrativa. Se um sucesso impactará ou não o outro, só o tempo dirá, tanto quanto as inovações lineares e metalinguísticas de Deadpool podem inspirar outros estúdios a apostarem em uma quebra dos valores e padrões da narrativa de super heróis.

Por enquanto, eu continuarei assistindo Legion, em grande parte pela virtude das performances de Dan Stevens, Aubrey Plaza e Jemaine Clement, que mesmo presos nas convenções quadrinescas conseguem criar ícones instantâneos em tela, buscando o exagero para contrapor os aspectos menos empolgantes da narrativa. Continuarei assistindo também para o caso da série resolver contar uma história tão deliciosamente ousada quanto sua estética, a princípio, sugeriu – mas, que fique avisado, até paciência de fã tem limite.