Review: Dirty Computer (álbum e filme)

Janelle Monáe cria a obra de arte do ano com um álbum visual espetacular - e que desafia descrições.

Os 15 melhores álbuns de 2017

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Review: Me Chame Pelo Seu Nome

Luca Guadagnino cria o filme mais sensual (e importante) do ano.

Review: Lady Bird: A Hora de Voar

Mais uma obra-prima da roteirista mais talentosa da nossa década.

Review: Liga da Justiça

É verdade: o novo filme da DC seria melhor se não tivesse uma Warner (e um Joss Whedon) no caminho.

30 de set. de 2015

Review: A comédia de “Wet Hot American Summer: First Day of Camp” não é só pra americano ver

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por Caio Coletti

É fácil dispensar o humor de Wet Hot American Summer, tanto o filme de 2001 quanto essa absurda minissérie prequel lançada pelo Netflix no último dia 31 de Julho, como dirigido a um público muito específico. No final das contas, o longa-metragem original foi batizado aqui no Brasil de Mais um Verão Americano, o que não é uma má tradução para os padrões das distribuidoras nacionais, mas certamente é uma péssima estratégia de marketing. O título brasileiro vende uma noção de que a comédia escrita e dirigida por David Wain, que viria a fazer Viajar é Preciso e Faça o Que eu Digo, Não Faça o Que eu Faço, só pode ser verdadeiramente saboreada por quem passou a adolescência nos EUA e viveu de verdade o ambiente retratado no filme, um acampamento de verão do comecinho dos anos 1980. Um pouco menos limitante é pensar que, com todas as suas referências e personagens arquetípicos, Wet Hot American Summer é boa diversão só para quem conhece os saudosos e ingênuos filmes adolescentes da mesma década de 80 (as obras de John Hughes principalmente, é claro). Nenhuma das duas definições é exatamente justa, no entanto – a criação de David Wain, e especialmente First Day of Camp (a minissérie) é diversão garantida para qualquer pessoa exposta ao modelo básico de narrativa de qualquer arrasa-quarteirão hollywoodiano.

A ambientação e os clichês oitentistas estão aqui exatamente porque Hollywood nunca exatamente superou a facilidade formulaica da maioria das tramas dessa época. Porque o público de cinema do mundo inteiro ainda adora ver a história de um personagem que tem todas as probabilidades voltadas contra si, mas mesmo assim resolve arriscar sua sorte (ou não tem outra escolha). Nas aventuras e filmes de ação da terra do cinema, na maioria das vezes o nosso herói vira-lata surpreende a todos e vence o dia, terminando a história em um lugar muito mais vantajoso do que estava quando começou – não só essa é a fórmula de Hollywood, como é a estrutura básica de qualquer narrativa convencional (até as de qualidade!). O jogo de First Day of Camp é montar uma história composta de inúmeras pequenas jornadas desse tipo, e brincar com a expectativa do espectador, às vezes indo contra a convenção (e presentando nossos heróis com inesperados fracassos) e às vezes achando alguma maneira absurda de fazer tudo funcionar para o personagem em questão. A minissérie se diverte mais quando coloca suas crias em situações improváveis e inescapáveis, e se obriga a puxar a linha da verossimilhança para acomodar um final feliz.

Aos que viram e amaram Wet Hot American Summer, no entanto, não há nada a temer: o humor absurdista que era o principal atrativo do filme ainda persiste aqui, estocando os 8 episódios de pouco menos de meia hora com tiradas visuais brilhantes e preferindo (na maior parte do tempo) um humor de situações do que de one-liners, aquelas piadas rápidas que se originam exclusivamente da verbalização dos personagens. Apesar de provocar uma fragmentação da trama (é bastante óbvio que o elenco, lotado de astros, não esteve todo junto por muito tempo em set), a decisão de trazer de volta quase todos os membros do cast original mantem a importância histórica de Wet Hot American Summer como o nascimento de uma geração de comediantes, e ainda garante que as piadas de Wain sejam entregues com timing mais que perfeito. Os destaques ficam por conta de Bradley Cooper, que reportadamente filmou suas cenas em apenas um dia, mas que traz para a tela um entendimento do personagem e do humor que ele representa que não teve tempo de existir nas meras 1h30 do filme original; Cristopher Meloni, que ainda é a figura mais espetacular da larga galeria de personagens; e H. Jon Benjamin, que apareceu apenas em voz no filme de 2001 e agora se personifica em uma atuação tremendamente engraçada mesmo com pouco tempo em tela.

O cômico desajuste etário dos atores principais (quase todos na casa dos 40, e interpretando adolescentes ou jovens adultos) e as referências espertas ao filme original são só a superfície de First Day of Camp, que desenterra improváveis origens para os personagens que já conhecíamos mas, surpreendentemente, mantem o mesmo carinho e compreensão por eles que existia no Wet Hot American Summer de 14 anos atrás. A assinatura de Wain garante que a minissérie do Netflix seja o tipo de “comédia com coração” que não apela para o sentimentalismo barato, ou mesmo dá trégua em suas piadas para inserir momentos dramáticos “sérios e importantes” – ele encontra a essência de seus personagens tanto na época que retrata em sua narrativa quanto dentro dos improváveis plots que se desenrolam durante os capítulos. Mesmo uma década e meia depois, não há nada como Wet Hot American Summer na comédia ianque atualmente, e First Day of Camp é um bem-vindo retorno desse tipo de humor para as telas.

✰✰✰✰ (4/5)

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Wet Hot American Summer: First Day of Camp (EUA, 2015)
Direção: David Wain
Roteiro: Michael Showalter, David Wain, Christina Lee
Elenco: Marguerite Moreau, Paul Rudd, Michael Showalter, Michael Ian Black, Bradley Cooper, Janeane Garofalo, Amy Poehler, Molly Shannon, Lake Bell, David Bloom, Jason Schwartzman, Samm Levine, Elizabeth Banks, Christopher Meloni, Josh Charles, Michaela Watkins, David Wain, Joe Lo Truglio, Ken Marino, Chris Pine, H. Jon Benjamin, Jon Hamm, Michael Cera, Kristen Wiig, Jayma Mays, Weird Al’ Yankovic
8 episódios

28 de set. de 2015

Deixem o Wagner “hablar”: As críticas brasileiras de “Narcos” e a cultura latino-americana

Narcos

por Fabio Christofoli

A série Narcos me surpreendeu desde antes de existir. Começou com a proposta. Ousada demais. Falar sobre o maior traficante da história sob o olhar de um detetive estadunidense. Ok, isso seria normal, se o projeto fosse tocado nos Estados Unidos. Não foi. Depois fiquei “surpreso” com a escalação de dois brasileiros: José Padilha e Wagner Moura. Um iria contar, outro iria protagonizar a ferida mais dolorida da Colômbia. Polêmico também. Nisso eu já estava ansioso. Vinha aí uma série bem produzida, com a América Latina tendo autonomia e com dois brasileiros talentosos na linha de frente. Vi os primeiros episódios e me animei ainda mais. Que série incrível! Aí veio a maior e mais decepcionante surpresa de todas: muitos brasileiros reclamaram.

Num primeiro momento não entendi. Reclamaram de que? Aí começaram a brotar motivos. O primeiro era o espanhol do Wagner Moura. Eu confesso que nem reparei. Talvez porque meu espanhol seja bem pior que o dele. É tão ruim que quando viajo para um país que fala espanhol, nem arrisco. Falo português devagar porque acho ridículo ficar tentando hablar (aliás, você já viu algum hispânico tentando falar português por acaso?). Enfim, até entendi a crítica, deve ser muito estranho mesmo para quem é nativo ouvir um estrangeiro. Mas, e já ouvi isso de muitos colombianos, a atuação foi tão boa que isso fica em segundo plano.

Em seguida a coisa piorou. Os brasileiros acharam mais motivos. Alguns acusaram o grande ator Wagner Moura de falhar na interpretação. Chamaram até de “Capitão Nascimento 2”. Aí eu comecei a ver exageros, pois achei a interpretação dele muito boa. Senti toda a imponência de Pablo Escobar como um criminoso e odiei ele por tudo que fez.

Depois disso veio o golpe final. Agora é moda falar que Narcos não se compara a uma outra série sobre Pablo Escobar, a produção colombiana Pablo Escobar – El Patron del Mal. Foi neste momento que parei e pensei: os caras tão de sacanagem.

Não estou dizendo que a série colombiana é ruim. Mas são propostas completamente diferentes. Narcos não é uma série sobre Pablo Escobar. Ela é a visão de um policial estadunidense sobre o período que viveu na Colômbia e perseguiu Escobar. Ele é o vilão, rouba a cena, mas a preocupação não é contar detalhe por detalhe da história dele, nem mesmo a história correta, e sim contar a história do policial com ele. Simples de entender, não? Além disso, com todo respeito: Narcos é uma produção 10x melhor que El Patron del Mal. Tanto no lado técnico (fotografia, edição, trilha sonora e etc) quanto em roteiro e atuações.

Essa onda cult de críticas a algo feito por brasileiros lá fora não é novidade. Lembram quando Ivete Sangalo fez um show no Madison Square Garden? Pipocou gente dizendo que “só tinha brasileiro na plateia”, como se isso diminuísse o feito. Outros exemplos não faltam. É moda falar mal do Romero Britto apenas por falar. No primeiro tombo, Anderson Silva virou um fracassado. Me digam qual brasileiro de sucesso lá fora tem prestígio por aqui? Ayrton Senna, porque infelizmente morreu jovem demais para pegarem implicância.

Brasileiro odeia o sucesso de outro brasileiro lá fora. É como se isso ferisse a nossa cultura, porque o Brasil vive uma histórica frustração com o mundo. Tenta ser aquele país amado por todos, mas não tem a capacidade de se amar. Nossa cultura, que décadas atrás era rica e própria, está cada vez mais sucumbindo à influência do exterior.

Li uma entrevista do Wagner Moura sobre Narcos, e ali vi a maior verdade de todas sobre a série. Ele sentia orgulho de fazer parte daquilo, de ver tantos artistas latino-americanos talentosos envolvidos no projeto. Artistas que ele mesmo reconheceu que desconhecia, pois nós, países latinos, somos desunidos demais para saber muita coisa um sobre o outro – e o Brasil consegue ser o mais alheio dos países. Ele viu ali, e com razão, um grande trabalho colaborativo. Envolvendo várias nações, inclusive os Estados Unidos, que historicamente gosta de contar as coisas do seu jeito. É uma grande oportunidade de promover a América Latina em escala mundial.

Por isso, acho saudável o espanhol com sotaque do Wagner. Poderia ser um ator colombiano? Poderia. Seria mais coerente e até correto. Mas será que teria esse caráter de união continental? Duvido muito. Então, deixem ele hablar um pouco mais, quem sabe assim a gente aprenda um pouco a se entender melhor.

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22 de set. de 2015

Review: “Que Horas Ela Volta?” é espetacularmente sensível, e tão agridoce quanto a realidade

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por Caio Coletti

No primeiro terço da metragem de Que Horas Ela Volta?, a câmera da diretora/roteirista Anna Muylaert raramente nos deixa ver uma situação ou cenário por completo. Se servindo de takes longos e colocações de câmera geniais (a mais notável é aquela que filma a cozinha e a sala de jantar ao mesmo tempo, através de uma porta que separa os dois cômodos), a diretora nos apresenta o mundo da protagonista Val, feita por Regina Casé, através de imagens estáticas, mas tremendamente significativas das limitações que são impostas à sua personagem pelos patrões. A impressão é que Muylaert quer nos mostrar apenas os ambientes nos quais Val é permitida de transitar, e as portas e paredes que se impõem entre ela e a família para a qual trabalha como empregada doméstica, mesmo que a afeição entre ela e o garoto Fabinho (Michel Joelsas), de quem cuida desde a infância, seja real e palpável. Que Horas Ela Volta? não se limita a mostrar a tensão que existe em uma relação como essa, em que alguém vivendo sob o mesmo teto que o seu é visto como seu superior ou seu subalterno – é quase cruel ao nos fazer ver pelos olhos de Val essa relação de opressão disfarçada de emprego.

Nada coincidentemente, quando entra em cena Jéssica (Camila Márdila, ótima), a filha de Val que vem do Nordeste para São Paulo a fim de prestar vestibular, Que Horas Ela Volta? começa a se abrir como filme e como narrativa. A garota, que cresceu longe da mãe e criada por uma tia com o dinheiro que Val mandava de São Paulo, quer fazer arquitetura, e, filha de uma geração à qual foram dadas oportunidades que seus pais e mães não tiveram, enxerga a situação precária pela qual Val passa e decide não se sujeitar às mesmas regras, para o desespero da mãe. Aceita as propostas e gentilezas que os patrões estendem a ela sem hesitar, apesar de Val dizer que eles só estão fazendo isso por educação – na cabeça de Jéssica, mesmo que eles estejam, talvez não devessem estar. A menina causa comoção não por se considerar superior, como Val sugere em um momento, mas por aceitar ser tratada como igual, e no processo desmascara a hipocrisia de uma família de classe alta que gosta de fingir, para o bem da sua consciência, que trata todos como iguais, só para ouvirem satisfeitos os empregados dizerem que “não, obrigado”.

É a partir da chegada e da convivência de Jéssica com a família composta não só por Fabinho, mas pela “megera” Bárbara (Kerine Teles) e pelo frustrado Carlos (Lourenço Mutarelli), que a direção e o roteiro de Muylaert se permitem, de forma bem progressiva e orgânica, explorar os espaços que são vistos como “exclusivos” dos patrões, e quebrar aos poucos as portas e paredes que nos separavam, como espectadores, e separavam Val, desses cômodos e ambientes. Pertinho do final, quando uma última fronteira dessa separação é finalmente quebrada, o impacto emocional que a cena provoca no espectador não ocorre apenas pelo diálogo que Muylaert escreve ou pela atuação tremendamente sincera e compreensiva de Casé, mas principalmente porque o filme construiu uma linguagem visual que trabalha de forma completamente integrada, e absurdamente sutil, junto com a narrativa. Que Horas Ela Volta? não é só uma crítica social e um drama de personagem acertadíssimo, é cinema absurdamente bem-pensado e realizado, e precisa ser reconhecido como tal.

O filme de Muylaert também passa longe da sensibilidade “novela” que alguns associaram a ele apenas pelo envolvimento da Globo Filmes na produção. Sim, Que Horas Ela Volta? é a exceção, e não a regra, mas isso só adiciona à preciosidade e raridade das realidades que ele observa. O humor maravilhoso que o filme cultiva vem muito mais do espírito e dos quirks deliciosos da protagonista Val, e da afiada sátira social que domina algumas cenas, do que da estereotipagem de personagens que estamos acostumados a ver na dramaturgia brasileira. O timing cômico de Casé é essencial para o filme, mas Muylaert não deixa que o espectador ria de sua protagonista ou do que ela representa, preferindo usar o bom-humor dela para realçar a resiliência e a bondade natural que reside nela. Da mesma forma, a caracterização da “vilã” Bárbara é incisiva sem ser caricata, confiando na ótima Karine Teles para equilibrar esses dois lados e criar uma personagem que não é simpática ao espectador, mas é bastante real. A sutileza, inclusive, é o que dá o tom do elenco, todos seguindo a deixa de Casé, que construiu uma Val marcante em tela, mas que nunca escapa para os maniqueísmos e exageros de um retrato social menos inteligente.

Com uma protagonista tão acertada quanto seu roteiro e sua direção, Que Horas Ela Volta? é um drama com muito a dizer sobre constituição de família, sobre a terceirização do cuidado dos filhos, sobre desigualdade social e o ciclo vicioso que ela cria para as classes mais pobres. Tem o coração no lugar certo, uma cabeça mais do que esclarecida, e uma composição visual genial para casar com sua construção empática e sensível de personagens. E o melhor, já nos dá razão pra comemorar: um dos melhores filmes de 2015 é brasileiro.

✰✰✰✰✰ (5/5)

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Que Horas Ela Volta? (Brasil, 2015)
Direção e roteiro: Anna Muylaert
Elenco: Regina Casé, Michel Joelsas, Camila Márdila, Karine Teles, Lourenço Mutarelli
112 minutos

20 de set. de 2015

Você precisa conhecer: o rigor e o desajuste do duo de synthpop Priest

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texto por Caio Coletti
entrevista por Ilson Junior & Caio Coletti

Apesar da sensibilidade gelada que as influências musicais do Priest deixam transparecer, Madeline Priest e Dave Kazyk são ambos naturais do ensolarado estado da Flórida, nos EUA. Com essa informação em mãos, talvez o ouvinte consiga reconhecer melhor as particularidades que fazem a música do duo especial em meio ao mar de artistas synthpop do cenário independente. Assinados com uma gravadora sueca, os dois fazem música para noites evocativas e contam com uma pletora de referências dos anos 80 para compor peças climáticas, que os colocam em um território fora da bolha de artistas que misturam R&B e sintetizadores (vide a sueca Marlene, que já perfilamos aqui no site).

A parte do “rigor” do título vem dos vocais de Madeline, que confessou abordar o canto da mesma forma como abordou seu treinamento em ballet clássico. “Na dança, especialmente no ballet, tudo parece gracioso e fluído, mas na verdade você está se esforçando muito. Quando eu canto, apesar de não ser tão rigoroso quanto a dança, eu tenho usar essa mesma energia”, ela disse em entrevista ao Idolator (aqui). Essa abordagem se faz notar na voz controlada da moça, que sabe de que forma melhor servir à música e nunca se rende à exibicionismos – em suma, Madeline parece mais um instrumento bem afinado nas produções do parceiro Kazyk.

A vocalista do duo também respondeu algumas perguntas para O Anagrama, como você pode conferir a seguir. O primeiro disco do Priest, auto-intitulado, saiu no último dia 05 de Maio, e pode ser ouvido na íntegra logo aí embaixo.

PS: Madeline nos confessou, na entrevista, que o primeiro vídeo do duo pode sair logo logo, então fica a expectativa.

O Anagrama: Depois de alguns bons anos de influência oitentista dominando a música pop e a música experimental, recentemente a maioria dos artistas tiraram inspiração dos anos 90. Como vocês veem essa mudança nas influências, e como isso afeta ou não afeta o seu jeito de fazer música, que é francamente inspirado nos anos 1980?

Madeline: Bom, como a música está sempre evoluindo eu acho que é assim que estamos olhando para o que fazemos. Nós tiramos inspiração de muitos lugares, e realmente qualquer coisa está na mesa para usarmos quando quisermos. Eu não acho que nos sintamos confinados em uma “caixinha” oitentista. Estamos trabalhando em novo material agora, então estou animada para ver onde isso vai nos levar.

O Anagrama: O seu processo criativo é mais calculado ou espontâneo? Vocês param e falam sobre que tipo de som vocês querem para determinada faixa e porque, ou é uma coisa mais no estilo “faça o que soar bem”?

Madeline: Nós meio que só mergulhamos na música e vemos o que funciona e o que soa bem. Então eu acho que o nosso processo é um pouco mais espontâneo. Eu tenho dificuldades para me focar algumas vezes, então eu provavelmente preciso trabalhar em ser um pouco mais calculada nesse sentido.

O Anagrama: A disputa entre a indústria pop e os artistas independentes é algo do qual vocês se sentem parte? Conforme sua carreira progride, vocês sentem que a pressão para ser comercial ou mais acessível atrapalha sua criatividade?

Madeline: Eu não acho que nos sentimos muito pressionados por isso. Nós estivemos em situações em que poderíamos ter sacrificado nossa integridade musical por muita exposição midiática ou dinheiro, mas nenhum de nós dois quer isso. Nós somos muito gratos pelas oportunidades que recebemos, e sabemos que elas aconteceram por causa das pessoas que nos apoiaram e compartilharam nossa música desde que lançamos “Samurai”.

O Anagrama: Quais são as chances de vermos uma versão física do álbum de estreia? Por que vocês decidiram não lançar ainda, ou não lançar at all?

Madeline: Vocês podem comprar uma cópia física aqui no nosso site! Nós não as tínhamos para o lançamento inicial, mas recebemos tantos comentários e mensagens pedindo por elas que não poderíamos não produzí-la.

Pra quem gosta de: Robyn, Royksopp, The Human League, Pet Shop Boys, Oh Land

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16 de set. de 2015

Review: “Hannibal” entra para o limitado rol das séries que terminaram da forma como deveriam

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por Caio Coletti

A liberdade que a NBC concedeu à Hannibal durante seus três anos no ar não encontra paralelos dentro da história da televisão aberta americana. Talvez por isso tenha sido difícil ficar furioso com a emissora quando, ainda no comecinho da terceira temporada, foi anunciado o cancelamento da criação de Bryan Fuller (Pushing Daisies). Desde o primeiro ano rendendo muito prestígio crítico para a emissora, a série evoluiu tremendamente quando lhe foi dada a liberdade de se desenvolver e ser o que sempre teve potencial para ser – a nossa dose semanal de narrativa onírica com toques de pesadelo e apuro visual sem comparação dentro do seu gênero. O procedural sofisticado que caracterizou o primeiro ano deu lugar a uma intensa história de vingança e justiça no segundo, e se transformou em um amontoado elegantíssimo de metáforas, hipnoses e meditações nesse espetacular terceiro, que em 13 episódios arquivou a virtude de ser uma peça absurdamente autoral e idiossincrática de televisão sem nunca alienar o espectador.

A equipe de roteiristas e diretores de Hannibal nos envolveu e nos cercou tão eficientemente com a matéria escorregadia da qual a sua narrativa é feita que todos os arroubos estilísticos e truques espertos de edição, fotografia e trilha-sonora funcionavam a perfeição. Por quase uma hora por semana, a série nos provinha uma experiência imersiva e assustadora, sim, mas também tremendamente bela e invariavelmente fascinante. Hannibal, durante esse terceiro ano, foi a epítome daquela velha máxima sobre técnica e narrativa cinematográfica: “não diga, mostre”. Por todos os seus diálogos crípticos e construções complexas de personagem, por toda a interminável análise psicanalítica envolvendo o protagonista Will Graham (Hugh Dancy) e sua conflituosa relação com o personagem-título, Hannibal Lecter (Mads Mikkelsen), a trama da NBC escondia muito da sua substância, do seu significado, por baixo de todas as camadas de verbalização, e era isso que a fazia não só uma produção televisiva absurdamente competente – muito mais que isso, Hannibal é uma das poucas séries da atualidade que se qualifica como verdadeiramente inesquecível.

E o quê Hannibal mostrou, se pergunta o leitor nesse momento, ao invés de dizer? A verdade é que a série de Bryan Fuller foi tão espetacular porque era sombria e perturbadora com um propósito, não apenas por ser – também porque mostrava atos de violência extrema sem esconder as profundas consequências psicológicas e físicas deles, porque não nos poupava dos traumas causados por aquele banho de sangue graficamente maravilhoso que víamos em tela, e porque em nenhum momento pretendeu glamourizar, relativizar ou justificar essa violência. Hannibal nos mostrou um mundo propenso ao caos em que as maquinações e manipulações de seu personagem-título eram apenas um agente catalisador das piores partes da humanidade daqueles que o cercavam. Hannibal não nos dizia que esse mundo é um lugar sombrio e que seres humanos são capazes de coisas terríveis – nos mostrava na complicada e sutil teia dos acontecimentos e das sensibilidades trazidas para a tela que há algo de inerentemente mórbido na nossa vida e na nossa construção psicológica. A série da NBC passou três anos nos mostrando a morte e a violência como uma parte fundamental da condição humana e da sociedade que criamos na conjunção das nossas psicologias (e psicopatias?). É um tema caro e recorrente nas séries de Fuller, mas não é menos impressionante como narrativa por isso.

Ajudou e muito, é claro, que tecnicamente a série fosse uma das produções mais impressionantes dessa era da televisão americana. A contribuição dos diretores não pode absolutamente ser reduzida a escolhas burocráticas, como ainda acontece na maioria das séries, especialmente nas de TV aberta – nomes como Vicenzo Natali (Cubo), Guillermo Navarro (diretor de fotografia de O Labirinto do Fauno) e Michael Rymer (A Rainha dos Condenados) contribuíram imensamente para a construção da identidade de Hannibal, traduzindo as obsessões e simbolismos da narrativa em imagens por vezes belíssimas, por vezes assombrosas, e frequentemente uma combinação de ambas as coisas. O roteiro muitas vezes labiríntico dos episódios, especialmente na terceira temporada, era deslindado e carregado pelas escolhas estilísticas dos diretores, e também era trabalho deles nos guiar pelos diálogos por vezes abstratos e desritmados (no melhor dos sentidos) tecidos pelos escritores. Ao lado principalmente de Steve Lightfoot (Camelot), Bryan Fuller escreveu com confiança exponencial na habilidade de seus diretores de criar a atmosfera que ele precisava para passar suas mensagens, das mais superficiais às mais profundas – na esmagadora maioria das vezes, essa aposta deu certo.

A escalação do elenco também foi um toque de mestre. Não existe mais discussão quanto ao fato de que Mads Mikkelsen  tomou o personagem que foi de Anthony Hopkins nos filmes para si e entregou uma interpretação única e fascinante dele. Não cabem mais comparações entre os dois atores, mas é interessante ainda notar que o dinamarquês emprestou dicas da forma como Hopkins expressava a astúcia e a frieza do Dr. Lecter mas tirou dele o comportamento mais intenso, a linguagem corporal mais instintiva, quase animal, que provavelmente era advinda de muitos anos em encarceramento. O Hannibal de Mikkelsen é uma criatura de nuances e atenção aos detalhes, e a tremenda civilidade e elegância no trato que o ator imprimiu a esse psicopata aterrorizante apenas sublinhava a percepção social aguda que a série carregava. A força da performance de Mikkelsen não obliterou, no entanto, a tremenda sensibilidade e expressividade do trabalho de Hugh Dancy como Will – e a junção dos dois em cena produziu faíscas físicas, emocionais e retóricas que foram essenciais para que o finale da série funcionasse tão bem. O retrato contundente e determinado que Dancy fez da empatia e da compreensão que Will estendia até para os mais incorrigíveis psicopatas e sociopatas ajudou a caracterizar Hannibal como uma história sobre humanidade, e as coisas terríveis entalhadas nela. Num mundo justo, ambos os protagonistas sairiam dessa jornada com Emmys na prateleira.

“The Wrath of the Lamb”, o series finale de Hannibal, termina da mesma forma pessimista e sombria com a qual a série levou sua narrativa desde o começo (embora a cena pós-créditos traga uma picada de ironia para completar). Seria falso terminar Hannibal de outra forma, no final das contas, e Fuller não é um escritor propenso a falsidades, muito menos a fazer concessões para agradar o público – embora existisse uma fatia dos fãs que entendia a relação complicada de Will e Hannibal como um caso de amor (um amor perturbado, mas still…), a junção final dos dois protagonistas e seu mergulho, literal e figurativo, em direção a absoluta insanidade, parece tremendamente adequada e, ao mesmo tempo, muito corajosa. Durante três anos, Hannibal nos fez olhar fixamente para o abismo, e ainda insistiu que entendêssemos que esse abismo está mais do que presente na vida real, na natureza humana, na sociedade que encaramos todos os dias. Nada mais apropriado, portanto, que no final o abismo nos olhasse de volta.

Notinhas adicionais:

  • Mikkelsen e Dancy são de fato o núcleo nervoso de Hannibal, mas é impossível terminar esse último review da série sem citar os coadjuvantes maravilhosos que passaram pela série, construindo personagens complexos, interessantes e em sintonia com o clima da série. O destaque, é claro, vai para as moças: Gillian Anderson (Bedelia), Caroline Dhavernas (Alana), Hettienne Park (Beverly), Kacey Rohl (Abigail), Lara Jean Chorostecki (Freddie), Katherine Isabelle (Margot), Gina Torres (Bella), Rutina Wesley (Reba), Tao Okamoto (Chiyo) e Nina Arianda (Molly). Girl power!
  • We’ll miss you, Hannibal.

✰✰✰✰✰ (5/5)

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Hannibal (EUA, 2013-2015)
Direção: Michael Rymer, Guillermo Navarro, Vincenzo Natali, David Slade, Tim Hunter, John Dahl, Peter Medak, Neil Marshall, etc
Roteiro: Bryan Fuller, Steve Lightfoot, Scott Nimerfro, Jeff Vlaming, Chris Brancato, Andrew Black, Nick Antosca, Kai Wu, Jennifer Schuur, Don Mancini, etc
Elenco: Hugh Dancy, Mads Mikkelsen, Caroline Dhavernas, Laurence Fishburne, Scott Thompson, Aaron Abrams, Gillian Anderson, Hettienne Park, Kacey Rohl, Lara Jean Chorostecki, Raúl Esparza, Katherine Isabelle, Eddie Izzard, Richard Armitage, Gina Torres, Rutina Wesley, Joe Anderson, Michael Pitt, Cynthia Nixon, Tao Okamoto, Anna Chlumsky, Nina Arianda, Zachary Quinto
39 episódios

13 de set. de 2015

Save the cheerleader, save the world: Revendo as 4 temporadas originais de “Heroes”

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por Caio Coletti

Desde que foi anunciado que Heroes iria voltar à programação da NBC, lá em Fevereiro de 2014, a internet rachou em dois: aqueles que se sentiram esperançosos quanto a um retorno à boa forma da lendária primeira temporada da série, de 2006; contra aqueles que se lembravam dos deslizes cometidos nos anos posteriores ao primeiro, e ficaram com vários pés atrás quando a esse retorno. Uma parte do elenco, afinal, provavelmente estaria ocupada demais para voltar – Hayden Panettiere (a Claire) com Nashville, Milo Ventimiglia (o Peter) com papéis em The Whispers e Gotham, Zachary Quinto (o Sylar) sendo uma estrela de cinema. Além do mais, o criador Tim Kring (de volta como produtor executivo) e seu time de roteiristas já haviam decepcionado uma vez, mesmo que uma parte da culpa tenha caído em cima da greve de escritores que rolou em Hollywood em 2007, bem no meio da segunda temporada da Heroes original.

A verdade é que só saberemos a resposta para a dúvida da qualidade da nova minissérie (de 13 episódios) em 24 de Setembro, quando o primeiro episódio estrear na NBC, mas aqui está o que já sabemos: Jack Coleman (Noah), Greg Grunberg (Matt), Noah Gray-Cabey (Micah), Sendhil Ramamurthy (Mohinder), Masi Oka (Hiro) e Jimmy Jean-Louis (O Haitiano) estão de volta para seus papeis; os novos membros do elenco são Zachary Levi (Chuck), Ryan Guzman (Pretty Little Liars), Robbie Kay (Once Upon a Time), Danika Yarosh (Shameless) e Henry Zebrowski (A to Z) entre outros; já da pra conhecer o personagem desse último na websérie Heroes Reborn: Dark Matters, que foi lançada no Youtube mas está indisponível para o território brasileiro (dá pra achar torrent por aí bem fácil); a trama de Heroes Reborn vai se passar cinco anos depois dos acontecimentos da série original, num contexto em que as pessoas com habilidades estão enfrentando preconceito e tentativas de controle por parte do governo e de uma companhia que parece seguir os mandamentos da Primatech.

Veja o trailer oficial aí embaixo, e depois se delicie com os nossos reviews das quatro temporadas anteriores de Heroes (com a exceção da segunda, elas não eram tão ruins quanto lembrávamos):

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Heroes – 1ª temporada (EUA, 2006-2007)
Direção: Allan Arkush, Greg Beeman, Paul Edwards, John Badham, etc
Roteiro: Tim Kring, Jeph Loeb, Bryan Fuller, Adam Armus, Kay Foster, Aron Eli Coleite, Joe Pokaski, etc
Elenco: Jack Coleman, Noag Gray-Cabey, Tawny Cypress, Greg Grunberg, Ali Larter, Masi Oka, Hayden Panettiere, Adrian Pasdar, Sendhil Ramamurthy, Milo Ventimiglia, Zachary Quinto, James Kyson
23 episódios

Em seus melhores momentos, Heroes é largamente uma história sobre o poder da escolha – o que é estranho, vide a interminável discussão sobre os entremeios do destino que forma a narração em off feita por Sendhil Ramamurthy (o Mohinder). O curioso, então, é que mesmo quando canta as venturas e desventuras desse elusivo conceito de destino, Heroes na verdade está nos contando uma história sobre um grupo de pessoas que enfrenta circunstâncias extraordinárias, e que se definem pelas escolhas que fazem frente a elas. É esse o encanto da primeira metade da aclamada temporada da estreia, na qual conhecemos pouco a pouco a vida dos personagens que acompanharíamos por mais quatro anos (alguns deles não por tanto tempo) – nas mãos de Tim Kring, Jeph Loeb e Bryan Fuller, os três principais escritores da temporada, cada tipo desenhado com pinceladas largas e sensibilidade quadrinesca ganha vida junto com a trama convoluta que acerta em cheio ao não nos contar mais dos mistérios da trama do que o que é absolutamente necessário e conveniente para os personagens e sua jornada no momento. A verdade é que essa primeira temporada de Heroes foi bem-sucedida porque foi escrita com habilidade e planejamento ímpares no cenário da TV aberta.

Os destaques da temporada, obviamente, são Masi Oka, que mostra sensibilidade e carisma gigantescos ao construir seu retrato icônico de Hiro, o nerd japonês que descobre ser capaz de manipular o tempo-espaço; e Zachary Quinto, que molda um vilão formidável em Sylar, o “ladrão de habilidades” que representa o lado ruim do desejo de ser especial ou “diferente”, um traço comum entre muitos personagens da série. Muitas dessas pessoas levam vidas ditadas por suas limitações: o policial Matt Parkman (o sempre ótimo Greg Grunberg) não consegue uma promoção porque sofre de dislexia; o enfermeiro Peter (Milo Ventimiglia) não se contenta em salvar o mundo “uma pessoa de cada vez”; o próprio Hiro se sente preso no emprego de executivo que tem em um cubículo em Tóquio. Heroes é uma história sobre pessoas que estão clamando por mudança, e para quem essa mudança chega de forma radical – joga com a fantasia que todos nós temos de abandonar nossa vida ordinária e nos tornarmos algo notável, mas é também uma maneira linda de refletir, sob a lente de aumento da ficção, sobre as escolhas que precisamos tomar todos os dias, e a forma como estamos moldando nosso futuro com elas.

✰✰✰✰ (4/5)

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Heroes – 2ª temporada (EUA, 2007)
Direção: Greg Beeman, Allan Arkush, Paul Edwards, Adam Kane, Lesli Glatter, Greg Yaitanes, etc
Roteiro: Tim Kring, Michael Green, Adam Armus, Nora Kay Foster, Aron Eli Coleite, Joe Pokaski, Jeph Loeb, etc
Elenco: Jack Coleman, Noah Gray-Cabey, Greg Grunberg, Ali Larter, Masi Oka, Hayden Panettiere, Adrian Pasdar, Zachary Quinto, Sendhil Ramamurthy, Milo Ventimiglia, Dana Davis, Kristen Bell, Stephen Tobolowsky
11 episódios

É um clichê cansado abrir qualquer texto sobre a segunda temporada de Heroes com uma notinha explicativa sobre a greve dos roteiristas de Hollywood, que durou do final de 2007 até o começo de 2008, e provavelmente é a responsável pelos últimos episódios da temporada (encurtada na pressa quando a greve explodiu) parecerem tão corridos e mal-estruturados. Tanto “Truth & Consequences” quando “Powerless” (2x10 e 2x11) provavelmente foram estruturados como uma colagem de ideias e diálogos que os escritores já tinham em mente antes da paralisação, e isso é flagrante para qualquer observador mais cuidadoso. Assim, sem tempo para respirar e manipular sua história, o segundo ano de Heroes terminou com uma nota verdadeiramente desapontadora quando se leva em consideração a promessa da temporada de estreia. Não dá para culpar tudo na greve, no entanto, porque até os episódios iniciais dessa season 2, concebidos, finalizados e exibidos antes da paralisação, não se sustentam frente ao estilo de narrativa que a série havia estabelecido. Intitulado “Generations”, esse “segundo volume” da história dos heróis é ainda mais frustrante porque às vezes, bem às vezes, nos deixa ver que tem uma história ótima para contar, se ao menos soubesse a forma certa de contá-la.

Para começar, o arco do primeiro ano – que construía expectativa e familiaridade até o momento em que todos os protagonistas estavam reunidos, por suas próprias razões e com suas próprias missões, em um só lugar – é substituído aqui por uma narrativa que parece verdadeiramente fragmentada. Hiro passa grande parte da temporada no Japão do século XVII; Peter, na Irlanda; acompanhamos os irmãos Alejandro e Maya em sua jornada da Venezuela para os EUA, e a série ainda dá um jeito de colocar o vilão Sylar com eles. Heroes é uma série com muitos atores competentes, mas poucos excepcionais, e a verdade é que muitos deles funcionam melhor quando estão juntos. Para uma temporada que, no fundo, é sobre a forma como o passado assombra os caminhos do presente e do futuro, essa segunda de Heroes não se esforça muito (ou talvez não reserve o devido tempo) para mostrar o que esses indivíduos únicos que a série construiu podem fazer, juntos, para corrigir ou ratificar seus passados. Entre os 11 episódios há pequenos flashes do que poderia ter sido uma história carregada de emoções e caminhos interessantes, um retrato honesto da natureza da perda, do pesar, da culpa e do arrependimento. Há até um ótimo capítulo, o nono (“Cautionary Tales”) – mas a verdade é que tudo que era cuidado e atenção à narrativa na primeira temporada explode sumariamente, exatamente como Peter no primeiro ano. E esse não é o tipo de desastre divertido de se assistir.

✰✰✰ (2,5/5)

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Heroes – 3ª temporada (EUA, 2008-2009)
Direção: Allan Arkush, Greg Beeman, Jeannot Szwarc, Greg Yaitanes, Eric Laneuville, etc
Roteiro: Tim Kring, Joe Pokaski, Aron Eli Coleite, Adam Armus, Kay Foster, Jeph Loeb, Rob Fresco, etc
Elenco: Jack Coleman, Hayden Panettiere, Ali Larter, Adrian Pasdar, Greg Grunberg, Masi Oka, James Kyson, Zachary Quinto, Sendhil Ramamurthy, Christine Rose, Milo Ventimiglia, Ashley Crow, Brea Grant
25 episódios

Vamos tirar uma coisa do caminho: Heroes nunca se recuperou completamente do desastre da segunda temporada. A atuação durante a greve dos roteiristas deixou mais que exposta a constituição frágil e desapontadora da trama da série, segurada na garra por um grupo de escritores talentosos que não perdiam de vista os temas e os personagens. No terceiro ano, com Hollywood mais que recuperada do susto, Heroes ganhou uma temporada de 25 episódios para acertar a bagunça e mostrar que ainda era capaz de prender o público e convencer com a história dessas pessoas ordinárias recebendo poderes extraordinários. Dividida em dois volumes, o conjunto resultante desse investimento massivo feito pela NBC é um amontoado de episódios de qualidade bastante variável, que eventualmente esbarram no brilhantismo mas nunca firmam os pés nele com a segurança e a determinação da primeira temporada. A grande vantagem que esse terceiro ano tem em relação ao segundo, no entanto, é que ele trata os temas da história com muito mais cuidado, se certificando de que as mensagens são entregues e as jornadas dos personagens nos digam alguma coisa importante sobre eles. Heroes não exatamente recupera o feeling de pertencimento que entregou na primeira temporada, em que convidava o espectador a compartilhar das decisões e destinos de pessoas marcadas como diferentes, mas que tinham muito de semelhante conosco, mas é possível sentir a mão cuidadosa dos roteiristas por trás da(s) história(s) contadas aqui.

O lado ruim é que, conforme a série se aventura cada vez mais longe na história desses super-heróis nada convencionais, e quanto mais ela revela sobre o passado dos nossos protagonistas e da geração que veio antes deles, Heroes se torna menos imediatamente assimilável nos aspectos dramáticos. Os poucos momentos de personagem que funcionam aqui se voltam para as relações “ordinárias” do grupo central de atores, especialmente o retrato dos relacionamentos entre pais-e-filhos, que conserva  alguma força na forma como se costura ao tema de sacríficos e arrependimentos que guia a segunda metade da temporada. A série também aprendeu a lição de não manter todos os heróis separados por muito tempo, e trata de interconectá-los de forma interessante durante a temporada, mesmo antes de juntar quase todos os protagonistas no final apoteótico. As motivações particulares de cada um deles, no entanto, seguem meio difusas por uma boa parte dos 25 episódios, especialmente as de Sylar, que passa por várias crises de identidade e sai de cada uma delas com objetivos mais confusos. No jogo perigoso entre maniqueísmo (no Volume 3, “Villains”) e relativismo (no Volume 4, “Fugitives”) do terceiro ano de Heroes, quem sai perdendo é o personagem de Zachary Quinto, que sempre caminhou na linha tênue entre as duas coisas.

✰✰✰✰ (3,5/5)

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Heroes – 4ª temporada (EUA, 2009-2010)
Direção: Jim Chory, Roxann Dawson, S.J. Clarkson, Allan Arkush, Adam Kane, Tucker Gates, etc
Roteiro: Tim Kring, Aron Eli Coleite, Joe Pokaski, Rob Fresco, Adam Armus, Kay Foster, Mark Verheiden, etc
Elenco: Jack Coleman, Greg Grunberg, Robert Knepper, Ali Larter, James Kyson, Masi Oka, Hayden Panettiere, Zachary Quinto, Milo Ventimiglia, Deanne Bray, Ray Park, Elizabeth Rohm
19 episódios

Robert Knepper é um dos character actors mais subestimados da televisão americana, e isso não é dizer pouco, visto que as séries são um verdadeiro celeiro desses artistas mal-apreciados. Chegando atrasado para a festa na quarta e última temporada de Heroes, Knepper interpreta o grande vilão da trama, o conflituoso Samuel, com um senso da sua humanidade e da terrível mesquinhez de seus motivos que não passou nem perto de qualquer um dos sempre magnânimos vilões anteriores da série. Ele vende, praticamente sozinho, um personagem e uma premissa que é colada descaradamente das histórias dos X-Men, e compõe a parte central do quarto ano de Heroes em companhia inesperada. Não se trata de uma das novas adições ao elenco, que deram o azar de chegar na trama quando esta já estava praticamente fadada ao cancelamento, e sim de uma velha conhecida: a Claire Bennet de Hayden Panettiere, cujo arco de amadurecimento e jornada de personagem se revela um dos mais bem-desenhados da série, rivalizando talvez só com as idas e vindas do destino de Hiro. A quarta temporada de Heroes é uma salada mista de acertos e erros, mas seus grandes trunfos são Panettiere e Masi Oka, que carregam seus personagens com a dignidade inquebrável de atores que não perdem a mão mesmo quando os roteiristas no comando forçam um pouco a paciência do espectador. Quando eles se envolvem na confusão toda em torno do grupo de artistas de circo que Samuel reúne a sua volta (todos dotados de poderes) e sua missão de trazer todos para uma mesma comunidade, eles adicionam elementos novos e interessantes à premissa, distraindo o espectador da caracterização do discurso de Samuel, feito à imagem e semelhança do de Magneto.

Não deixa de ser bacana, no entanto, que Heroes se mantenha fiel ao seu espírito de mostrar pessoas bem mais ordinárias que aquelas que vestem os uniformes da Marvel como portadoras de poderes inesperados. O Samuel, como escrito pela equipe de Heroes e feito por Robert Knepper, é bastante patético – em busca de um amor perdido que há muito superou o romance que tiveram anos atrás e construiu uma vida diferente; sedento por poder e pela supremacia tanto entre seus iguais quanto entre os humanos; ele é um vilão nada formidável, mas tremendamente disposto a causar confusão. Curiosamente, o mesmo princípio não se aplica à Sylar, que continua em sua sucessão de crises de identidade, amnésias e reconstruções de personagem, enquanto os roteiristas se afundam ainda mais na sua tentativa de monetizar o sucesso do personagem de um jeito todo errado: tentando torná-lo objeto de uma história de redenção e empatia. Zachary Quinto não sabe vender um personagem que se desculpa pela sua natureza, mesmo uma natureza tão terrível, e a série se encaminha para um beco sem saída ao nos lembrar o tempo inteiro das coisas desumanas que Sylar fez e da total falta de arrependimento e compaixão que ele demonstra. A busca de Sylar por redenção é totalmente egoísta, e por isso mesmo não funciona.

Por todos os seus defeitos, no entanto, o quarto ano de Heroes termina do jeito perfeito, com Claire olhando para as câmeras de diversas estações de TV e revelando o segredo das pessoas com habilidades para o mundo. Não só a série fecha assim uma “era”, encerrando a parte da narrativa em que nossos heróis e vilões tiveram que permanecer escondidos de tudo e de todos, como também dá a Claire a importância que fomos ditos que ela teria desde o começo – o criador Tim Kring, que assina o series finale, a faz repetir uma frase marcante da primeira temporada para nos lembrar que essa ainda não é uma história sem nenhum valor humano ou dramático, e de repente todo um novo sentido se abre para a frase “save the cheerleader, save the world”. É em cenas escritas e encenadas desse jeito que mora a esperança de que nem tudo está perdido para Heroes, e que Reborn pode surpreender muita gente.

✰✰✰ (3/5)

7 de set. de 2015

Diário de filmes do mês: Agosto/2015

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por Caio Coletti

Nem todos os filmes merecem (ou pedem) uma análise complexa como a que fazemos com alguns dos lançamentos mais “quentes” ou filmes que descobrimos e nos surpreendem positivamente. Particularmente, eu não me dou a escrever críticas grandes de filmes que considero ruins ou irrelevantes, porque não vejo sentido em remoer demais os erros de uma produção cinematográfica. É levando em consideração a função da crítica e da resenha como uma orientação do público em relação ao que vai ser visto em determinado filme que eu resolvi criar essa coluna, que visa falar brevemente dos filmes que não ganharam review completo no site. Vamos lá:

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As Aventuras de Paddington (Paddington, Inglaterra/França, 2014)
Direção: Paul King
Roteiro: Paul King, Hamish McColl, baseados nos livros de Michael Bond
Elenco: Ben Whishaw, Hugh Bonneville, Sally Hawkins, Nicole Kidman, Peter Capaldi, Julie Walters, Imelda Staunton, Michael Ganbon, Jim Broadbent, Matt Lucas
95 minutos

Só mesmo os britânicos poderiam fazer uma fábula infantil como Paddington. Baseado em um personagem clássico da literatura jovem britânica, o filme lançado no ano passado carrega para o gênero a marca indelével da produção cinematográfica inglesa: nunca subestimar a inteligência do seu espectador, sublinhar aquilo que torna a história única e apostar no trabalho do diretor para equilibrar o mood do filme, principalmente aqui, com o mundo meio-fantasioso-meio-realista que ele retrata. O encarregado da vez é o cineasta Paul King, cuja experiência anterior se limita a séries de TV e à pouco vista comédia Bunny and the Bull, e faz um trabalho exemplar ao colar técnicas de alguns colegas (Wes Anderson  é o primeiro que vem a mente – o take com a casa de bonecas se tornando uma miniatura da casa dos Brown é copiado direto de Steve Zissou - mas tem algo de Woody Allen em Paddington também) para criar um filme que entende a natureza da fantasia e da imaginação infantis ao mesmo tempo que realiza uma crítica velada, e sutil, à forma como os países europeus tratam estrangeiros atualmente.

A trama acompanha o personagem-título (dublado adoravelmente por Ben Whishaw), um urso peruano que, após um terremoto, se despede dos tios (Michael Ganbon e Imelda Staunton) com quem vivia e parte para Londres sozinho, na esperança de encontrar o explorador britânico que aportou nas terras de seus antepassados décadas atrás. O problema é que, dos anos pós-Guerra até o nosso presente, a capital da Inglaterra e seus habitantes mudaram bastante, e ao contrário do que acontecia com as crianças enviadas de outros países assolados pelo conflito bélico para Londres, Paddington não é exatamente recebido de braços abertos por todos. A exceção são os Brown, mais especificamente a sonhadora Mary (Sally Hawkins, maravilhosa como de costume), matriarca da família, que insiste com o marido (Hugh Bonneville) para que eles abriguem Paddington pelo menos até o urso encontrar quem procura. A partir daí a dinâmica combina Mary Poppins, histórias de peixe fora d’água (com bastante – e acertada – comédia física) e uma fábula sobre aceitar e acolher diferenças. Amável, engraçado, inventivo e com uma boa mensagem para passar, Paddington é uma das melhores fábulas infantis dos últimos anos – e o sucesso nas bilheterias mostra que o público quer mais.

✰✰✰✰ (4/5)


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Belas e Perseguidas (Hot Pursuit, EUA, 2015)
Direção: Anne Fletcher
Roteiro: David Feeney, John Quaintance
Elenco: Reese Witherspoon, Sofia Vergara, Matthew Del Negro, Michael Mosley, Jim Gaffigan, Mike Birbiglia
87 minutos

É um pouco triste constatar isso de um filme que poderia significar tanto para a indústria do cinemão hollywoodiano, mas Belas e Perseguidas (que, a partir desse momento, só chamaremos de Hot Pursuit, por razões óbvias) só acerta mesmo naquilo que seria impossível errar. Para começar, a grande virtude do filme, e provavelmente a única razão pela qual a maioria de nós mortais nos sentiríamos tentados a assistí-lo, é a interação entre duas das melhores energias cômicas femininas de Hollywood atualmente: a sumida (das comédias) Reese Witherspoon e a badalada Sofia Vergara. Elas definitivamente não decepcionam, encarnando a dupla improvável da vez e expandindo suas personagens e seus efeitos cômicos um pouquinho além dos rígidos estereótipos que o roteiro impõe. Escrito por uma dupla de roteiristas de sitcom com créditos em New Girl e 2 Broke Girls, o filme consegue ser ao mesmo tempo bastante previsível e terrivelmente desastrado, banalizando para efeitos cômicos, por exemplo, a morte de um policial e o desejo de vingança de uma das personagens. A direção, assinada por Anne Fletcher (A Proposta) também não impressiona, perdendo a mão durante as cenas de adrenalina e sofrendo de aguda falta de inventividade nos momentos cômicos.

Enfim, Hot Pursuit é todo de Witherspoon e Vergara, e é impossível negar o quão bacana é ver a forma como as atrizes interagem e criam entre si uma relação que não seria muito diferente, guardados pequenos detalhes, da relação entre qualquer dupla desajustada de uma comédia de ação policial estrelada por dois homens. A policial certinha de Witherspoon e a esposa de mafioso expansiva de Vergara não funcionam só como personagens que caem bem para as personas de cada uma das atrizes, mas principalmente como uma forma de espelhar uma dinâmica antiga em Hollywood que, até onde este que vos fala sabe, nunca foi aplicada a duas personagens femininas em uma comédia da projeção de Hot Pursuit. Colocando-as no centro da história e constantemente revertendo-as às posições de amigas ou inimigas, o filme permite que elas passem por um arco de transformação que as torna mais próximas. É uma dinâmica boba e que tem muito pouco de realista, mas é funcional e, num filme com o espírito certo, a direção certa e o roteiro certo, poderia ter sido bastante interessante de se ver. Em Hot Pursuit, apesar dos melhores esforços de Reese e Sofia, é simplesmente esquecível.

✰✰✰ (2,5/5)

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A Escolha Perfeita 2 (Pitch Perfect 2, EUA, 2015)
Direção: Elizabeth Banks
Roteiro: Kay Cannon
Elenco: Anna Kendrick, Rebel Wilson, Hailee Steinfeld, Anna Camp, Ester Dean, Alexis Knapp, Hana Mae Lee, Brittany Snow, Skylar Astin, Adam DeVine, Ben Platt
115 minutos

O charme do primeiro A Escolha Perfeita, de 2012, em grande parte tinha a ver com o fato de que, ao mesmo tempo que o filme de Jason Moore sabia que poderia se tornar um hit com a audiência na qual mirou, em grande parte ele era também uma homenagem reverente ao poder do cinema e da música de inspirar e guiar as pessoas (especialmente as jovens) nas suas relações com o mundo, e umas com as outras. A Escolha Perfeita 2, a continuação, chegou três anos depois sob o comando de Elizabeth Banks, que também segue atuando como metade da hilária dupla de “comentaristas” de a capella (ao lado de John Michael Higgins). É um filme que responde à altura quanto a expectativa criada em torno dele, trazendo duas mãos cheias de adições de elenco e participações especialíssimas (de Snoop Dogg ao grupo de acapella Pentatonix, famoso no Youtube), além de um plot transcontinental, que segue aquela velha máxima de Hollywood de que qualquer sequência precisa, essencialmente, ser maior que o original. Do ponto de vista narrativo, no entanto, A Escolha Perfeita 2 pode até ser visto como uma comédia menor, preocupada com temas como amizade, auto-estima e perspectivas para o futuro de personagens que passam por um momento importante de transição (o final da faculdade) – mas não é grata surpresa que foi o filme de 2012.

Um dos grandes problemas é que, ocupado com todos os novos elementos, as subtramas românticas de algumas das personagens, e em dar mais espaço para a personagem de Rebel Wilson (que foi o grande destaque do primeiro filme com o público), A Escolha Perfeita 2 dá menos espaço para a sua ostensiva protagonista, a Beca de Anna Kendrick. Pena, porque Kendrick é uma daquelas atrizes que sempre tem algo na manga para acrescentar ao projeto em que se encontra, e sua construção de personagem está sempre no ponto. À guisa de economia de tempo, nesse segundo filme Beca é praticamente despida de vida pessoal (o relacionamento com o personagem de Skyler Astin não parece ter evoluído em nada desde o primeiro filme – e deveria, visto que este se passa 3 anos depois –, o pai de Beca nem mesmo dá as caras) para que acompanhemos sua primeira aventura no mercado de trabalho, buscando oportunidade como estagiária de um produtor famoso (Keegan-Michael Kay, ótimo). O problema é que mal sentimos o peso dessa decisão importante pela qual a personagem passa, porque ela parece não existir fora do escritório e da casa que divide com as outras Bellas.

A Escolha Perfeita 2 tem muitas virtudes: a estreia de Banks na direção é limpa e com o esperado bom faro para comédia, além da habilidade de comandar um filme razoavelmente grande já na primeira viagem; Wilson continua uma força da natureza no papel de Fat Amy, e mostra de novo que está na hora de Hollywood a fazer uma estrela de verdade; e o retrato da união das Bellas é uma bela forma de refletir os dilemas pelos quais todos passamos nessa fase da vida. Uma pena que, na sede por ser uma continuação grandiosa, o filme tenha perdido a oportunidade de fazer jus ao verdadeiro espírito daquele que o precedeu.

✰✰✰ (3/5)

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O Estranho Mundo de Jack (The Nightmare Before Christmas, EUA, 1993)
Direção: Henry Selick
Roteiro: Tim Burton, Michael McDowell, Caroline Thompson
Elenco: Danny Elfman, Chris Sarandon, Catherine O’Hara, William Hickey, Paul Reubens
76 minutos

O Estranho Mundo de Jack é largamente lembrado como a grande fábula natalina de Tim Burton. É compreensível: se até hoje carrega uma marca forte em Hollywood e mundo afora, no comecinho dos anos 90 a estrela de Burton era ainda mais proeminente, a visão do artista fresca na cabeça do público depois de dois filmes do Batman e dos clássicos instantâneos Edward Mãos-de-Tesoura e Beetlejuice. Vinte e tantos anos depois, no entanto, chegou a hora de admitir, e creditar propriamente: o grande mérito de Jack é ter Henry Selick na direção. Esse estranho americano de 63 anos, mestre da arte largamente moribunda da animação stop-motion, precisa começar a ser reconhecido como um dos cineastas mais inventivos, inteligentes e interessantes da nossa época – e Jack é, argumentadamente, sua obra-prima. Grande parte do seu trabalho é realizar a história de Burton em linguagem visual, e é difícil pensar em algum outro artista que entende melhor as obsessões e cacoetes do diretor de Sweeney Todd do que Selick, que também assinou James e o Pêssego Gigante e Coraline. O Estranho Mundo de Jack respira a atmosfera burtoniana de conto-de-fadas sombrio, influenciada pelos filmes de horror dos anos 30 e 40, mas é na visão de Selick que o filme transcende esse mero riff estético.

Nas mãos dele, a história do monstrengo (dublado lindamente pelo compositor da trilha-sonora e colaborador assíduo de Burton, Danny Elfman) que sai dos domínios de sua Halloween Town para descobrir os encantos da terra do Natal e querer para si a atmosfera divertida e familiar do feriado mais feliz do ano se torna arena para uma série de experimentações visuais que, surpreendentemente, nunca distraem o espectador das outras virtudes do filme – nem de sua envolvente (de certa forma) narrativa. A trilha-sonora de Elfman brilha com peculiaridade melódica, seja na euforia de “What’s This?”, na melancolia da linda “Jack’s Lament” ou na nossa preferida pessoal, a balançada e soul “Oogie Boogie’s Song”. Os tipos monstruosos (e adoráveis) de Burton povoam o filme com uma vitalidade insuspeita, e seu diálogo quase-todo-rimado é encantador. O elemento que costura todas essas qualidades e dá coerência ao mundo cheio de sombras mas estranhamente colorido do filme, no entanto, é a direção de Selick, um trabalho hercúleo e detalhista que precisa ser muito mais louvado do que atualmente é quando falamos da história imortal do rei de Halloween Town.

✰✰✰✰✰ (5/5)

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Amaldiçoado (Horns, EUA/Canadá, 2013)
Direção: Alexandre Aja
Roteiro: Keith Bunin, baseado no livro de Joe Hill
Elenco: Daniel Radcliffe, Max Minghella, Joe Anderson, Juno Temple, Kelli Garner, James Remar, Heather Graham, David Morse
120 minutos

Uma década sendo forçado a carregar uma franquia nas costas (ainda que com ajuda inestimável dos coadjuvantes) fez de Daniel Radcliffe, previsivelmente ou não, um ótimo leading man. Não só sua presença em tela é magnética e perpetuamente interessante para o espectador, como ele entende seus personagens de maneira um pouco além do superficial. Amaldiçoado tira todo o proveito possível dessa qualidade difícil de definir, que fez a carreira de gente como Tom Cruise e, num passado mais distante, Humphrey Bogart (guardadas as devidas proporções, é claro) – é na atuação e no carisma do seu protagonista que o filme se pendura para sair ileso do impressionante malabarismo de gêneros e plot points que compõe seus surpreendentes 120 minutos. A primeira impressão é que a história não rende um filme tão longo, mas o roteiro de Keith Bunin (In Therapy) tira do livro de Joe Hill uma trama que combina comédia absurdista, análise da natureza humana a thriller de mistério fundado nas circunstâncias escusas de um assassinato. De bônus, o filme também é uma metáfora interessante sobre o papel em que a mídia e a sociedade anseia em nos encaixar, limitando invariavelmente nossa complexidade de seres humanos – esse aqui é o “vilão”, esse aqui é o “inocente”. Amaldiçoado brinca com esses estereótipos e no caminho se desvencilha da armadilha de ser ele mesmo julgado por algo mais simples do que verdadeiramente é.

Isso não quer dizer que o filme é impecável, de forma alguma. A direção de Alexandre Aja (Espelhos do Medo) é uma bagunça de ideias estéticas mal-completadas, mas se dá muito bem ao lidar com o humor e as cenas mais sutis do filme, usadas à perfeição para desenrolar o envolvente mistério do assassinato de Merrin (Juno Temple), a namoradinha de infância de Ig (Radcliffe), que se vê acusado do crime quando a moça morre na mesma noite em que termina o namoro com ele. Ao lado de Ig, defendendo a sua inocência, estão os pais (James Remar e Kathleen Quinlan, ótimos), o irmão mais velho (Joe Anderson), e o melhor amigo e advogado (Max Minghella). Quando Ig acorda um dia para descobrir que chifres estão nascendo em sua cabeça – chifres de verdade! –, e as pessoas começam a confessar seus pecados e pedir permissão para cometer atos de variado grau de perversão em sua presença, o mistério começa a se desenrolar com novo ímpeto. Radcliffe entrega facilmente a melhor performance do filme, mas isso se deve também ao quanto os personagens ao seu redor são largamente bidimensionais, mesmo quando estão sob o efeito maligno dos chifres de Ig. Amaldiçoado tem algo a dizer sobre desejos secretos, escolhas difíceis e amores perdidos, e merece ser visto nem que seja pela virtude da performance de Radcliffe.

✰✰✰✰ (3,5/5)

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Harry Brown (Inglaterra, 2009)
Direção: Daniel Barber
Roteiro: Gary Young
Elenco: Michael Caine, Emily Mortimer, Charlie Creed-Miles, David Bradley, Iain Glen, Sean Harris, Ben Drew, Jack O’Connell, Liam Cunningham
103 minutos

Thrillers de vigilantes urbanos são uma das tendências mais surpreendentes do cinema nesse século. Ao mesmo tempo em que se fascinam pelos super-heróis de colantes da Marvel e da DC, os espectadores adoram histórias estreladas por atores com carreiras sólidas como Liam Neeson (na trilogia Busca Implacável), Denzel Washington (O Protetor) e Keanu Reeves (De Volta ao Jogo) no papel de homens que reascendem habilidades obtidas com um treinamento antigo e quase esquecido para proteger ou vingar a si próprios ou aqueles que amam. Harry Brown é a entrada mais britânica nesse subgênero que não é recente (Desejo de Matar, com Charles Bronson, é de 1974), mas que ganhou popularidade inédita nos últimos anos. De forma nada surpreendente, o filme é também a mais observadora e inteligente das obras do tipo, em grande parte porque o diretor Daniel Barber, estreante em longas-metragens, eleva o material dúbio do roteiro de Gary Young (Vingança Entre Assassinos) em um conto de justiça com as próprias mãos dotado de consciência social, que tem um olho aguçado para as situações de vida de todos os personagens (“bandidos” e “mocinhos”) e que se permite questionar a validade da atitude de seu protagonista. Não machuca, é claro, que o filme tenha Michael Caine entregando o que é sua melhor atuação em muitos anos.

Tanto a idade mais avançada de seu protagonista (em relação aos personagens de Neeson, Washington e Reeves, por exemplo) quanto a ênfase maior que o diretor Barber dá aos momentos mais quietos da narrativa auxiliam Caine a pintar um retrato mais convincente do luto, da culpa e da devastadora solidão na qual seu personagem é deixado na primeira metade do filme. O ator, dono de duas estatuetas do Oscar, por Hannah e Suas Irmãs e Regras da Vida, demonstra tremenda empatia com o público, desfilando ainda hoje um carisma e magnetismo em tela que provavelmente ele deve aos tempos de galã dos filmes britânicos (ele estrelou a versão original de Alfie, refeito com Jude Law em 2004) – ambas as qualidades são bem-acompanhadas por uma sensibilidade quieta e uma precisão de tom e linguagem corporal que mostram que Caine é mais do que um movie star envelhecido. Com um protagonista tão crível e uma direção em alguns momentos até poética (embora não economize na violência), Harry Brown aparece como um exemplo interessante de como virtualmente qualquer convenção ou clichê cinematográfico pode se tornar uma história envolvente e interessante quanto bem executada.

✰✰✰✰ (4/5)

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Pixels (EUA/China/Canadá, 2015)
Direção: Chris Columbus
Roteiro: Tim Herlihy, Timothy Dowling
Elenco: Adam Sandler, Kevin James, Michelle Monaghan, Peter Dinklage, Josh Gad, Matt Lintz, Brian Cox, Sean Bean, Jane Krakowski, Dan Aykroyd, Lainie Kazan
106 minutos

Quase ninguém em Pixels parece comprometido de verdade a fazer o filme funcionar – o protagonista Adam Sandler entrega mais uma de suas performances no piloto automático, confiando muito mais no status de estrela do que numa presença genuína e carismática em tela (algo que ele até consegue ter, quando quer); o diretor Chris Columbus, que já se mostrou habilidoso com efeitos especiais e ação misturada com comédia, cria as setpieces aqui com pouco ou nenhum encantamento verdadeiro com o material que tem em mãos; e os roteiristas Tim Herlihy e Timothy Dowling se apóiam demais em estereótipos nerds e estruturas narrativas manjadas de comédias de ação, como se tivessem certeza que a ideia cool da premissa já fosse carregar, por si própria os espectadores para os cinemas mundo afora. No filme, uma gravação contendo uma série de video-games clássicos de arcade é enviada para o espaço em busca de vida inteligente nos anos 80; cortando para os dias atuais, uma raça alienígena intercepta a mensagem e a interpreta como uma declaração de guerra, e versões ameaçadoras e reais de personagens virtuais daquela era começam a ameaçar a Terra. É aí que o presidente (Kevin James) convoca seu amigo de infância (Sandler), um ex-campeão de video-game, para o resgate.

Junto com o personagem de Sandler vêm os nerds feitos por Josh Gad (que ficou famoso como a voz do Olaf de Frozen) e Peter Dinklage (o Tyrion de Game of Thrones). Eles dois são os elementos que melhor funcionam no filme, e os dois atores que parecem de fato estar se esforçando para dar vida a seus personagens – Gad encarna um furacão verbal ambulante, que não superou as glórias como jogador no passado e se tornou um especialista em teorias de conspiração; Dinklage, uma ex-celebridade do ramo e um bully de primeira categoria, que é tirado da prisão por Sandler e James para ajudá-los na missão de salvar o mundo. Ambos encarnam com gosto o ridículo da premissa do filme, enquanto seus companheiros de cena (Sandler principalmente) insistem em tentar trazer para a realidade um conceito que renderia duas horas tremendamente divertidas no cinema se abraçasse sua excentricidade. Há outras maneiras de tornar seus personagens tridimensionais e críveis sem seguir a cartilha que a trama envolvendo Sandler, a general feita por Michelle Monaghan e o filho dela segue. Do jeito que está, Pixels é muito potencial jogado fora, e há algo de um pouco deprimente nisso.

✰✰✰ (2,5/5)

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Barely Lethal (EUA, 2015)
Direção: Kyle Newman
Roteiro: John D’Arco
Elenco: Hailee Steinfeld, Samuel L. Jackson, Jessica Alba, Sophie Turner, Dove Cameron, Rachael Harris, Thomas Mann, Rob Huebel, Toby Sebastian
96 minutos

Aos 18 anos e atuando desde os 10, Hailee Steinfeld é uma das apostas mais certas para estrela da futura geração de Hollywood. Essa americana natural de Los Angeles levou uma indicação ao Oscar quando ainda tinha 15, pelo trabalho excepcional em Bravura Indômita, dos Irmãos Coen. Brilhou em filmes menores desde então e apareceu mais velha, com a mira clara no mainstream, em A Escolha Perfeita 2 (que revisamos nesse mesmo post). Aproveitou a oportunidade de soltar a voz no filme e ainda lançou carreira de cantora, com o (ótimo) single "Love Myself". Com tudo isso na bagagem, a comédia de ação adolescente Barely Lethal até empalideceu, mas coloca Hailee no centro de um filme comercial talvez pela primeira vez na carreira, além de dar a ela a oportunidade de contracenar com atores experientes como Samuel L. Jackson, Jessica Alba e Rachael Harris. Pena que, para além das ótimas performances e algumas boas piadas nas margens da trama principal, o filme dirigido por Kyle Newman (Fanboys) é completamente esquecível – para começar, o diretor não faz ideia de como conduzir cenas de ação, drenando-as de qualquer ritmo, com a honrosa exceção do embate físico entre Steinfeld e Sophie Turner (a Sansa de Game of Thrones) perto do final, que consegue empolgar principalmente pela ótima fisicalidade das duas atrizes.

Steinfeld interpreta Megan Walsh, garota que foi criada dentro de uma organização secreta dedicada a adotar meninas órfãs e treiná-las para se tornarem assassinas implacáveis desde a infância. Sentindo as urgências da adolescência e tendo na bagagem apenas as impressões do high school que tirou dos filmes do gênero, Megan finge a própria morte em uma missão especialmente complicada e se faz passar por estudante de intercâmbio para ter a oportunidade de viver a experiência colegial. Barely Lethal ensaia ser uma sátira no estilo “it’s not like the movies”, mas não se compromete completamente a essa missão – acerta na construção da personagem principal e na forma como retrata a sua aproximação de figuras inicialmente estereotípicas, como o líder-de-banda-pelo-qual-todas-as-garotas-babam (Toby Sebastian, mais um egresso de GoT), a garota-revoltada (Dove Cameron, de Liv & Maddie) e alguns outros. Em suma, o elenco reunido pelo diretor Newman entrega muito mais ao filme do que talvez ele mereça, e eleva-o a um bom entretenimento de fim-de-semana. Steinfeld e companhia merecem melhor, mas dá pra se divertir.

✰✰✰ (3/5)

2 de set. de 2015

6 anos d’O Anagrama: 6 álbuns marcantes dos últimos 6 anos

POST

Essa semana O Anagrama completa 6 aninhos! Incrível pensar em como esse tempo todo passou rápido, e o quanto o site mudou de 2009 pra cá, mas mais incrível ainda é pensar em quanta coisa, quanta cultura pop, passou por aqui e pelo mundo nesse período. Por isso, para comemorar em grande estilo os 6 anos do site, resolvemos olhar para fora de nós mesmos e montamos uma série de listas selecionando alguns dos “itens” mais marcantes da cultura pop dos últimos anos. Serão dois posts de TV, dois de cinema e dois de música, para pagar tributo ao caráter multi-assunto d’O Anagrama, nos próximos seis dias, e embora as nossas seleções sejam muito pessoais, como sempre estamos mais que abertos para discutir quem faltou e quem sobrou nas listas com vocês, maravilhosos leitores!

Esse é o último post da série. Leia todos!

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Rated R
Lançamento:
20 de Novembro de 2009
Gravadora: Def Jam
Produção: L.A. Reid, Rihanna, Jay-Z, Carl Sturken, Evan Rogers, Chase & Status, The-Dream, Chuck Harmony, Brian Kennedy, Ne-Yo, StarGate, Tricky Stewart, will.i.am, The Y’s
Duração: 51m49s

por Caio Coletti

Falar do momento de virada que os meses antes, durante e depois do lançamento do Rated R representaram para a carreira e a vida de Rihanna é um clichê cansado. Depois do infame caso envolvendo o então namorado da cantora (Chris Brown) e do sucesso estrondoso que o Good Girl Gone Bad representou para ela, a deixando no topo do mundo pop por algum tempo, a cantora de Barbados mostrou autenticidade ao lançar um disco sombrio, sutilmente experimental e interminavelmente interessante como o Rated R. Fugindo do R&B tradicional que ditou o disco anterior, o hoje clássico Rated R transita por um território bem mais difuso e por misturas de gêneros bem mais complexas, o que se tornaria uma constante na carreira de Rihanna, embora ela ainda não tenha superado o seu disco de 2009 em termos de qualidade e impacto. Ouvir o Rated R hoje é testemunhar músicas lançadas seis anos atrás que previram muitas das tendências que começamos a ouvir de verdade no pop e no hip hop de 2014 pra cá. O flerte com o eletrônico (que iria se aprofundar nos subsequentes álbuns da moça) aparece nas primeiras faixas, especialmente na produção do duo StarGate em "Wait Your Turn", lotada de sintetizadores climáticos e influência do dubstep na batida e nas distorções.

Outras experimentações aparecem em faixas da segunda metade do álbum, seja no rock fragmentado e desafiador de “Rockstar 101” (veja aí embaixo), com a participação do guitarrista Slash, ou no ritmo latino de "Te Amo", com seu timbre bem particular de sintetizador e sua percussão marcante. A voz de Rihanna empresta personalidade e corpo a essas canções, e muito embora o alcance vocal e expressividade do seu timbre fosse ainda passar por muitas evoluções nos anos e álbuns seguintes da carreira, aqui a cantora já tomava as músicas para si de maneira impressionante, colocando inflexões vocais aprendidas em sua época de estrela do R&B em contextos diferentes e interessantes. Isso fica especialmente em evidência nas baladas do disco, que misturam produção explosiva com estrutura convencional, como "Fire Bomb" e "Cold Case Love" (co-composta pelo Justin Timberlake!).

Nesse sentido, o Rated R é o álbum que temos a agradecer pelo amadurecimento de Rihanna como força musical além dos hits teleguiados que marcaram o começo da carreira americana da cantora. Mostrou que ela era um elemento a ser considero dentro do pop, não só pela força nas paradas mas pela forma como mistura ritmos e climas diferentes para expressar uma verdade muito à flor da pele – essa tendência de conversar muito diretamente com o ouvinte, que de certa forma a faz fugir das letras essencialmente genéricas do pop convencional, faz de Rihanna uma figura única dentro do gênero, e reforçou sua relevância para ele. Seja nas elaborações visuais ou na mistura particular de influências que ela traz para cada álbum (mantendo ao mesmo tempo uma identidade muito reconhecível), a cantora barbadiana começou a se revelar para nós seis anos atrás – e o resultado foi um álbum inesquecível.

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Lançamento:
19 de Janeiro de 2011
Gravadora: XL
Produção: Jim Abbiss, Adele, Paul Epworth, Rick Rubin, Fraser T Smith, Ryan Tedder, Dan Wilson
Duração: 48m12s

por Caio Coletti

No atual mercado musical, um disco que chega à marca dos 4 milhões de unidades vendidas (o Prism de Katy Perry, por exemplo) é considerado bem-sucedido sem muito pestanejar. Dada essa perspectiva, é impressionante mesmo conceber que, não tanto tempo atrás, Adele tenha vendido 11 milhões de cópias do seu 21, segundo e até agora último álbum da carreira. A cantora britânica, que já havia conquistado fiéis seguidores dentro do nicho do neosoul, explodiu de vez com o sucesso da retumbante “Rolling in the Deep” (aí embaixo). A verdade é que o segredo do 21 é conversar tanto com a música tradicional americana quanto com o estilo Motown de gospel e soul que Adele tinha apresentado no disco de estreia, o 19. Conta a lenda que a influência americana no disco veio da amizade que a cantora fez com o motorista do seu ônibus de turnê enquanto fazia shows pelos EUA – natural da cidade do country, Nashville, o moço apresentou à cantora os encantos de compositores tradicionais e novos do gênero. Apaixonada por Garth Brooks, Wanda Jackson, Alison Krauss, Lady Antebellum, Dolly Parton e Rascal Flatts, Adele aproveitou o heartbreak de um relacionamento acabado para compor um álbum que estabelecia um diálogo complexo e interessante entre as formações musicais da sua autora ao mesmo tempo em que não alienava o público, apostando na identificação com as histórias relatadas nas letras e na tradição (à época quase morta) do breakup album.

O próprio hit do álbum, que citamos ali em cima, estabelece um ritmo e uma articulação melódica que não seria estranha à voz de Dolly Parton, por exemplo, ao mesmo tempo em que confia nos corais e sopros para encorpar a canção. Em "Don't You Remember", então, a influência aparece gritante – trata-se de uma balada country por excelência, levada por violão e pela voz sempre espetacular da cantora, dona de um dos tons mais distintamente marcantes ao ouvido, mesmo não sendo exótico como o de Duffy, por exemplo. Há algo de mais sutil na forma como a voz de Adele encontra o caminho para a memória do ouvinte, algo de insinuante e forçoso ao mesmo tempo, como se a sensibilidade intensa e as inflexões de interpretação importassem mais do que o timbre ou a potência em si. A potência, inclusive, ela deixa guardada para exibir em "Set Fire to the Rain", toda orquestração e drama, com Adele atuando no extremo oposto do trabalho que faz em "Lovesong", por exemplo.

O resultado da costura de influências, todas ligadas pela cola invencível da voz de Adele, é que quando chegamos à já lendária "Someone Like You" (talvez a balada de piano mais doída e brutalmente realista do nosso século), já estamos plenos musicalmente. Parte da equação de sucesso do 21, é claro, é o tema universal, que une todos os ouvintes e provocou uma sensação de pertencimento aos fãs que foram se reunindo ao redor do disco; outra parte é o fato que não existia, dentro do mainstream, algo exatamente como Adele – a febre do neosoul começada por Amy Winehouse já estava esfriando quando ela chegou; mas talvez o pedaço mais importante da fórmula que levou o 21 a vender mais do que qualquer disco nos últimos anos seja o fato que a cantora compôs, aqui, uma das obras mais completas e interessantes desse tempo todo. Já fazem 4 anos, mas qualquer tempo que Adele demore para retornar aos nossos ouvidos, pode ter certeza: vai ter valido a espera.

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Born This Way
Lançamento:
23 de Maio
Gravadora: Streamline/Kon Live/Interscope
Produção: DJ White Shadow, DJ Snake, Fernando Garibay, Lady Gaga, Robert John “Mutt” Lange, Jeppe Laursen, RedOne, Clinton Sparks
Duração: 61m08s

por Caio Coletti

Ame-o ou odeie-o por isso, é impossível negar que o universo pop não viu um álbum mais ambicioso do que o Born This Way nesses seis anos que cobrimos aqui n’O Anagrama. Num artigo lá de 2013 (veja aqui), a MTV destacou o quanto Lady Gaga faz para a música pop só por considerá-la “importante, uma forma de arte que, além de inspirar o ouvinte a se mexer, também tem o poder de transformar vidas e elevar os oprimidos, ou algo assim”. Apesar de ter vindo só dois anos depois de Born This Way, é impossível não ver essa declaração como conectada ao trabalho que Gaga realizou aqui, tanto temática quanto musicalmente, ao virar o pop de cabeça para baixo justamente para colocá-lo em seu devido patamar. Fugindo do genérico e brincando com tantos gêneros, referências e nuances que fica quase impossível de contar, Gaga criou uma obra-prima falha, que pula do precipício do pop com uma curiosidade quase adolescente de descobrir o que tem lá embaixo, e atira um monte de ideias boas no ouvinte enquanto despenca em queda livre – parece uma metáfora furada, mas a verdade é que Born This Way é justamente assim: pega o que absolutamente não parece uma boa ideia no papel, e faz funcionar. Não dá nem pra dizer que o disco é um binóculo para o estado da música em sua época, porque Born This Way não pertence a 2011 com tanta literalidade, arranjando maneiras mais sutis de refletir o zeitgeist contemporâneo e trazer de volta ao pop o espírito artístico e inspirador de colagem de referências para produzir novos significados. Com Gaga, pop é sobre surpreender, trazer elementos para as canções que a princípio parecem pouco adequados, e mostrar finalmente que, se ninguém nunca fizer algo inadequado, nós nunca sairemos do lugar. Em muitos sentidos, ela não é só uma cantora pop – ela é uma provocadora cultural.

E a provocação dessa ítalo-americana de 29 anos (25 na época do disco) nunca esteve melhor do que em Born This Way. A começar pela provocação musical: ela mistura uma banda mariachi com as batidas do tecno em "Americano", coloca um riff de guitarra pesado para abrir a sedada "Electric Chapel", ressuscita o solo de saxofone das ruínas dos anos 80 em "The Edge of Glory". Born This Way nunca se cansa de encontrar timbres e referências novas para fazer, seja na breve introdução em ópera de "Government Hooker" ou no verso falado em alemão que permeia "Scheibe" – o equilíbrio musical aqui é delicado, balanceando uma produção que rime com essas referências culturais todas e os elementos novos que Gaga encaixa nas reentrâncias do tema principal de cada canção. Assim, “Edge of Glory” é uma gloriosa power ballad oitentista ao mesmo tempo em que traz sintetizadores modernos e o punch da batida constante que marca todo o álbum. Algo semelhante acontece com todas as faixas que citamos aí em cima.

Temática e liricamente, é claro, Born This Way também encontra várias oportunidades de desafiar e provocar o ouvinte e a recepção geral que a sociedade terá dele. As referências religiosas aparecem no single "Judas" e na maravilhosa "Bloody Mary", que reforçam a consciência de Gaga da importância de se manter autêntica, com todas as suas falhas e vícios, para o público e para a missão artística à qual ela se candidata. A faixa-título (aí embaixo) encara de frente a questão do preconceito sexual e racial, sendo muito criticada na época por ser “óbvia demais”, mas fez um bem social tremendo ao dar nomes aos bois e entregar uma mensagem de auto-valorização que, não por coincidência, virou regra depois do sucesso estrondoso do single. Sem contar que a produção, mascarando a melodia de R&B sobre uma tonelada de sintetizadores tremendamente bem colocados, ajuda a torná-la um hino das pistas de dança que nunca envelhece. Em suma, Born This Way é importante por ter devolvido relevância de verdade, e a vontade de ser mais, ao pop – e digam o que quiserem, mas Gaga continua nessa missão até hoje.

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Ceremonials
Lançamento: 28 de Outubro de 2011
Gravadora: Island
Produção: Paul Epworth, James Ford, Charli Hugall, Ben Roulston, Isabella Summers, Eg White
Duração: 55m58s

por Caio Coletti

“Nos fazendo acreditar que hajam palavras para nomear coisas inomináveis e melodias para descrever essas palavras é como um álbum pode nos fazer sentir menos sozinhos no mundo”, escreve a jornalista Emma Forrest no encarte de Ceremonials, álbum que o Florence + The Machine lançou em 2011, o primeiro após a explosão (e não só no meio indie) que foi o Lungs, disco de estreia da banda. Há algo de mágico na obra que a cantora britânica, sua banda e o produtor Paul Epworth criaram a partir da vontade de fazer música que refletisse uma necessidade de fuga do mundo terreno, a angústia por um grito quando tudo o que se ouve são sussurros abafados, a vontade de transcender e entender o que existe entre nós e o mundo superior. Ceremonials tira o seu título de um verso da faixa de abertura, "Only If For a Night" – na melodia, Florence canta: “my own secret ceremonials/ before the service began/ in the graveyard/ doing handstands”, evocando um ritual pagão de adoração não a uma divindade misteriosa, mas a uma religião que tem muito mais a ver com a tragédia e o sentimento humano do que com qualquer coisa que esteja acima de nós. Ou melhor, que acredita que o que quer que esteja acima de nós, está conectado aos nossos corpos e espíritos de forma irremediável. Pode parecer ridículo a alguns falar assim de um pedaço de música, mas serve para mostrar que Ceremonials não é um álbum cujos temas podem ser explicados às minúcias, em uma linguagem prática. É sobre tudo, e tudo o que não conseguimos contar. É, como bem disse Emma Forrest, inominável.

Musicalmente é um pouco mais fácil entender o processo criativo que levou Ceremonials à existência. Primeiramente, a transição entre esse e o primeiro álbum da banda não é de forma alguma suave: tanto a faixa de abertura, da qual já falamos, quando o semi-hit “Shake it Out” (veja abaixo) trocam as batidas retumbantes, guitarras e harpas da orquestração do Lungs por teclados, corais e percussões ainda bem marcantes, mas perceptivelmente desaceleradas. "Never Let Me Go" radicaliza essa fórmula ao entregar alguns dos momentos mais sutilmente tocantes da discografia de Florence, confiando numa queda de tom operada com delicadeza pelo piano para nos levar à apoteose serena (?!) da canção. O resultado é a peça mais linda do disco, embora virtualmente todas as faixas tenham algum direito de reclamar esse posto: "Lover to Lover" acelera os teclados e emula o soul da época da Motown para combinar com uma letra muito mais à flor da pele e agressiva do que a maioria do álbum; "Seven Devils" é uma delirante e incômoda canção, de seu modo muito peculiar, realçando a qualidade insinuante da voz de Florence, que começa em monotom e cresce perto do final; e "Heartlines" carrega na percussão com influências africanas para entregar uma mensagem inspiradora que jamais esbarra no piegas, além de vir com uma melodia previsivelmente linda.

Com as performances vocais mais impressionantes da cantora, que possui um timbre marcante e uma potência inacreditável (algo que o terceiro álbum, How Big How Blue How Beautiful, só explora limitadamente), Ceremonials continua relevante quatro anos depois de seu lançamento não por ter sido uma influência decisiva no mainstream, mas por permanecer uma obra única e essencial no terreno da música como expressão. Não há outro disco que coloque em notas musicais o que o Ceremonials colocou, ou ao menos não com essa qualidade etérea e esse verniz espetacular que ele botou sobre as suas reflexões. Em grande parte, o disco é uma obra que não quer falar sobre algo, mas reproduzir uma sensação (Florence, inclusive, disse que o compôs e idealizou procurando replicar o momento de sua infância em que estava embaixo d’água e “sentiu que era capaz de respirar”). É grandioso e produzido com uma combinação absurda de delicadeza e poderio sônico. É alto, intenso, indecifrável e épico. Em muitos sentidos, é exatamente como a vida.

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Electra Heart
Lançamento:
27 de Abril de 2012
Gravadora: 679/Atlantic
Produção: Benny Blanco, DJ Chuckie, Cirkut, Diplo, Dr. Luke, Liam Howe, Devrim Karaoglu, Greg Kurstin, Fabian Lenssen, Ryan McMahon, Rick Nowels, Ryan Rabin, Dean Reid, StarGate
Duração: 46m51s

por Ilson Junior

Recentemente a Billboard listou alguns dos artistas mais subestimados do cenário pop atual e Marina & the Diamonds não poderia perder seu lugar nessa lista. Se comparada às suas colegas de trabalho britânicas, como Ellie Goulding e Charli XCX, que obtiveram hits mundiais e alto reconhecimento, Marina ainda não conquistou isso mesmo com 3 álbuns lançados e mais de meia década de carreira. Seu ultimo disco, o FROOT, é uma louvável obra pop só pelo fato de ter sido completamente composto por ela, sozinha, além da mãozinha da artista na produção. Além disso, Marina sabe como produzir um visual interessante para agregar valor à suas musicas. O que querer mais? A questão a respeito de seu sucesso ainda não ter acontecido pode ser porque a cantora traça seu caminho de forma um tanto solitária, senão egocêntrica; não possui uma única parceria vocal sequer em qualquer um de seus álbuns, e nem com artistas mais famosos – talvez pela sua incrível habilidade de escrever sobre si mesma, e se fazer história, mesmo que em um pseudônimo.

O segundo álbum da carreira da cantora, Electra Heart só não foi lançado sem o nome da artista por exigências de profissionais externos: o alter-ego de Marina não era ela, mas era uma e eram várias ao mesmo tempo. Um disco recheado de músicas chicletes, superproduções e um tanto distante da homogeneidade poderia facilmente ser mencionado como destinado ao mercado americano, como afronta e ao mesmo tempo homenagem ao pop superficial que se mantem por lá; a dona do American Dream resolve tirar os planos do papel. A galesa construiu o álbum inspirando-se em quatro arquétipos femininos (housewife, beautyqueen, homeweacker, idle teen) e escreveu sobre o que ela mesma não era. Para um álbum cheio de luxo, dor, egocentrismo e tristeza, Marina desenvolveu uma videografia específica, separada em 11 partes, desde o corte radical do cabelo que inicia a era e posteriormente, pintado de loiro, se torna fator importante no registro do tempo, até o encerramento, já com o cabelo escuro como de início, quando vemos o coração da bochecha que a acompanhou durante todo o percurso ser apagado na canção “Electra Heart”.

Com produções pop que fogem muito da proposta alternativa de seu primeiro álbum, The Family Jewels, a história de Electra é capaz de instigar inúmeras teorias, em todo seu mistério, somado ao encanto presente em cada arquétipo e em cada musica, desde “Bubblegum Bitch” trabalhada nos ácidos e agressivos sintetizadores, ao mistério sussurrado de “Teen Idle”. Por outro lado, “Starring Role” pode ser mencionada como uma das obras-primas da artista, dona de uma composição rica e dolorosa que facilmente afeta qualquer um que escuta, e entornada de uma produção que não ousou competir com a letra, mas, embora simples, é ímpar. “Primadonna”, a música comercialmente mais forte no disco – que posteriormente competiria com “How To Be a Heartbreaker” com um destino declarado ao mercado dos EUA – foi responsável por levar a artista à muitos novos ouvidos, é uma das faixas mais viciantes do conjunto, e ganhou um dos vídeos mais trabalhados da série. Cada faixa é única embora formem um conjunto rico em diversos aspectos.

Marina entregou aos fãs um álbum dono de canções capazes de abraçá-los em cada momento diferente da vida e provar que todos nós temos um lado sombrio que é belo dentro de nós. Assim, conseguiu nos entregar um dos discos mais ricos da nossa década, de uma artista ousada que não deixa de usar todas as suas inúmeras habilidades.

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Ultraviolence
Lançamento:
16 de Junho de 2014
Gravadora: Interscope/Polydor
Produção: Dan Auerbach, Lana Del Rey, Paul Epworth, Lee Foster, Daniel Heath, Greg Kurstin, Rick Nowels, Blake Stranathan
Duração: 51m24s

por Gabryel Previtale

O terceiro álbum da cantora Lana Del Rey é uma excelente sumarização de sua essência como artista. Nos discos anteriores, apesar de prevalecer seu toque autoral, havia muitas influências modernas e de outros estilos musicais como hip-hop, além do uso de sintetizadores. Neste em especial, Lana se manteve sóbria nas suas composições de um jeito muito coeso e eficaz. As faixas colocadas neste fazem sentido juntas e emanam uma nostalgia sessentista aveludada que só a cantora consegue transmitir nos dias atuais. A melhor faixa, na minha opinião, é a que dá nome ao álbum, "Ultraviolence". Ela evoca sentimentos de dor e amor mesclados, com o belo e contido uso da voz de Lana, sem abusar de muitas ginásticas vocais, mas colocando sua assinatura na pronuncia das palavras.

Com certeza este foi um dos melhores álbuns lançados nos últimos anos, pra quem gosta e também pra quem não é fã do estilo da cantora, visto que mesmo os incrédulos concordaram que este é um trabalho que deve ser admirado e levado a sério, principalmente ao se observar as influências musicais e sonoras dispostas neste conjunto de canções trabalhadas pela artista.