Review: Dirty Computer (álbum e filme)

Janelle Monáe cria a obra de arte do ano com um álbum visual espetacular - e que desafia descrições.

Os 15 melhores álbuns de 2017

Drake, Lorde e Goldfrapp são apenas três dos artistas que chegaram arrasando na nossa lista.

Review: Me Chame Pelo Seu Nome

Luca Guadagnino cria o filme mais sensual (e importante) do ano.

Review: Lady Bird: A Hora de Voar

Mais uma obra-prima da roteirista mais talentosa da nossa década.

Review: Liga da Justiça

É verdade: o novo filme da DC seria melhor se não tivesse uma Warner (e um Joss Whedon) no caminho.

31 de dez. de 2010

FIM DE ANO–Mudança, por Caio Coletti

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O tempo passa. E as coisas mudam. Dois fatos que todos precisamos encarar, todos os dias, de alguma forma, em algum momento. Mas do que as coisas, nós mudamos, ou melhor, nós nos descobrimos e aprendemos a ser, mais plenamente a cada dia, mais nós mesmos. Se nascemos assim ou a partir de que momento nossa persona é definida, não me pergunte, pois por mais que eu deseje, não tenho todas as respostas. Não agora, com o ano acabando, nem em breve, com um novo ano começando. Diz-se: ano novo, vida nova. Eu digo: ano novo, um novo eu.

Não sou exatamente aquele que prega a auto-reinvenção constante, mas o ano que passou significou tanto pra mim, para a minha forma de agir, ver e reagir o mundo, que é difícil não revolucionar a si mesmo. Aprendi, não sem minhas penas, que não há nada de errado em se divertir. Que o mundo não espera aqueles que se acomodam em sua toca de infelicidade. Que nem sempre os grandes amores são pra sempre, e que nem sempre eles são alcançáveis (com uma freqüência cruel não o são, aliás). Que não há vergonha em dizer “eu te amo”, não se cada palavra for verdade. Que não é preciso ser um jogador para jogar o jogo. Que se pode tirar da vida o que ela tem de melhor, mas é preciso provar o gosto do pior de vez em quando. Que esse é um preço que, no fim das contas, estou totalmente disposto a pagar.

Talvez tenha aprendido tudo isso com certa demora, mas antes tarde do que nunca (que os amigos escritores perdoem o clichê). É possível ser idealista e divertir-se ao mesmo tempo e, a título de mensagem, é possível ser quantas coisas se quiser ser, todas no bater de um só coração. É essa oportunidade invejável de construir a si mesmo, os seus sonhos e seus medos, que a vida nos dá, e que faz dela tão especial. Pode ser que as vezes, nesse caminho, a coisa certa e a coisa mais difícil sejam iguais (como bem diria o The Fray, credite-se), mas nem sempre é preciso abrir mão de perseguir o que se ama. Seja o tipo de amor que seja, o certo é que ele vale a pena.

Portanto, nessa virada de ano em que clamamos por uma vida nova, que saibamos o que levar conosco do ano que passou e o que jogar fora, como se estivéssemos de mudança para um lugar que, melhor ou pior, teremos que construir mais uma vez. Nem tudo termina no bater da meia-noite do dia 31. Mas muita coisa, feliz ou infelizmente (só o tempo dirá, e talvez nem ele diga com tanta certeza), pode e deve mudar com essas badalas. Quando os fogos estouram, nada se esquece, e nada se apaga: apenas escreve-se mais, e vira-se a página, guardando bem as palavras que passaram na memória. Elas são, afinal, parte indissociável do que nós somos, queiramos ou não.

Resta continuar se corrigindo, se incentivando, se permitindo e se conduzindo através desse novo lugar, ligeiramente familiar, para o qual todos vamos nos mudar daqui a poucas horas. Resta jamais desistir. Jamais esquecer. Jamais “deixar para lá”. Resta seguir. Ganhar, perder. Rir, chorar. Ler, ver. Ser. E resta, como sempre vai restar até o dia em que outra badalada soar, a da meia-noite final que cada um de nós há de ver, viver. Como se cada dia fosse o começo de uma vida nova. E, ao mesmo tempo, a continuação de uma antiga, saudosa e maravilhosa.

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“Tell me what you want to hear/ Something that would like those ears/ I’m sick of all the act sincere/ I’m gonna give all my secrets away!

This time/ Don’t need another perfect lie/ Don’t care if critics ever jump in line/ I’m gonna give all my secrets away!”

(Ryan Tedder e seu OneRepublic em “Secrets)

UM FELIZ ANO NOVO PRA TODOS VOCÊS

27 de dez. de 2010

JOGO RÁPIDO–“À Prova de Morte” + “The Runaways”

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À Prova de Morte (Death Proof, EUA, 2007)

Uma produção da Dimension Films/ Troublemaker Studios…

Dirigido e escrito por Quentin Tarantino…

Estrelando Kurt Russell, Zoe Bell, Rosario Dawson, Sydney Poitier, Rose McGowan, Mary Elizabeth Winstead, Quentin Tarantino, Eli Roth…

114 minutos

Aos poucos, de mansinho, o plano de dominação mundial de Quentin Tarantino se mostra cada vez mais eficiente. Pulp Fiction pode ter aberto as portas do cinema para a cultura pop, e Kill Bill pode ter mostrado que violência e inteligência podem caminhar juntos quando o homem por trás da câmera é Tarantino. Mais recentemente, Bastardos Inglórios tornou o cineasta em uma marca e o firmou como descobridor de novos talentos (Christoph Waltz, claro) e cineasta competente tecnicamente. Pois se o filme dos nazistas mostrava que ele pode funcionar bem sem toda a regurgitação de cultura pop, À Prova de Morte é um respiro do velho Taratino, aquele que conseguia construir personagens interessantes e humanos do nada, aquele que fazia o exagero parecer mera conseqüência da dramaturgia, aquele que produzia as noites mais divertidas do cinema moderno. Não desmerecendo Bastardos, mas se o seu negócio é mesmo entretenimento, não hesite um segundo em tirar À Prova de Morte da prateleira.

Para começar, é preciso deixar claro que, em À Prova de Morte, nada é por acaso. A imagem riscada, a música exagerada e os personagens caricatos que aos poucos ganham profundidade à maneira particular do cineasta, tudo é feito para criar, na medida, uma produção tão moderna e relevante para linguagem cinematográfica atual quanto propositalmente analógica. E é preciso entender que a história de Stuntman Mike (Kurt Russell divertindo a si mesmo e ao espectador), um amigável coroa num mundo povoado por jovens sem estribeiras que na verdade é um serial killer dotado de um carro indestrutível, foi escrita para não parecer real. É uma homenagem mais do que clara ao cinema trash que funciona muito bem como filme e como diversão, com Tarantino mais habilidoso do que nunca nos enquadramentos, Rose McGowan no auge do sex appeal e a jovem Sydney Poitier (filha do ganhador do Oscar Sidney) explodindo em tela com uma atuação brilhante na pele de sarcástica Jungle Julia. Para ver e sair dizendo: foi uma noite e tanto!

Nota: 8,0

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The Runaways – Garotas do Rock (The Runaways, EUA, 2010)

Uma produção da River Road Entertainment…

Dirigido e escrito por Floria Sigismondi…

Estrelando Kristen Stewart, Dakota Fanning, Michael Shannon, Stella Maeve, Scout Taylor-Compton, Alia Shawkat, Tatum O’Neal…

106 minutos

Contexto rápido: a The Runaways é considerada uma das bandas de rock mais importantes de todo o cenário musical dos anos 1970, e tal rótulo deve-se em grande parte ao fato de o grupo formado por Joan Jett, Cherie Curie, Lita Ford e compania ter sido o primeiro grande ato rock formado apenas por garotas a ascender ao sucesso. Não parece, mas como bem assinala a figura pitoresca do produtor das garotas, o maluco Kim Fowley (Michael Shannon), em certo momento de The Runaways, o filme, na época os homens gostavam de mulheres “na cozinha ou de quatro”, e em nenhum outro lugar, “muito menos num palco segurando guitarras”. É um universo de cores muito fortes, portanto, que a italiana Floria Sigismondi habilmente retrata em seu filme, trazendo do mundo dos videoclipes um cuidado apuradíssimo com o visual, tamanho que às vezes até deixa a pare dramatúrgica do seu trabalho como roteirista em segundo plano. É nesses momentos que The Runaways deixa a desejar como cinebiografia, e é aí que o filme passa a depender, numa condição de vida ou morte, de seu elenco.

Especialmente da dupla principal, Dakota Fanning e Kristen Stewart. A primeira mostra amadurecimento incrível como Cherie Curie, cravando uma atuação concentrada e intensa como nos acostumamos a esperar por ela, mas enfim colocando todo esse talento em favor de um papel que exige nuances e detalhes de uma psique adulta. Ainda é um choque ver a Dakota que vimos crescer andar por aí de espartilho, ou mesmo se atracando com Kristen Stewart, mas não deixa de ser admirável sua ousadia e seu talento. Por falar em Kristen, ela cumpre bem com seu papel de Joan Jett, deixando claro que vai muito além, como atriz, do que a Bella de Crepúsculo a exige. É no seu carisma que, muitas vezes, o filme se apóia. Por fim, Michael Shannon compõe um nojento, adorável e excêntrico (tudo ao mesmo tempo) Kim Fowley, mostrando porque a indicação ao Oscar em 2008 não foi a toa. É confiando nesse elenco, enfim, que The Runaways prova seu valor. Assim como qualquer banda, no final das contas, precisa confiar no carisma de seus integrantes.

Nota: 7,0

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“Que merda! Que merda! Rock n’ roll é um esporte sangrento, um esporte de homens! É para as pessoas no escuro, para os gatos mortos, para os excluídos que não tem voz nenhuma para dizer que odeiam esse mundo, que seus pais são viadinhos, que se foda toda a autoridade, que se foda todo mundo – que querem um orgasmo! Agora, vamos, creçam! Gemam! Essa não é a liberação das mulheres – é a libido das mulheres! Eu quero ver os arranhões nas costas deles! Agora, façam de novo. De novo. Como se seu namorado tivesse acabado de transar com sua irmã na cama dos seus pais. Como se vocês quisessem um maldito orgasmo!”

(Michael Shannon em “The Runaways” – ‘suavizado’, acreditem ou não)

20 de dez. de 2010

Geração '2000: Diga-me o que ouves…

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Tentativas de definir a “geração anos 2000” não faltaram. Já fomos chamados de geração Coca-Cola, geração Internet, geração Twitter, geração Prozac e até ‘geração perdida’ (apelido contra o qual nem posso argumentar muito, diga-se de passagem), mais por causa das guerras nas quais o mundo continua se envolvendo do que por qualquer outra coisa. Acontece que nenhuma dessas tentativas de generalização foram eficientes o bastante para manter unidas as “vertentes” jovens que tem surgido em profusão. Talvez sejamos, afinal, a “geração modinha”, ou quem sabe até a “geração Youtube”. Mas gosto mais de pensar que somos mesmo a geração da música. Mais do que em qualquer outra época, a máxima vale para a geração atual: diga-me o que ouves, e te direi quem és. Portanto, para definir a juventude dos dias de hoje é preciso entender as motivações, mensagens e intenções por trás das canções e artistas que mais fazem a cabeça dessa geração.

E ninguém melhor para começar essa análise do que o DJ francês David Guetta. Goste ou não do seu estilo de música, o artista techno europeu enfileira hit atrás de hit e embala 10 em cada 10 festas ou baladas jovens por aí. Inegável também que é nesse tipo de ambiente que essa geração anos 2000 melhor se revela em suas particularidades. Entender o que Guetta faz lirica e musicalmente, portanto, é fundamental no sentido de entender comportamento, pensamento e preceitos que guiam esses jovens.

Musicalmente, se o leitor me permite uma inferência muito pessoal, Guetta me agrada bastante. Aos meus ouvidos ele consegue soar original e infalivelmente criativo em suas batidas techno, criando canções eletrônicas pesadas, bem-marcadas e ao gosto do seu público alvo, mas também muito melodiosas e climáticas. E isso não é pouco feito em um estilo que delimita bastante as possibilidades de um artista. Hoje, ninguém ultrapassa esse obstáculo com mais folga do que David Guetta. Não foi a toa que “When Love Takes Over”, “Tomorrow Can Wait”, “Love is Gone”, a mais recente “Gettin’ Over You” e “Everytime We Touch” se tornaram um tipo de seleção sagrada que não pode faltar no portfólio de DJ nenhum, em nenhum lugar do mundo. Ouvir o restante dos CDs de Guetta lançados oficialmente é perceber que sua competência não fica nos hits: “Joan of Arc”, “Never Take Away My Freedom” e “If We Ever” são bons exemplos da consistência do trabalho do francês.

Lirica e mais concretamente falando, no entanto, as composições que Guetta gravou são uma boa fonte de informação sobre os principios de uma geração muito peculiar. Há valores universais e atemporais, que “One Love” (uma das minhas favoritas pessoais), gravada com os vocais muito desenvoltos da americana Estelle (Guetta raramente canta em seus álbuns), demonstra de forma comovente em sua maneira peculiar. Nos versos da ponte que conduz ao primeiro refrão, Estelle canta “whatever they tell you, we’re bigger than words”, expressando a resistência dessa nova geração em ser rotulada ou estereotipadas. Coca-Cola, Internet, Twitter, Prozac… marcas vazias que não expressam a humanidade dessa geração que recusa preconceitos e generalizações. Logo depois, ela melodiosamente declama “expecting the best when they hope for the worst”, verso que deixa claro o idealismo típico e eterno das gerações mais jovens. E não se deixe enganar: o they do verso são mesmo os pais, professores e quem quer que seja que tente matar esse idealismo antes do momento de ele descansar por si mesmo.

Na mesma canção, a busca pelo “Um Amor” (com letra maiúscula, como o Um Anel da saga de Tolkien), esbarra nos defeitos inerentes da condição humana, mas Guetta e Estelle declaram com muita insistência que essa geração deve “stick together” (em bom português, “permanecer unida”) para se salvar, porque assim é mais fácil de acreditar em todas as ideias novas que se encerram nela. E o que mais caracteristicamente jovem do que o “stuck inside a box, you gotta get out!” (“preso numa caixa/ você tem que se libertar!”) de “Tomorrow Can Wait”, talvez o grande hit da carreira de Guetta? Para uma geração que se guarda até demais, talvez seja mesmo uma chamada ao descompromisso. Mas tudo tem sua medida. Estar desprendido demais da vida pode ser levar ela menos a sério do que ela deveria.

E Guetta é diversão com qualidade e criatividade, chegando a ser catártico e liberador em alguns momentos, mas não deixa de ser também, a reflexão da leviandade que faz parte, infelizmente, da ID de nossa geração. É aí que entra o discernimento de saber o que é aproveitável e o que não é na mensagem e no som não só de Guetta, mas de qualquer artista. Porque o que ouvimos não é e não deve ser, nunca, tudo o que somos.

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“There is nothing more to prove/ Now you still deny the simple truth/ Can’t find the reason to be holding on/ Not that the love is gone/ Love is gone!”

(David Guetta – Love is Gone)

14 de dez. de 2010

A dona da história, por Marcelo Antunes

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Crise criativa. Era isso. Estava atravessando uma crise criativa. Há dias que seguia o mesmo ritual: sentava-se diante do computador, abria o editor de texto, digitava meia dúzia de palavras, apagava, reescrevia e nada. Nunca, em todos aqueles anos, passara por nada semelhante. Escrever era, para ela, como respirar. Era conhecida por escrever em tempo recorde. A Dança das Cadeiras, seu livro mais famoso, fora escrito em pouco mais de uma semana. Sim, uma semana. As palavras foram quase vomitadas. Escreveu-o, praticamente, de uma assentada só. Quando viu, o ponto final já estava lá.

Ficou preocupada. Estaria perdendo o talento? Seria normal, o que vinha passando? E se não conseguisse escrever, nunca mais, algo que prestasse? Porra, estava fudida. Bem que gostaria de estar, mas isso era algo que não acontecia há muito tempo. Tanto tempo que achava que nem lembrava mais como a coisa funcionava.

Sim, é duro de engolir, mas ela não lembrava. Todos que a viam como escritora de sucesso e mulher bem sucedida, não sabiam da missa a metade. Era uma derrotada. Uma idiota. Uma fracassada, em sua vida pessoal. Não casara, não tivera filhos, não construíra absolutamente nada. Ah, claro, havia os livros. Era, certamente, a maior autora de sua geração. Sentiu-se no topo do mundo quando, numa coletiva de imprensa, a badalada protagonista de um daqueles arrasa-quarteirões hollywoodianos declarou estar lendo o seu último romance e gostando muito. Não era pouca merda, definitivamente. Não mesmo. É claro que havia aqueles que criticavam seu estilo. Superficial, raso, puramente comercial. Talvez fosse tudo isso, vá lá saber? Mas era um sucesso. Um inegável sucesso.

Se bem que, numa hora dessas, ser sucesso não significava nada. Do que adiantava tanta fama se, naquele sábado a noite, estava só, apenas a tela do PC enchendo seu escritório de luz? Do que adiantava se isso não era só aquela noite, mas vinha se repetindo nos últimos sabados dos últimos anos?

Sentiu-se uma bosta. Não, bosta era pouco. Havia algo pior que bosta? Se havia, esse algo era ela.

Parou, respirou fundo, olhou para o monitor. Pensou por alguns segundos, abaixou o olhar em direção ao teclado, pensou novamente. Parou por aí. Às vezes, pensar demais não presta. Desligou o computador na mão grande. Levantou, pegou a chave do carro e saiu.

Era chegada a hora de escrever a própria vida.

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“ Bom mesmo é ter problema na cabeça, sorriso na boca e paz no coração. Aliás, entregue os problemas a Deus e que tal um cafezinho gostoso agora? A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso cante, chore, dance e viva antes que a cortina se feche!”

 (Arnaldo Jabor)

12 de dez. de 2010

Do que eu não sei, por Caio Coletti

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Às vezes, quase nada faz sentido. Os dias passam e me vejo debandando de um lado para o outro, sem destino certo, me perguntando qual é o motivo de tudo isso, de todos esses erros acumulados de forma tão dolorosa. Nada do que sou, muito pouco do que faço, quase nada do que sei me conforta, muito ou tudo parece me destruir, peça por peça, até que tenha sobrado só a sombra do que um dia eu fui. Será que fui? Busco na memória grandes imagens, grandes momentos, grandes dramas e grandes feitos. Talvez a vida não seja tão grande. Talvez a sua beleza esteja nas sutilezas, nos cuidados, nos pequenos detalhes que fazem toda a diferença. Porque não consigo vê-los, tocá-los, senti-los, manipulá-los, então? Talvez não caiba a mim.

A verdade é que eu não sei. Ou melhor, que eu pouco sei, e pouco vou saber. O mundo me dá pistas, as resposas as minhas perguntas, aos meus atos. São sutis dicas do que pode ou não levar para o caminho que desejo alcançar e seguir. Mas nada é definitivo, nada é garantido, não há uma maldita certeza nesse mundo que não possa ser destruída com um estalar de dedos, um minúsculo fio se rompendo sem o menor estardalhaço em um imenso tear de destinos e acasos entrelaçados ao capricho de sabe-se lá quem (ou o quê). Meu mundo está para cair a qualquer momento, a todo instante. Mas, se acontecesse, ninguém ouviria se não fosse meu grito desesperado, patético, por socorro. Quando o mundo nos massacra, lutar é tão inútil quanto inevtitável.

Talvez seja melhor, portanto, não saber. Viver na expectativa de uma queda, viver da sombra do que fomos e do Sol que nasce, no horizonte, que nos indica o que podemos ser. Onde fica o agora, em tudo isso? Numa eterna espera, pelo tique-taque de um relógio, pelo momento infinito e belo de um segundo, em que nada de extraordinário acontece. E talvez nunca aconteça. Talvez seja apenas esse pequeno jogo do tédio de um domingo a tarde, a tensão quase palpável entre os fios daquele tear, o tecido esticado de uma rede estendida sobre um lugar em que bate o Sol. Pequenos detalhes, pequenos conflitos em meio a um envolto em que nada, ou quase nada, pode mudar.

E talvez, só talvez, sejamos capazes de colocar as mãos naqueles fios e rearranjá-los, com todo o cuidado do mundo, medindo cada movimento, cada olhar e cada respiração, sem nunca realmente nos darmos conta de que qualquer coisa pode trazer o tear todo abaixo. Talvez o capricho seja nosso. Talvez sejamos donos do nosso próprio destino. Mas isso é o que eu acho, não o que eu sei. Porque saber, mesmo, não sei de nada. E aí está a beleza de especular, advinhar e testar, a cada nascer do Sol, com a coragem daqueles que ousam desafiar a gravidade em uma rede estendida na praia, ouvindo os instantes infinitos passarem a cada batida do relógio, pensando em tudo que não são capazes de realmente saber.

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[Kate]: “Eu estou com medo de decidir…”

[Bobby]: “Eu não tenho medo de nenhuma das duas opções, mas é que – eu quero que isso seja algo que estamos fazendo, não algo que nunca fizemos”

[Kate]: “Isso o quê?”

[Bobby]: “Isso, o que quer que a gente decida”

(Lynn Collins e Joseph Gordon-Levitt em “Uncertainty”)

7 de dez. de 2010

RETROSPECTIVA 2010 – Música

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“California girls are unforgettable”

E o ano foi das garotas… de novo. Domínio absoluto no mundo pop mainstream, elas tiveram pelo menos três representantes fortes entre os destaques musicais desse ano. A começar por Katheryn Elizabeth Brand, conhecida pelo pseudônimo Katy Perry, a californiana que surgiu para o mundo ao cantar que “beijou uma garota e gostou” no mega-hit I Kissed a Girl (escrita, segundo a própria Perry, inspirada pela foto de Megan Fox publicada em uma revista). 2010 foi a oportunidade para ela mostrar que não é fogo de palha no universo pop e continuar fazendo sua música “atrevida”, mas bem mais “do bem” do que a maioria da musica pop feita hoje. Teenage Dream trouxe esse espírito na própria faixa-título, uma ode a inocência adolescente, o Sol californiano do verão no single California Gurls e até uma mensagem libertária/edificante em Firework. Mas ouvir Katy Perry ou não continua sem fazer diferença nenhuma na sua vida ou na sua cultura pop.

“Cause baby you’re a firework/ Come on, show ‘em what you’re worth/ Make ‘em go, ‘oh, oh oh’/ As your shoot across the sky”

(Katy Perry – Firework)

Ouvir o timbre meio anasalado, mas sempre bem trabalhado de Robyn Rihanna Fenty, por outro lado, pode muito bem te mostrar um pouco do que é música pop contemporânea. De cantorazinha de voz peculiar que enfileirou hits esquecíveis em Good Girl Gone Bad, dois anos atrás, ela tomou uma virada na cerreira e mostrou sensibilidade pop notável em Rated R, trabalho que seguia o trend de finais de 2009 ao fazer um som (e uma iconografia) mais sombria funcionar num contexto personalíssimo. É um álbum e tanto, como bem demonstra a excelente Roussian Roulette e a viciante Rudeboy, dois singles mais tocados dessa fase da cantora barbadiana. E é Rihanna nos mostrando que Lady Gaga não é a única grande sensibilidade pop do nosso tempo. Lançado em Novembro, o Loud apenas confirma essa suspeita, com uma coleção de composições versátil, madura, dançante e climática. Destaque para o single Only Girl, para Cheers (que conta com um sample da imortal I’m With You, de Avril Lavigne) e para a bela California King Bed.

“Want you to make me feel/ Like I’m the ony girl in the world/ Like I’m the only one that you’ll ever love/ Like I’m the only one who knows your heart/ Only one…”

(Rihanna – Only Girl)

A lista de destaques femininos do pop fecha com uma veterana: Kylie Ann Minogue mostrou que não está morta (como certa popstar americana) para o mundo pop e pegou a tendência de encher as canções com sintetizadores (trazida de volta pela própria Lady Gaga) para fazer, como sempre, uma obra divertida, agradável e personalíssima. Aphrodite é um álbum tipicamente Kylie, sem grandes destaques, mas uniformemente excelente. E All The Lovers é um dos grandes hinos dance do ano, com seu clipe estranhamente tocante e sua melodia etérea. Enfim, mostra que talento não tem idade, nem nacionalidade. Tem mesmo é poder.

All the lovers that have gone before/ They don’t compare to you/ Don’t be frightened/ Just give me a little bit more/ They don’t compare… to you”

(Kylie Minogue – All The Lovers)

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“Oh Ye-eah!”

É mais raro encontrar uma boa sensibilidade pop para exprimir as particularidades do universo masculino. Talvez por isso, quando uma delas apareça, seja menos reconhecida do que o lado feminino da contenda. O Maroon 5 é assim. Desde 2002 falando de amor perdido, relacionamentos e separação, sempre com um toque se sensualidade, o falsetto dosado e habilidoso do vocalista Adam Levine representa, hoje, o que há de mais completo e empolgante no mundo pop. E Hands All Over é a prova final de que o Maroon, em seu terceiro disco de estúdio, está no seu auge. Talvez por isso, por estar tão bom que “se melhorar estraga”, Levine tenha declarado que a gravação pode ser uma das últimas do grupo. Misery emplacou como um dos hinos do ano, e não foi por acaso: é capaz de empolgar qualquer mortal, e o clipe é sadicamente divertido. E é só esperar um pouco para Give a Little More estar nas rádios mundo afora. É o Maroon fazendo o que sempre fez de melhor: mostrar que é possíver ser divertido, denso musicalmente e bem-sucedido, tudo ao mesmo tempo.

I am in misery/ There ain’t nobody who can comfort me/ Why won’t you answer me/ This silence is slowly killing me”

(Maroon 5 – Misery)

Por falar em diversão, ninguém encarnou melhor esse conceito na música em 2010 do que o Black Eyed Peas. O grupo de hip hop formado por três marmanjos (entre eles Will.I.Am, talvez o grande nome em termos de produção musical do nosso século) e a vocalista Fergie, estourou nas vendas do álbum duplo The E.N.D (Energy Never Dies). Num tempo em que vender CDs é um suplício pelo qual todos os artistas devem passar, o Black Eyed Peas viu seu álbum sair das lojas feito água, e emplacou pelo menos um mega-hit, a já eterna I Gotta Feeling, talvez a grande canção eletrônica do ano. Ser dono de uma das turnês mais vistas e lucrativas do ano também não fez mal para as contas bancárias do quarteto, ou para o prestígio internacional, que se mostrou no lançamento de The Beggining, espécie de “continuação” do álbum anterior. The Time já emplacou, sampleando a famosa trilha-sonora (I’ve Had) The Time of My Life, do filme Dirty Dancing.

Fill up my cup/ Mazal tov/ Look at her dancing/ Just take it off/ Let’s paint the town/ We’ll shut it down/ Let’s burn the roof/ And then we’ll do it again”

(Black Eyed Peas – I Gotta Feeling)

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“Cause they got nothin’ on you, babe” 

2010 viu surgir, um pouco atrasado como membro da classe ‘09 do rap, o americano Bobby Ray Simmons Jr, sob o pseudônimo de B.o.B. Ao mesmo tempo que confirma algumas tendências do estilo nos últimos anos, como a aproximação cada vez mais difusa do R&B entre as influências que governam as novas gravações, The Adventures of Bobby Ray, o disco de estréia, mostra que o rap começa a seguir, aos poucos, uma direção mais pop, razoável e musical nesses novos tempos. Nothin’ on You colou com o refrão romântico, mas foi ao juntar-se com a vocalista do Paramore Hayley Williams em Airplanes que ele sentiu o gosto de ter um dos maiores hits do ano. A canção é uma daquelas com significado universal, ritmo climático e melodia marcante, com uma boa performance vocal de Williams. O bom é que, ao contrário de uns rappers por aí, B.o.B. não precisa se apoiar o tempo todo em alguma muleta-celebridade para criar canções marcantes. Ghost In The Machine, que ainda não é single, mostra que B.o.B. é também, veja só, um cantor que segura as pontas quando precisa. Isso que é versatilidade.

Can we pretend that airplanes in the night sky are like shooting stars?/ I could really use a wish right now, wish right now”

(B.o.B. e Hayley Williams – Airplanes)

Por falar em Nothin’ on You, o parceiro de B.o.B. nesse primeiro single de sua carreira é outro dos mais interessantes estreantes desse ano. Sem forçar a barra em nenhum momento, Bruno Mars foi surgindo devagar no cenário pop desse ano ao firmar, além da parceria com B.o.B., outra com Travie McCoy no sucesso Billionaire. Nascido em Los Angeles há 25 anos e criado no Havaí, Peter Gene Hernandez tem a mão na produção e composição de sucessos recentes como a música-simbolo da última Copa do Mundo, Wavin’ Flag. Mas 2010 trouxe o estrelato para o cantor cujo timbre influenciado pelo soul é descrito pela crítica como um “doador universal” para todos os estilos. É mais ou menos isso que se observa no álbum de estreia, Doo-Wops and Hooligans, que vai sem dificuldade de power ballads que cairiam perfeitamente no repertório de Jordin Sparks a canções de balanço mais soft, quase como se Jason Mraz quisesse soar um pouco mais pop do que já soa. Just The Way You Are, o primeiro single, tem letra deliciosamente clichê e se encaixa na primeira categoria de canções com a assinatura de Mars. Mas muito mais vem por aí.

When I see your face/ There’s not a thing that I would change/ ‘Cause girl you’re amazing/ Just the way you are”

(Bruno Mars – Just The Way You Are)

E pra fechar com um último destaque do hip hop desse ano, não tem como ignorar o barulho que Eminem fez com seu Recovery. Mudado, cada vez mais sério como compositor e afiado na criação de músicas bastante climáticas, Marshall Bruce Mathers III tomou o lugar que lhe pertence, em seu sétimo disco de estúdio, como a voz mais célebre e mais repeecutida do rap no nosso século. Not Afraid foi rapidamente elevado a condição de um dos singles mais improváveis do ano, e Love The Way You Lie colocou Eminem para trabalhar com a força pop mais proeminente desse ano, a bela Rihanna, e criou uma das grandes canções de 2010. A verdade é que Eminem é um rapper, músico e produtor de respeito, que produz em qualidade mais do que em profusão e que consegue fazer propaganda de sua música sem se render as regras do jogo. E ver um outsider chegando onde ele chegou, no topo do jogo do hip hop, é sempre um prazer.

Just gonna stand there and watch me burn?/ That’s alright because I like the way it hurts/ Just gonna stand there and hear me cry?/ That’s alright because I love the way you lie/ Love the way you lie”

(Eminem e Rihanna – Love The Way You Lie)

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“Two steps forward and one step back”

O mundo da música demorou um pouco para acordar em 2010. Talvez por esse atraso que o final do ano esteja sendo tão recheado de surpresas, retomadas e lançamentos empolgantes. A começar pelo esperado terceiro álbum da escocesa KT Tunstall, mais conhecida por Suddenly I See, tirada do álbum de estréia de 2004, Eye to The Telescope. Depois de tomar uma direção mais pop (e mais irregular) no segundo disco, Drastic Fantastic, de 2007, KT segue tentando encontrar um estilo que sintetize todas as suas influências. O som de Tiger Suit é, sem dúvida, pop. E KT sempre foi uma compositora pop e tanto. Agora, com synths, beats e o clima indie a favor dela, consegue criar um álbum consistente, recheado de canções contagiantes entremeadas de pequenas pérolas intimistas que lembram o melhor do indie-electronica do Postal Service ou, se você preferir, do Owl City. Ummanaq Song e (Still a) Weirdo nascem clássicos no repertório da cantora.

So I choose my weapon/ I choose my way/ It’s so easy saying nothing/ When you got nothing to say/ I’m thinking about it everyday”

(KT Tunstall – Fade Like a Shadow)

Quem também chegou de disco novo foi o britânico James Blunt, que cria um som mais upbeat no novíssimo Some Kid of Trouble. O primeiro single, já hit Stay The Night, é co-composto por Ryan Tedder (líder do OneRepublic, autor de Halo e Battlefield, entre outras) e tem harmonia em parte inspirada por Is This Love, do rei do reagge Bob Marley. A voz esganiçada continua a mesma, mas o instrumental passou a ser movido mais pelo violão do que pelo piano, acompanhando bem o clima mais otimista de algumas faixas. Outras mantém a tradição de Blunt de criar peças melódicas e melancólicas que tocam fundo na alma de quem ouve. Há quem ache brega, e há quem mande para o espaço a noção crítica por um momento, só para pensar como um mero ser humano. A escolha é toda nossa. Destaque para a marcante I’ll Be Your Man.

And if this is what we’ve got/ Then what we’ve got is gold/ We’re shining bright and I want you/I want you to know”

(James Blunt – Stay The Night)

Outra surpresa (ou nem tanto) nesse ano foi Brandon Flowers, o líder do The Killers, que resolveu cumprir a profecia que os críticos faziam desde o lançamento do Hot Fuss, álbum de estreia da banda, e se tornar maior que seu próprio empreendimento ao lançar-se em carreira solo. A voz de Brandon já é conhecidamente poderosa em sua forma peculiar, e o estilo de Flamingo mostra que, de fato, muito da identidade do The Killers vem da cabeça de seu vocalista. Mas, ao mesmo tempo, o álbum é Brandon sem limites, brincando com elementos da cultura americana o tempo todo, criando harmonias inusitadas e fascinantemente eficientes em soar pop, incluindo elementos de música africana na faixa Only The Young e criando, do nada, uma canção apoteótica que não precisa de quase nada para sê-lo, em On The Floor. Mas nada bate o country de letra confessional/ narrativa/homenagem The Clock Was Tickin’. É uma das mentes musicais mais empolgantes do século mostrando a que veio. Só nos cabe parar para ouvir.

Only the young can break away, break away/ Lost when the wind blows on your face, oh!/ Only the young can break away, break away”

(Brandon Flowers – Only The Young)

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“There’s a she-wolf in disguise”

Num mundo em constante reformulação como o da música, é missão árdua para um artista tomar uma virada na própria carreira que genuinamente surpreenda. Mesmo porque fazê-lo traz a tiracolo o perigo de a curva não levar a um caminho agradável. Talvez a única que teve tal coragem no nesse ano, Shakira e sua dupla She-Wolf e Sale El Sol enfim concluíram o processo de “americanização” da artista colombiana. Mas resumir tudo a isso não seria fazer justiça a própria Shakira. Inteligente como é, a cantora e compositora realizou uma dupla de albuns intensamente pop, que navega nas mais recentes tendências das paradas de sucesso e até encontra eficiência pelo meio do caminho, como bem Gypsy demonstrou. Mas sacrifica, para isso, a própria personalidade de sua intérprete. Shakira não soa autência uivando e se contorcendo em uma jaula para She-Wolf. É o tipo de apelação dark e agressiva que simplesmente não casa com sua imagem. Não é a toa que o balanço de Waka Waka tenha sido o melhor que ela conseguiu fazer esse ano.

Cause I’m a gypsy/ Are you coming with me/ I might steal your clothes and wear them if they fit me/ Never made agreements, just like a gypsy”

(Shakira – Gypsy)

Quem também tomou uma direção de qualidade duvidosa foi Christina Aguilera. Alguns leitores podem até ter assustado ler tal constatação aqui no Anagrama, que sempre defendeu a cantora, mas é hora de admitir: Bionic não é um disco a altura da artista Aguilera, e há muitas razões para isso. Para começar, porque tenta seguir um trend de forma atrasada e equivocada. Concebido quando a agressividade de Lady Gaga era tudo o que havia para ser notado no pop, Bionic cria canções histéricas e esquizofrênicas, com harmonia falha (erro que Gaga jamais cometeria, ótima compositora que é), e ainda é produzido com descaso e mão pesada. Além disso, utiliza do notável talento vocal de Aguilera da forma errada, no sentido que abusa de suas intervenções gritadas ao invés de criar melodias e climas que façam sua voz brilhar de forma uniforme (como o Back to Basics fez com clara competência). E, por fim, é um disco que segue tantos caminhos que termina sem personalidade e, portanto, sem apelo. Christina definitivamente sabe fazer melhor.

Cause I’m doing things I normally won’t do/ The old me’s gone, I feel brand new/ And if you don’t like it, then fuck you”

(Christina Aguilera – Not Myself Tonight)

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  “You put around your arm around my shoulder/ You made a rebel out of a careless man’s careful daughter/ You are the best thing that’s ever been mine”

(Taylor Swift – Mine)

You and your heart/ Shouldn’t feel so apart/ You can choose what you take/ Why you gotta break and make it feel so hard?”

(Jack Johnson – You And Your Heart)

3 de dez. de 2010

Nine (Nine, 2009)

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O que seria a vida senão uma interminável crise de identidade? Em um momento tudo queremos aos nossos pés, em outro não podemos nem mesmo suportar permanecer em nosso corpo, presos em nossa própria identidade. Somos muitos, dentro de nós mesmos, mas devemos permanecer sempre um. De certa forma, é desse tipo de crise que trata Nine, o novo musical de Rob Marshall, um releitura do clássico 8 e 1/2 que Federico Fellini filmou em 1963 após, vejam só, uma crise criativa. E a trama, é claro, não é mera coincidência. No filme original o Guido Anselmi feito com maestria por Marcello Mastroianni relembrava e vivia momentos decisivos de sua vida enquanto era pressionado para realizar sua nona obra após uma série de fracassos. Um dos centros do filme eram as mulheres de sua vida, que iam da musa Claudia (Claudia Cardinale, quase interpretando a si mesma) a esposa Luisa (Anouk Aimée), passando pela amante Carla (Sandra Milo, em atuação multi-premiada). Aqui, a narrativa se repete com a inserção de números musicais e ainda mais concentrada na relação de Guido, agora de sobrenome Contini, com suas femmes. E não é a toa que sejam elas as donas do show.

O elenco é, obviamente, o ponto mais forte do filme de Marshall, que já havia arrancado atuações explosivas de gente como Renée Zellweger, Catherine Zeta-Jones, Richard Gere e Queen Latifah em Chicago. E não dá para não comparar sua nova obra ao musical anterior de sua filmografia. Entre eles há o surpreendentemente ignorado Memórias de Uma Gueixa, mas a verdade é que, aqui, Marshall está em seu território. Tendo a oportunidade de fazer um drama comum interativo com os números musicais passados no imaginário do protagonista, o diretor nos oferece uma aula de como ser luxuoso sem soar exagerado, de como transformar um número individual em um show de grandes proporções, mas dizer que Marshall passa incólume de erros seria mentir. Refém de um roteiro que amarra as pontas por pouco e não consegue evitar de soar analógico em alguns momentos, o diretor realiza um trabalho burocrático nas cenas dramáticas e poucas vezes foge de alguns de seus vícios de câmera nos momentos musicais. Seu brilho continua, mesmo, nas coreografias e na forma como o ambiente é trabalhado. São cerca de uma dezena de números musicais, e todos são passados em um único cenário! A dose de criatividade que isso exigiu de Marshall e da equipe de decoração de sets é extraordinária e, o resultado final, também, fazendo dessa transformação o grande trunfo de Nine para conquistar o público.

Voltando a falar do elenco, é fundamental para a trama a atuação central de Daniel Day-Lewis. Ele passa por farsa, comédia e drama pesado como Guido, um personagem difícil, em questionamento constante e definição arisca, que o ator maneja para tornar simpático, trágico, envolvente e real. O sotaque italiano e a presença magnética deixa pouco espaço para as coadjuvantes (numerosas e talentosas) ofuscarem-no. Talvez a única que o domine em cena seja Marion Cotillard, que foi revelada pelo mezzo-musical Piaf e volta aqui ao seu terreno mostrando desenvoltura vocal e interpretativa. O fato de ela ser a única personagem feminina com dois números musicais ao invés de um é indicação de que sua força de comoção é mesmo impressionante. Em “My Husband Makes Movies”, ela pega uma canção até ati-climática e transforma em um dos momentos mais fortes e reflexivos do filme. Sem falar no intenso “Take it All”, por convenção o melhor número do filme, intercalado por uma cena em que Cotillard demonstra fragilidade e força a um único tempo, nos presentando com uma atuação absolutamente brilhante. Ela chega para ofuscar até a badalada Penélope Cruz, em uma performance lânguida e deliciosamente ingênua como Carla, a amante meio tonta do protagonista, que tem seu momento maior no sexy “Call From the Vatican”, uma performance digna de quem foi chamada de “furacão espanhol”. Afora a sensualidade, Penélope faz um trabalho decente no restante dos momentos em cena e não se deixa apequenar quando no mesmo quadro que Day-Lewis.

O elenco feminino, muito provavelmente o grande destaque de Nine, é completado ainda por uma mão cheia de performances de competência e força variáveis. Stacy Ferguson (a Fergie) não tem a chance de desenvolver uma atuação de verdade, mas mostra garra no número “Be Italian”, talvez o mais performático do filme, como a prostituta Saraghina. Sophia Loren tem a presença e a classe que era de se esperar, mas seu número musical, “Guarda la Luna”, é tão sonolento e preguiçoso que a impressão dominante é que Sophia foi chamada para dar credibilidade italiana a um filme naturalmente cosmopolita. Veterana por veterana, Judi Dench brilha muito mais, tendo a chance de ir além da competência contida de sempre no luxuoso número “Folies Bergère”, mostrando um lado extravagante que a nova geração de cinéfilos não teve a chance de ver, com a atriz escondida por trás dos terninhos de M. Quem também se solta em uma atuação extremamente divertida é a naturalmente expansiva Kate Hudson, encarando o número mais contagiante do filme em “Cinema Italiano” e representando com garra e carisma contidos, quem sabe, em um único e cativante sorriso. E, por fim, Nicole Kidman é a mesma cortina transparente de emoções na pele de Claudia, a musa, emulando o visual de Anita Ekberg em A Doce Vida, mas dando um gosto todo especial a sua personagem. Seu tempo de tela é pequeno, mas a beleza é hipnotizante e a atuação em “Very Unususal Way” é inevitavelmente tocante.

Nine é um filme falho, é bem verdade, às vezes tedioso, às vezes exagerado, mas qual é a graça de um musical que não o exagero? A verdade é que boa parte dos críticos esqueceu que, em um bom espetáculo, os pequenos erros são os que menos importam. Se o “ação” que fecha Nine provoca um sorriso e uma sensação de completude, o que mais podemos pedir?

Nota: 7,5

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Nine (Nine, EUA/Itália, 2009)

Uma produção da The Weistein Company/Relativity Media…

Dirigido por Rob Marshall…

Escrito por Michael Tolkin, Anthony Minghella…

Estrelando Daniel Day-Lewis, Marion Cotillard, Penélope Cruz, Sophia Loren, Nicole Kidman, Judi Dench, Kate Hudson, Stacy “Fergie” Ferguson…

118 minutos