por Caio Coletti
(Twitter – Tumblr)
O caráter bissexto da carreira de Dido não é novidade para ninguém. O álbum de estreia da moça (e um dos álbuns mais vendidos do mundo desde então), o No Angel, veio em 1999. Foram quatro anos de espera para o seu sucessor, o Life For Rent (2003), cinco para a terceira gravação de estúdio, o Safe Trip Home (2008), e mais cinco para o lançamento desse Girl Who Got Away no último dia 04 de Março. O lado bom desses intervalos entre os álbuns é que cada um dos títulos da discografia da moça é dotade significado “definitivo”: é como se estivessemos acompanhando o amadurecimento de um ser humano que, no passar dos últimos 14 anos, produziu obras que retratavam fielmente não só o seu momento, mas a jornada toda (inclusive o fechamento do ciclo) para chegar até aquele ponto. E, na forma de fazer música cristalina de Dido, isso é um prazer de ouvir.
É fácil reconhecer que essa é a mesma Dido de 14 anos atrás: “No Freedom”, faixa de abertura e primeiro single, parece sumarizar todas as canções que a moça já escreveu sobre o amor e a vontade de ser livre – coloque aí nesse meio “White Flag”, “Don’t Believe in Love”, “Stoned”, e uma dezena de outras. A premissa simples do refrão (“no love without freedom/no freedom without love”) pode ser lida como um dilema ou uma concordância: é ela, Dido, que não pode se prender ao amor se ele não lhe garantir liberdade, e ao mesmo tempo não se sente livre sozinha? Ou é da natureza do amor que ela está falando, afirmando que aquele que priva o sujeito de sua liberdade não é verdadeiramente amor? O violão acústico que é a força motriz da canção na produção simples de Dido e Rick Nowels remete a era Life for Rent. Dido ainda trafega pelos mesmos caminhos e é obcecada pelas mesmas coisas. O que mudou é sua visão sobre elas.
Isso fica claro em “Girl Who Got Away”, uma faixa para entrar ao lado de “No Angel” e “Life for Rent” (não por acaso, todas também faixas-títulos, de álbuns anteriores da cantora) como um dos hinos de liberação reflexiva certeira de Dido. Por cima de uma belíssima melodia de verso e refrão, a cantora passeia com sua voz angelical sobre o desejo de ser “a garota que escapou”, e talvez isso seja menos uma vontade e mais uma reflexão do momento atual de sua vida. Cinco anos após a morte do pai, dez desde a luta contra as drogas do irmão, com um marido e um filho recém-nascido, Dido é “a amante que amou de verdade”, “a dançarina que dançou até a última canção”. E com a alquimia digital, as distorções, ecos e sintetizadores da produção assinada por ela e pelo irmão Rollo Armstrong, ela quer nos dizer que o mesmo tipo de coisa nos espera lá fora se quisermos encontrá-la.
Já escolhida como segundo single, “End of Night” é a primeira colaboração de Dido com Greg Kurstin (“Try”, da P!nk), e também a canção com o maior potencial pop do álbum. A produção multiplica a voz da cantora em coros e entrecoros no meio dos sintetizadores bem arranjados, especialmente no refrão final, em que um registro agudo de Dido acoa por entre a voz cheia do refrão contagiante da faixa. Uma espécie de complemento a sua antecessora, “Blackbird”, essa “End of Night” mostra a britânica se livrando dos fantasmas que “só lhe traziam dor de volta” quando ela os amava, convidando-os a observá-la “ir embora e celebrar o final da noite”. “Let Us Move On”, apesar do clima opressivo trazido pelo produtor Jeff Bhasker (“We Are Young”, do Fun.), é uma canção otimista. É sobre encarar as coisas como são e deixar elas machucarem se for preciso, o quanto for preciso, porque no final das contas “isso é pouco, e vai passar”. Dido canta na bridge “let all that is lost be forgotten”, com a voz cheia que imprime autoridade e ao mesmo tempo evidencia o quanto a cantora tem o timbre perfeito para uma produção pop.
Dido parece achar que outra das coisas que ela “escapou” foi o estigma de celebridade. “Sitting on The Roof of The World” é o conto de uma garota que chegou ao topo, mas queria saber “como ir embora”. É doce quando ela canta num dos versos “truth be told, I was saved by the look of a good man”. A melodia que remete ao folk casa bem com o violão equalizado na medida certa de agudo para não soar estridente, e os corais adicionados no final pela produção em parecia com Rick Nowels são adoráveis.
Mas nada de bom acontece sem alguns machucados pelo caminho, e Dido não quer negar que eles sejam profundos. “Happy New Year” ecoa, naturalmente, ao Safe Trip Home ao mostrar a cantora ainda combalida pela morte do pai. É uma tristeza mais a flor da pele dessa vez, pela própria natureza do álbum em que está inserida, embora se recuse, é claro, a ser agressiva. O baixo repetitivo, que depois vira delicadamente um violão acústico e, no final, uma guitarra distorcida deixada no volume certo, acompanham Dido enquanto ela passeia por um cenário quase palpável. Frio, escuro e recheado de ausência. “And above all things I miss you every day”, ela canta. É uma melancolia sólida e dura, mas inegavelmente bela.
Os sons ambientes e as orquestrações de Brian Eno trabalham, em “Day Before We Went to War”, com uma Dido delicada com a própria voz, em muitos momentos acompanhada apenas do dedilhar de um violão, nesse último, poético e oportuno lamento do luto. “O dia antes de irmos para a guerra” retratado pela cantora é aquele último momento de descanso, de contemplação e lamento por alguém que não está mais na sua vida, antes de o movimento do mundo nos empurrar para que retornemos a tudo o que temos e precisamos fazer. A canção fecha o ciclo do Girl Who Got Away: o álbum retrata uma Dido que, aos 40 anos, está pronta para maus amores e dificuldades, porque “escapou” da própria realização da fugacidade de nossa estadia nesse mundo. E, para alguém que tanto buscou a liberdade, essa é amarra final a ser estourada. Isso até daqui a uns anos, é claro.
***** (5/5)
Girl Who Got Away
Lançamento: 04 de Março de 2013
Produção: Dido, Jeff Bhasker, Jon Brion, Greg Kurstin, Pete Miser, Rick Nowels, Plain Pat, P*Nut, Rollo, Sister Bliss
Duração: 43m12s
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