Review: Dirty Computer (álbum e filme)

Janelle Monáe cria a obra de arte do ano com um álbum visual espetacular - e que desafia descrições.

Os 15 melhores álbuns de 2017

Drake, Lorde e Goldfrapp são apenas três dos artistas que chegaram arrasando na nossa lista.

Review: Me Chame Pelo Seu Nome

Luca Guadagnino cria o filme mais sensual (e importante) do ano.

Review: Lady Bird: A Hora de Voar

Mais uma obra-prima da roteirista mais talentosa da nossa década.

Review: Liga da Justiça

É verdade: o novo filme da DC seria melhor se não tivesse uma Warner (e um Joss Whedon) no caminho.

25 de abr. de 2010

Boletim Cinéfilo Mensal (Abril/2010)

Notícias (nunk excl) boletim abril 1

O rosto (e o registro em celulóide associado a ele) é de um dos mestres do cinema do século XX, mas a reputação, ao menos nesses últimos meses, tem sido mesmo a de criminoso. Ironicamente, foi logo depois de completar o célebre suspense O Inquilino, que também protagonizou, sobre um tímido burocrata que aluga um apartamento cujo dono anterior cometera suicído e suspeita que seus vinzinhos conspiram para que ele acabe fazendo o mesmo, que Roman Polanski viu-se em um avião com destino a Europa, na condição de foragido da justiça americana. A acusação veio de Samantha Geimer, uma jovem americana, na época menor de idade, que prestou queixa de abuso sexual contra o diretor, exatos oito anos depois do brutal assassinato da esposa deste, a atriz Sharon Tate, pelo célebre psicopata/neonazista/líder-de-seita Charles Manson. Desde então, Roman se tornou o primeiro fugitivo da justiça a vencer um Oscar, o de melhor direção pelo filme de guerra O Pianista, que Harrison Ford aceitou pelo amigo, seu diretor em Busca Frenética, e veria o quarto de seus filmes a estrear em Berlim, The Ghost Writer, lhe garantiu o Urso de Prata de Melhor Direção, se a justiça não o tivesse surpreendido em setembro passado, quando chegava a Zurique para receber um prêmio honorário.

De lá para cá, ele esteve encarcerado em seu chalé na estação de ski de Gstaad, na Suíça, e por enquanto espera o veredicto do Ministério da Justiça polonês, chefiado pelo aparentemente indeciso Folco Galli, que disse esperar um pedido formal do tribunal ianque para efetuar a extradição do cineasta. O que tem provocado mais comentários sobre o caso de polícia que se tornaram esses últimos trinta anos de vida do cineasta, no entando, é o fato de que a vítima Samatha Geimer, hoje casada e mãe de dois filhos como o próprio cineasta, já disse ter perdoado seu agressor e tentou diversas vezes fazer a justiça americana declarar o caso como encerrado. Depois da tentativa de arranjar um julgamento sem a necessidade de extradição de Polanski, o advogado Hervé Témime agora espera que as autoridades da terra natal do diretor tomem a decisão que ele define como “dizer a verdade e devolver de uma vez por todas a liberdade” ao seu cliente. Enquanto a novela não alcança seus capítulos finais, resta conferir o que o cineasta pôde fazer na ilha de edição de The Ghost Writer, mesmo a distância.

O que o trailer da nova obra mostra, ao menos, é um suspense dramático de alta tensão, desses que parecem estar na moda entre os diretores veteranos. Para efeitos de comparação meio toscos, The Ghost Writer, aparentemente, é o Ilha do Medo de Polanski, com uma pequena diferença: saem os estudos sobre a psique humana, entram as tramóias políticas em que um escritor (Ewan McGregor) se envolve ao aceitar redigir a “auto-biografia” de um polêmico primeiro-ministro britânico (Pierce Brosnan). Detalhe: a adaptação da novela de Robert Harris é o primeiro roteiro próprio que Polanski dirige desde 1999, quando chegou aos cinemas O Último Portal, estrelado por Johnny Depp. Em terras brasileiras, dá para conferir a peripécia do cineasta (e futuro presidiário?) a partir de 28 de Maio.

boletim abril 2

A vida é assim: enquanto uns vêem a própria liberdade ameaçada por algo que o tempo feixou para trás há décadas, outros colhem os louros de triunfos bem mais recentes. Quando Gladiador estreou em 2000, se tornando um dos maiores fenômenos de bilheteria e crítica do ano, só se falava de Ridley Scott e do novo astro que este “criara”, o australiano Russel Crowe. O diretor, veterano de quatro décadas dedicadas ao cinema e comandante de clássicos do pedigree de Blade Runner – O Caçador de Andróides, Alien – O Oitavo Passageiro e Thelma & Louise, sentiu pela primeira vez o gosto do reconhecimento universal ao trazer de volta à moda os épicos de capa e espada que um dia foram o forte da produção hollywoodiana. Tempos de Ben-Hur e Cleópatra, obras em que Scott se inspirou sem por isso perder a atenção da platéia moderna, em muitos sentidos mais cínica e exigente em relação a espetáculos e jornadas de personagem. O triunfo dele que é, indubitavelmente, um dos grandes mestres de câmera do cinema mundial, foi o começo de um longo processo que culmina com a definição de 2010 como o ano cinematográfico dos épicos. E entre Louis Letterier com Duelo de Titãs, Mike Nichols e seu Príncipe da Pérsia e até o chinês John Woo com o recente A Batalha dos Três Reinos, Scott volta a mostrar toda a sua perícia em comandar espetáculos grandiosos com o explosivo Robin Hood. Ah, e Crowe bateu cartão por lá, também.

Dono de uma produção atribulada que incluiu a troca de atrizes para viver Lady Marian (de Sienna Miller para Cate Blanchett, eu ouvi alguém reclamando?) e uma total reformulação do roteiro, Robin Hood passou de subversão em que Crowe interpretaria tanto o herói-título quanto o vilão, o Cherife de Nottingham, para trama de origem que, no melhor estilo “estudo-de-personagem-com-batalhas-épicas”, mostra como o homem Robin Longstride (Crowe), se tornou o herói Robin Hood. O processo inclui o sueco Max von Sidow no papel misterioso de um certo Sir Walter Loxley, William Hurt encarnando o personagem real William Marshall, descrito por vários autores como “o maior cavaleiro que já viveu”, Danny Huston assumindo o fardo que já foi de Patrick Stewart e Sean Connery, em filmes diferentes como o rei inglês Ricardo Coração-de-Leão, e até o semi-desconhecido Matthew MacFayden, o cara da vez como o vilão de Nottingham. O roteiro é de respnsabilidade de Brian Helgeland, conhecido por textos díspares em qualidade, tais quais Coração de Cavaleiro, Sobre Meninos e Lobos e até o recente Aprendiz de Vampiro. Resta saber se ele acertou dessa vez. Se a segunda prévia do filme a cair na rede for o bastante para algum julgamento, dá para esperar muito do novo Robin Hood.

Mas enquanto 14 de Maio não chega para os cinéfilos brasileiros, o filme de Scott vai fazendo uma notável carreira antes mesmo de estrear, sendo selecionado para abrir o Festival de Cannes 2010 e tendo rumores de continuação pipocando para todos os lados. O diretor, aliás, está com a corda toda em estrevistas, e soltou o verbo sobre o esperado quinto filme da franquia Alien, iniciada por ele em 1979, que estava cotado para dirigir. Segundo Sir Scott, o projeto está em fase de polimento de roteiro, se passa três décadas antes dos acontecimentos do primeiro filme, não deve ter Sigoruney Weaver no elenco (mas pode ser protagonizado novamente por uma mulher) e visa explorar como a nave encontrada pelos humanos no primeiro filme, lotada de ovos da criatura, foi parar lá. Os fãs esperam, ansiosos, que o mistério sobre o carinhosamente apelidado Space Jockey (a criatura mostruosa que pilotava a tal nave) seja enfim solucionado.

P.S.: Por falar em Cannes, o festival francês deve ser tema de uma série de posts a partir da próxima semana de cinema por aqui, então aguardem uma overdose de informações sobre o maior festival do mundo do cinema!

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Estou com uma pilha de páginas aqui na minha frente. Acho que já é a quarta versão do roteiro. É um trabalho em andamento. Já sabemos como será a história, agora estamos trabalhando para melhorar os três atos e os personagens. Será ambientado em 2085, trinta anos antes de Sigourney. A questão é descobrir quem diabos é o Space Jockey. Aquele cara sentado na cadeira da nave alien, lembra dele? Acho que vou ter que redesenhar as versões preliminares dos elementos do primeiro filme, como o Face Hugger. Não quero repetir. Mesmo o alien, como design, já está desgastado. Quando a produção engrenar mesmo, certamente vou conversar com H.R. Giger. Talvez a gente ivente coisas completamente diferentes”

(Ridley Scott atende as preces que os fãs vem fazendo desde 1997 e enfim mostra entusiasmo para continuar a série da forma certa)

19 de abr. de 2010

Bastardos Inglórios (Inglorious Basterds, 2009)

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Sejamos sinceros, contar uma história não é uma missão qualquer. Trata-se, talvez até mais puramente do que em qualquer outra situação, de uma arte, de uma complexa equação que precisa ser arranjada de acordo com regras claras, entre rígidas e flexíveis, e ainda assim soar criativa dentro de sua própria fórmula. É sutileza demais para muita gente, e ainda assim é impressionante a quantidade de artistas que alcançam sucesso em tal tarefa. Isso falando em criar narrativa, é claro. Quando o assunto é a construção de um mundo particular a tudo que cerca uma obra de arte, aí definitivamente estamos afunilando a seleção. Gente dotada de estilo próprio, que faz de uma narrativa mais do que uma linha a ser seguida, enfeitando-a com sua própria forma de ver e fazer arte até o momento em que a trama é acessório em meio a toda essa ambientação que tanto encanta, ainda mais numa sala de projeção. Tim Burton, Robert Rodriguez, Woody Allen, Pedro Almodóvar. E, claro, Quentin Tarantino. Se alguém duvidava do merecimento da presença do diretor e roteirista na lista, Bastardos Inlgórios deve cumprir bem seu papel de prova final. Isso sem falar que reinventar a História (com H maiúsculo, aquela mesmo de sua época de colegial) e ainda se sair com uma das peças de cinema mais divertidas do ano passado, definitivamente, não é para qualquer um.

É verdade que Bastardos tem as falhas e vícios de seu diretor, seja na desconexa divisão em capítulos ou na forma de criar narrativas paralelas que carecem de equilíbrio no tempo de tela. Ainda assim, a peça de roteiro que Tarantino está lapidando a mais de uma década e que quase abandonou (“de uma forma que me libertasse”) alguns anos atrás tem muito mais acertos do que erros, e o diretor marca um ponto a mais para sua obra ao confiar em um elenco excepcional. Primeiro, a trama, dividida em dois focos básicos. Para começar: Shosanna Dreyfuss (Mélanie Laurent) é uma judia escondida como proprietária de um pequeno cinema em plena Paris ocupada pelos nazistas. É quando ela é abordada pelo neo-astro Fredrick Zoller (Daniel Brühl), ex-soldado e novo queridinho do ministro da propaganda nazista e cineasta Joseph Goebbels (Sylvester Groth), que é convencido pelo garoto a mudar a estréia de seu novo filme, baseado nas façanhas de Zoller no campo de guerra, para o estabelecimento da judia. Acontece que na noite da premiére, além do próprio Führer, estará o “caçador de judeus” Hans Landa (Christoph Waltz), que tem uma antiga história com Shosanna e sua família. Enquanto isso, no outro extremo da trama, Brad Pitt comanda o batalhão de vingadores que dá título ao filme, cuja missão é matar e torturar nazistas. As duas tramas se cruzam por meio da estrela Bridget Von Hammersmark (Diane Kruger), secretamente uma espiã dos Aliados no lado nazista, que trama com o grupo de Pitt um golpe terrorista a tomar lugar justamente na ocasião da exibição no cinema de Shossana. Claro, ela também tem seus planos de vingança.

E isso é apenas uma amostra da infinidade de personagens que o diretor insere em sua narrativa complexa e organizada. Tarantino brinca, como sempre, com referências pop, mas perde muito de sua estranha irreverência reflexiva para o tom mezzo sóbrio, mezzo sátira que imprime a sua reinvenção histórica. Ele abusa de cenas longas e brilhantes verbalmente, mas que acabam por se estender demais e perder o foco no conflito de ações e personalidades que é a linha tênue entre uma narrativa dramática e uma épica. O diretor tem cacife para brincar nesse terreno, mas não se sai bem o tempo todo. A cena da taverna, por exemplo, se torna cansativa. Já o jogo de vontades e manipulação da abertura não poderia ser mais interessante. Ainda mais com Tarantino mostrando-se tão desenvolto atrás das câmeras. Não que ela alguma vez tenha sido desleixado na direção, mas era notável o quanto sua câmera era mero acessório para suas tramas e diálogos. Agora, uma coisa complementa a outra com elegância e clareza, brincando com músicas e ambientações quando se dá ao luxo e se prendendo aos detalhes nos momentos certos. Como cineasta puramente, Tarantino ainda não é nenhum inovador, mas segue a risca as regras e acerta em cheio na verborrágica elegância de sua direção.

Mas quem rouba a cena é o elenco. A começar por Brad Pitt, um estranho no ninho na lista de papéis principais que o diretor já escalou. John Travolta, Pam Grier e David Carradine, todos eles, estavam em momentos de baixa quando se reergueram pelas mãos do cineasta. Talvez seja por isso que Pitt soe um tanto apagado em comparação a outros papéis em que já se mostrou capaz de uma boa atuação. Perto do lunático de Os 12 Macacos ou do enigmático alter-ego de Ed Norton em Clube da Luta, o seu Aldo Raine aparece como uma caricatura com pouca ou nenhuma profundidade. Dele entramos e saímos sem nada saber, e o ator não tem tempo nem espaço o bastante para mostrar alguma nuance mais ousada em sua atuação. O que só dá espaço para seu coadjuvante direto, Eli Roth, brilhar mais intensamente. Ele, o responsável pela direção de O Albergue, quebra com o camp Donny Donowitz um jejum de quase quatro anos afastado dos holofotes do lado da frente das câmeras. Em um papel feito para seus traços marcantes e expressão corporal despojada, Roth abrilhanta cada cena em que dá o ar da graça, encarnando bem o espírito dividido entre caricatural e verdadeiro que Tarantino coloca, sempre, em seus personagens. Só não é o maior destaque da lista de casting porque certo austríaco veio lhe roubar o posto.

Falamos de Christoph Waltz, obviamente. Não foi a toa que o ator de 53 anos levou o prêmio de atuação em Cannes, o Globo de Ouro, o Oscar e outros tantos prêmios na temporada. Sua encarnação do Coronel Landa é espetacular, descontraída e divertida sem perder o foco ou a concentração na personalidade manipuladora do personagem. Nas suas mãos, o “caçador de judeus” é como uma sobremesa meio duvidosa, doce no começo, amarga quando desce pela garganta. É um personagem que desperta tanto ódio quanto admiração, fascinação, hipnose, diversão. Um proverbial vilão a quem o filme pertence, uma figura que acende o interesse do espectador a cada momento que aparece em tela. O roteiro o favorece com frases banais que falam muito mais sobre ameaça do que as caras mais feias dos vilões de ação da Hollywood anabolizada de hoje, mas é na interpretação de Waltz, em seu detalhismo impressionante, que o personagem ganha vida própria dentro e fora da tela. Enfim, aterrorizante, mas inesquecível.

Do restante do elenco, não custa destacar a performance sensível de Mélanie Laurent, a figura que confere humanidade e vulnerabilidade a um filme que, de outra forma, careceria de mais emoção. Sua Shosanna é figura essencial e pivotal do filme, e Laurent cumpre seu batente com desempenho de funcionária exemplar. Daniel Brühl, seu mais habitual parceiro de cena, também faz bonito e compõe um mimado e irritante Fredrick Zoller, que ainda assim desperta emoção verdadeira quando encontra seu estranho destino nas mãos daquela que cortejou por todo o filme. E, por fim, vale falar da curiosa participação de Mike Myers, ele mesmo, quase irreconhecível como um oficial britânico que arma uma parte da operação dos bastardos, e ainda assim excepcional por baixo da maquiagem e do verniz grotesco de seu personagem. Meio afastado das telas, Myers deixa transparecer, vigiado pela câmera de Tarantino, que o adolescente retardado de Quanto Mais Idiota Melhor envelheceu e amadureceu como ator. Estava mesmo na hora de alguém perceber.

Assim, deliciosamente equivocado e equivocadamente delicioso, Bastardos segue a sina de Tarantino: é um filme explosivo, divertido, inteligente... e absolutamente irresistível.

Nota: 9,0

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Bastardos Inglórios (Inglorious Basterds, EUA/Alemanha, 2009)

Uma produção da Universal Pictures/The Weinstein Company…

Dirigido e escrito por Quentin Tarantino…

Estrelando Brad Pitt, Eli Roth, Christoph Waltz, Mélanie Laurent, Daniel Brühl, Mike Myers, Diane Kruger, Til Schweiger…

153 minutos

16 de abr. de 2010

Fora de Sintonia, por Caio Coletti

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A percussão bate, sem fim nem começo, constante e infalível, indo e voltando sempre ao mesmo ponto, sem precisar de um objetivo maior a não ser dar ritmo e direção a canção. Eu a invejo. Não tem anseios nem almeja nada que saia do esquema repetido e eterno de tempo marcado para acabar, e ainda assim deixa sua marca em um mundo sobrecarregado, saturado, que não mais sustenta a si mesmo. A percussão, mesquinha, acomodada e fria como é, provoca sorrisos, faz brotarem lágrimas, embala amores e produz discussões. Porque eu, então, humano, complexo e único como sou, tenho passado tão incólume? Eles estão cegos ou sou eu que, na ânsia de mudar e surpreender, me afasto demais da batida de corações conjuntos, da percussão coletiva e inalterável que se tornou nosso mundo?

Dizem-me que não posso simplesmente bater de frente com o resto do mundo. Seria um, pária, rebelde e marginal, contra milhões. E a cada momento percebo quão poucos são aqueles com os quais posso contar ao meu lado. Talvez estejamos ambos errados, eu e o mundo, mas o que é da vida sem um desafio, uma expectativa, um objetivo, uma longa caminhada assomando no horizonte? Num mundo em que muitos o dizem e poucos o fazem, ser e agir de forma diferente, forçar o coração a bater ligeiramente fora do ritmo da percussão universal, é uma ousadia e tanto. Mas quem ainda passa os olhos por aqui, eu estou seguro, sabe o quão natural é ser o que se é, e não o que se pretende ser. E como, apesar de tudo, vale a pena.

Porque a percussão pode levar a canção adiante, mas é da melodia que os que riram, choraram, se apaixonaram e brigaram, vão se lembrar. Ouse. Sonhe. Qubre convenções. Pense por si mesmo. Tenha uma opinião, mas saiba quando e como expressá-la. Faça sua própria trilha. Porque todas elas, no final, vão parar no mesmo lugar. O que importa é o quanto se explora, conhece e descobre pelo caminho.

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E a mísera, sem chorar, foi refugiar-se no Cabeça-de-Gato que, a proporção que o São Romão se engrandecia, mais e mais ia-se rebaixando acanalhado, fazendo-se cada vez mais torpe, mais abjeto, mais cortiço, vivendo satisfeito do lixo e da salsugem que o outro rejeitava, como se todo o seu ideal fosse conservar inalterável, para sempre, o verdadeiro tipo de estalagem fluminense, a legítima, a legendária; (…) paraíso de vermes, brejo de lodo quente e fumegante, donde brota a vida brutalmente, como de uma podridão”

(Aluísio de Azevedo em “O Cortiço”)

*Acabei de terminar “O Cortiço”. O próximo da lista é “Dom Casmurro”.

12 de abr. de 2010

Tempestade, por Caio Coletti

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Chovia, mas ele nem mesmo se importava. Sentia os pingos molharem seu cabelo desalinhado, refrescarem seu rosto preocupado, acalmarem seus pensamentos perturbados. Tudo o que ele precisava, agora, era daquela água que o purificava, misturada com o anunciado salgado de suas lágrimas, a riscarem o rosto jovem e bonito. O mundo podia cair em cima de sua cabeça que não seria o bastante para pará-lo, agora que tomara sua decisão. Estava indo de encontro a ela, que sempre fora e sempre seria seu destino, e tudo o que queria era lhe pedir perdão.

Ele não apertou o passo, sentindo os tênis novos rangerem contra o asfalto da larga e deserta estrada, enquanto anoitecia e a chuva não lhe dava trégua. Logo era noite, e o mundo ao seu redor silenciava, como para escutar seus próprios pensamentos, os pingos espalhando água pelo chão sem parada, sem piedade, assim como a culpa lhe fustigava até o fundo da alma. Ele buscava por um novo começo, uma nova esperança, uma nova luz que lhe iluminaria a estrada escura e chuvosa. Ele esperava pelo Sol. Mas sabia que ele não viria até que fizesse o que estava ali para fazer.

Levantou os olhos do chão para perceber que, ao longe, bem ao longe, um prédio se erguia imponente em meio ao vazio deserto de concreto da cidade que se aproximava. Ele só via o cinza enegrecido pela chuva que agora se tornara tempestade, a carga que ele levava pesando mais do que nunca sob a água, seus olhos se embaçando e não podendo mais guiá-lo em seu caminho. Mais alguns metros, pensou consigo mesmo, concentrado em sua chegada e não na difícil jornada, vivendo a esperança do que há de vir e suportando qualquer provação que venha ao longo do caminho. Ele precisava chegar ao fim.

Um, dois, três passos largos e demorados, e foi o bastante. Seus joelhos molhados bateram contra a enxurrada que se acumulava na beira suja das ruas da cidade, ele virou o rosto para cima, encarou o céu cinza-chumbo e, a pouca distância da morada dela, sua verdade, seu destino, berrou um perdão rouco e incontrolável. E esperou, paciente como sempre fora, manso como teria que ter sido, temeroso como lhe era exigido.

Deixou que as lágrimas corressem, mais livres do que nunca, porque por elas ele não poderia mais falar, apenas relembrar. Os amores perdidos, as oportunidades deixadas para trás, os arrependimentos e sofrimentos que carregava agora em sua mala, caída ao seu lado, o pesado fardo de consciência que levava a mão e ao coração. Abriu os olhos apenas quando tinha certeza que toda e qualquer culpa de sua curta vida havia passado pela escuridão que ele encarava. E então viu.

Lá no alto, no último andar, uma luz solitária acendeu-se contra a janela de aço, brilhando absoluta na escuridão da noite sem estrelas, enquanto a chuva lentamente diminuía para a gostosa garoa das tardes de verão. O Sol não saiu para ele. Mas não foi preciso luz alguma para que a íris escura de seus olhos brilhasse como nunca o havia feito. Ele estava pronto. E estava livre. Para ele, a tempestade passara. Não importava que no resto do mundo continuasse a chover, ele não sentia mais o peso da água sobre sua cabeça, que latejava, livre do peso eterno que todos nós carregamos.

Não mais ele, é claro. Agora, tudo era luz.

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P.S. 1: Antes de qualquer coisa, crédito a quem o merece: o texto aí leva minha assinatura por pura formalidade, porque a inspiração veio mesmo ao ler o texto “Raincoat”, da Babi Leão. Mais uma vez fica a dica para quem gosta de refletir e ler bons textos!

P.S. 2: Acabou de cair na Internet o meu primeiro curta-metragem como escritor e diretor, intitulado Humano, uma reflexão ilustrada sobre um garoto tentando se colocar em palavras e contradições. Vejam, comentem, linkem!

A multidão atropelava-se, desembestando num alarido. Uns fugiam à prisão; outros cuidavam a defender a casa. Mas as praças, loucas de cólera, metiam dentro as portas e iam invadindo e quebrando tudo, sequiosas de vingança.

Nisso, roncou no espaço a trovoada. O vento do norte zuniu mais estridente e um grande pé d’água desabou cerrado”

(Aluísio de Azevedo em “O Cortiço”)

9 de abr. de 2010

Galeria: Cantoras que atuam (de verdade)

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Carla Bruni

Na foto: A capa do primeiro disco da ex-modelo franco-italiana, intitulado Quelqu’un m’a dit (na língua pátria, “alguém me disse”), que marcou o primeiro desbravamento de Bruni fora do âmbito das passarelas, onde fez fama. Anos depois, ela se tornaria primeira-dama. Agora, é o cinema.

Nas telas: Desde Novembro passado que comenta-se a participação de Bruni no projeto que o diretor e roteirista Woody Allen começa a tocar em terras francesas depois de finalizar o estrelado (como sempre) You Will Meet a Tall Dark Stranger, seu mais novo filme londrino. Como é de hábito de Allen manter o roteiro a sete chaves, não se sabe nem mesmo o título do novo filme, que contou ainda com a adesão de Owen Wilson, Rachel McAdams e da ganhadora do Oscar Marion Cottilard. A época da escalação dessa última, também francesa, chegou-se a comentar que Bruni teria sido trocada pelo diretor, que antes havia declarado que adoraria dirigi-la, mas estava receoso que os compromissos de Bruni como primeira-dama atravancassem a produção. Foi só em Março último que a presença da modelo/cantora/primeira-dama foi enfim confirmada para as filmagens, que devem começar no segundo semestre para o lançamento do filme no ano vindouro.

Os filmes: Projeto Francês de Woody Allen (2011).

Os hits: “Quelqu’un M’a Dit” (Quelqu’un M’a Dit – 2003)

My Blueberry Nights

Norah Jones

Na foto: O olhar melancólico sob o vigilante olhar da câmera do chinês Wong Kar Wai, talvez um dos grandes mestres da sensibilidade emocional em atividade no cinema, fica bem marcado na memória mesmo depois que os créditos sobem em Um Beijo Roubado.

Nas telas: Consagrada cantora de blues que expadiu seus horizontes no brilhante último disco, The Fall, e já levou mais Grammys para casa do que muito dinossauro musical por aí, Norah estreou no cinema sob a brilhante direção de Wai. Ele, responsável por romances sensíveis e pesados como 2046 e Amor à Flor da Pele em sua terra natal, apostou num clima mais idílico para sua estreia em terras americanas. Seu roteiro e sua direção são impecáveis, é verdade, mas o filme não seria nada sem a presença etérea de Norah como a adorável protagonista viajante Elizabeth, uma mulher que é chutada pelo namorado, encontra consolo em um dono de lanchonete e decide viajar pelo país para descobrir a si mesma. Mesmo atuando ao lado de gente de respeito como Jude Law, Rachel Weisz, David Strathairn e Natalie Portman, a cantora consegue a proeza de se tornar a alma e a unidade do filme, encantador por natureza.

Os filmes: Um Beijo Roubado (2007), Wah Do Dem (2009, inédito no Brasil)

Os hits:Don’t Know Why” - “Come Away With Me” (Come Away With Me – 2002)                   -                 “Sunrise” (Feels like Home – 2004)                                                                                                            -                 “Thinking About You” (Not Too Late – 2007)                                                                                  -                  “Chasing Pirates” (The Fall – 2009)                                                                                                        -

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Alicia Keys

Na foto: Sexy, quase irreconhecível e mortal com uma arma nas mãos, Alicia estreou no cinema já com uma atuação tão afinada quanto seus vocais, na pele de Georgia Sykes, uma das assassinas da trama rocambolesca de A Última Cartada, tiro no alvo do diretor Joe Carnahan.

Nas telas: Depois de A Última Cartada, Alicia juntou-se a mais dois casts afiadíssimos. Em 2007 foi um pequeno papel em O Diário de Uma Babá, como a melhor amiga da protagonista Scarlett Johansson, jovem recém-formada que vai trabalhar como babá de uma família rica, encabeçada pelos fenomenais Paul Giamatti e Laura Linney. O filme passou meio em branco pelo público, mas a crítica não poupou elogios a toda a escalação do casal de diretores Shari Springer Berman e Robert Pulcini. O momento pivotal para perceber que Alicia é tão boa atuando quanto cantando, no entanto, é o doce (em todos os sentidos) A Vida Secreta das Abelhas. Coadjuvando para Dakota Fanning e se colocando em pé de igualdade com a carismática Queen Latifah e a sempre aplaudida Sophie Okonedo, ela mostra do que é capaz em frente a uma câmera, construindo a primeira personagem completamente convincente de sua carreira. Daqui, muita coisa ainda vai sair.

Os filmes: A Última Cartada (2006), O Diário de Uma Babá (2007), A Vida Secreta das Abelhas (2008).

Os hits:Fallin” - “A Woman’s Worth” (Songs in A Minor, 2001)                                                             -                 “If I Ain’t Got You” - “Diary” (The Diary of Alicia Keys, 2003)                                                  -                 “No One” - “Teenage Love Affair” (As I Am, 2007)                                                                       -                  “Doesn’t Mean Anything” (The Element of Freedom, 2009)                                                      -

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Beyoncé Knowles

Na foto: Pouca gente pode ter reconhecido, mas é fato consumado que Cadillac Records, ainda inédito no Brasil, arquiva a melhor atuação da estrela americana. Tirando, é claro, o fato de que ela volta a interpretar a si mesma na pele de Etta Jones, uma lendária cantora de blues.

Nas telas: Muita gente diz que Beyoncé é boa atriz, e não deixa de ser verdade. Mas também é mais do que claro que ela tem limitações. A estreia em um filme televisivo não provocou alvoroço, mas  Carmen foi o bastante para abrir as portas de Hollywood. Logo ela estava fazendo a mais nova companheira do espião Austin Powers no terceiro filme da série, O Homem do Membro de Ouro. De 2002 para cá foram cinco papéis bem parecidos, começando sem se acertar ao lado de Cuba Gooding Jr na comédia-romântica-musical-gospel Resistindo as Tentações, passando pelo bom momento como a sedutora femme fatale de Steve Martin em A Pantera Cor-de-Rosa, e finalmente chegando a glória a frente do elenco do musical Dreamgirls, um dos mais subestimados da safra recente. O filme é de Jennifer Hudson, é bem verdade, mas há tanto espaço para o restante do elenco que Beyoncé se destacou e levou a primeira indicação ao Globo de Ouro. Primeira e única, já que Cadillac Records e o suspense Obsessiva não colaram com o público.

Os filmes: Carmen: A Hip Opera (2001), Austin Powers e o Homem do Membro de Ouro (2002), Resistindo às Tentações (2003), A Pantera Cor-de-Rosa (2006), Dreamgirls – Em Busca de um Sonho (2006), Cadillac Records (2008), Obsessiva (2009).

Os hits:Cazy in Love” – “Baby Boy” (Dangerously in Love, 2003)                                                          -                 “Déja Vu” - “Irreplaceable” - “Listen” (B’Day, 2006)                                                                   -                  “Halo” - “Single Ladies” - “If I Were a Boy” (I Am… Sasha Fierce, 2008)                          -

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Ser famoso é como estar no colegial. Mas eu não estou interessada em ser a líder de torcida. Não estou interessada em ser Gwen Stefani. Ela é a líder de torcida, eu estou no ‘canto dos fumantes’. E muitos de vocês estão lá também. Quando estamos falando de rock n’ roll, é exatamente como o colegial” (Courtney Love destila seu veneno)

Eu fiquei simplesmente devastada, foi um dia muito triste. Eu não entendo como as pessoas podem ter todos esses fatos e ainda assim fingir que não está havendo nada. O 11 de Setembro foi muito ambíguo. Ninguém podia provar se o governo estava agindo ou não. Você poderia dizer ‘ah, isso é só Michael Moore’. Nova Orleans foi inegável irresponsabilidade” (Madonna, enquanto isso, mostra quanto é politizada)

5 de abr. de 2010

Intolerância, cultura e… Lady Gaga?

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Há um imenso absimo separando cultura de intolerância, e todo mundo sabe muito bem disso. O problema é que, no nosso mundo de etiquetas e hipocrisias, nem sempre é a atitude mais “politicamente correta” condenar um ato de pura ignorância como tal. Mas isso, é claro, é só a minha opinião. Ao meu ver, não é porque estamos em uma terra estrangeira que somos obrigados a seguir todas as regras do povo dessa terra, perdermos nossa individualidade e cultura em favor daquela que domina em determinado território. Um americano vai ser sempre um americano, um árabe jamais vai abolir certos costumes próprios de seu povo. É hipocrisia pedir respeito aos “traços culturais” sem respeitar o dos outros.

Mas vamos aos fatos, bem menos escandalosos do que o parágrafo acima pode ter sugerido. Para começar, tivemos hoje mesmo o caso de um casal britânico, Charlotte e Ayman, ambos jovens e bonitos, que foram presos em Dubai por trocar um beijo em um restaurante da cidade, às 2 horas da manhã. A acusação: ato sexual público. E pode demorar até dois meses para o julgamento acontecer, sendo que a pena pode chegar até trinta dias de prisão. A pergunta que fica é: estão mesmo os estrangeiros (não só nos documentos, mas também na cultura) sujeitos a leis como essa, que retratam uma forma de pensamento e julgamento tão diferente daquela com a qual foram criados? Até onde o respeito pelas características culturais de cada indíviduo e povo corre para os dois lados da estrada? Não são perguntas fáceis de se responder.

Claro, esse tipo de escândalo não é exclusividade dos árabes. Esses dias, em território americano, não foi preciso nenhum órgão oficial da lei para causar uma tragédia motivada por razões, assim digamos, picantes. Em uma atitude bizarra de descontrole, o estudante ianque Ryan Burkhart colocou fogo no próprio aparatamento durante uma discussão sobre sexo com sua namorada, na Flórida. A cena mais pitoresca, no entanto, ainda estava por vir: quando os vizinhos chamaram os bombeiros, Ryan saiu correndo do prédio, pelado, para se esconder. Foi preso horas depois e acusado de tentativa de homicídio. Ah, e a bizarrice atravessa fronteiras… e oceanos. Do outro lado do Atlântico, na mesma Inglaterra do casal preso, uma área de 12 hectares com cerca de 6000 árvores no interior do país foi posta abaixo pelo conselho regional municipal de Lancashire. Tudo para evitar que o local se tornasse um motel a céu aberto. Os ambientalistas, é claro, ficaram furiosos.

E para completar a galeria de notícias no mínimo estranhas, falta falar da taiwanesa Yang Yaqing, de 28 anos, que desde Agosto passado está em Paris estudando e, pasmem, roubando beijos de desconhecidos. A meta é simples: atingir uma centena de bejos roubados na cidade-luz. Como não poderia deixar de ser, a “nobre missão” da garota está registrada online, em seu blog (em chinês, é claro, mas nada que a ferramenta de tradução do Google Chrome não resolva). Segundo a própria Yaqing, a ideia lhe surgiu quando, ainda em Taiwan, era julgada como promíscua por “beijar homens demais”. Até este fevereiro, foram nada menos do que 67 beijos roubados, todos postos, com fotos, em seu diário virtual.

Pois é, se até eles tem direito de se rebelar contra as próprias tradições, porque os estrangeiros não teriam? Não adianta ir para outro país, de cultura completamente diferente, e fingir que não é um outsider natural. Só mesmo se for por medo de acabar preso. Ou censurado. Como foi, aliás, o clipe Telephone, mais novo hit da artista pop mais completa da atualidade, Lady Gaga, ao lado de igualmente talentosa Beyoncé Knowles. A MTV americana, que sempre foi tão liberal nas aparências, se recusou a passar o “atrevido” vídeo das cantoras, cheio de cenas, digamos assim, tórridas. Segundo o The Sun, que não é a fonte mais confiável do mundo, a censura se deu, em grande parte, a cena de beijo gay que Gaga protagoniza no início do vídeo, na prisão. Um absurdo, tendo em vista as bizarrices já esperadas da cantora.

Mas, como diria uma estimada política coisa-nossa, é só relaxar e gozar. Porque, se caso você for censurado algum dia, há sempre o espaço inexoravelmente livre da internet. Aqui, eu posso falar, como estou falando (um pouco demais) agora, você pode falar quando bem entender (ainda mais se for para comentar por aqui), Yang Yaqing pode beijar, Gaga e Beyoncé podem cantar. Por mais que alguns não tenham percebido, é inevitável: estamos entrando, de verdade, no século XXI.

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“…Not that I don’t like you/ I’m just at the party/ And I’m sick and tired of my phone r-ringing/ Sometimes I feel like/ I live in Grand Central Station… 

…Tonight I’m taking no calls/ ‘Cause I’ll be dancing…”

(Lady Gaga e Beyoncé em “Telephone”)