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Review: Me Chame Pelo Seu Nome

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Review: Liga da Justiça

É verdade: o novo filme da DC seria melhor se não tivesse uma Warner (e um Joss Whedon) no caminho.

24 de dez. de 2017

Review: Star Wars finalmente consegue unir o político e o pessoal em Os Últimos Jedi

jedi

por Caio Coletti

Quando uma história é contada no decorrer de 40 anos de cinema, é óbvio que diferenças sociais serão sentidas na forma como ela é recebida pelo público, e as expectativas desse público, agora multi-geracional, se tornarão cada vez mais discrepantes e impossíveis de manejar. Para a minha geração, que cresceu nos anos 1990 e 2000 com os prelúdios de George Lucas e, só depois, foi conhecer os filmes que os precederam, Star Wars sempre foi sobre política. Em muitos sentidos, ela sempre foi mesmo – vendo os filmes originais, dos anos 1970 e 1980, hoje em dia, fica óbvio que a ambição de Lucas era criar um épico que homenageava aventuras clássicas da ficção, mas que no meio do caminho ele topou com uma narrativa poderosa sobre autoritarismo e as formas de se rebelar contra ele.

Carregar Star Wars para o cinemão moderno e transformá-la em uma saga de nove longas metragens significava então, inevitavelmente, adicionar complexidade a essa reflexão política. O problema da trilogia dos anos 2000 de Lucas é que, na busca por essa complexidade, ele esqueceu de encontrar arcos de personagens emocionais que fizessem o espectador se engajar na trama – e o problema de O Despertar da Força e Rogue One, por suas vezes, era uma confiança muito grande nesse envolvimento emocional, enquanto detalhes e implicações políticas eram deixadas de lado. Em suma, para sobreviver aos próximos 40 anos, Star Wars precisava, tal e qual a Força de sua mitologia, encontrar o equilíbrio entre o lado sombrio (o de reflexão social) e o lado benévolo (o investimento emotivo) de sua história – e Os Últimos Jedi é o filme perfeito para isso.

Na trama, acompanhamos a continuação da luta contra a Primeira Ordem, mas o roteirista e diretor Rian Johnson consegue distingui-la, finalmente, da luta contra o “vilão” da trilogia clássica, o Império. Johnson empresta um toque de decadência e mesquinhez ao mal da Primeira Ordem que não existia nas imponentes forças imperiais, criando um mal muito mais banal e crível, em pleno século XXI, do que aquele clássico terror maniqueísta do cinemão americano. O cineasta se separa dos filmes clássicos também ao emprestar um pouco do cinismo de Lucas quanto aos ensinamentos Jedi e sua validade como instituição – na pele de um Luke (Mark Hamill) iludido, que se recusa a passar sabedoria para uma aprendiz (a Rey de Daisy Ridley) por achar que os Jedi precisam morrer com ele, o novo Star Wars tem a audácia de contestar os métodos, regulamentos e atitudes de seus supostos mocinhos.

A diferença da contestação que vemos aqui para aquela que vimos em A Ameaça Fantasma, O Ataque dos Clones ou A Vingança dos Sith é que Johnson a firma no desenvolvimento dos personagens, e não a despeito deles. Enquanto Rey tenta convencer Luke a ajudar a Resistência liderada por sua irmã, Leia, ela também se comunica com Kylo Ren (Adam Driver), o ostentoso vilão da trilogia, um homem torturado e em crise de identidade, cujas reservas amplas de fúria e ressentimento indicam muito mais uma alma perdida do que um mal absoluto. Quando Ren quebra sua máscara no começo de Os Últimos Jedi, Johnson sinaliza que sua redenção, se um dia vier, terá que vir de cara limpa, e não com uma revelação de fragilidade por baixo de um símbolo maligno, como aconteceu com Darth Vader. O filme representa uma Star Wars com história mais direta, despida de recursos mitológicos ou simbólicos.

Johnson é um grande contador de histórias que encontra rimas visuais e referências brilhantes para construir seu filme. Ao lado do diretor de fotografia Steve Yedlin, seu parceiro de longa data, o cineasta é incansável ao buscar significados em cores, formas e movimentos – seja na aproximação lenta da câmera em direção ao “buraco negro” onde Rey conhece o poder do Lado Escuro da Força ou na abundância de vermelho nas cenas de ação do final do filme, imagens nunca significaram tanto para Star Wars quanto em Os Últimos Jedi. Inspirado por um filme de complexidades e emoções à flor da pele, John Williams cria sua trilha mais genial em muitos anos, evocando emoções complicadas e trazendo à tona sons inesperados para colorir uma história já ricamente desenhada por Johnson.

Por fim, há também o poder que Os Últimos Jedi dispensa às suas personagens femininas, que por décadas passaram os filmes de Star Wars amargando papéis coadjuvantes em relação aos homens – se não fosse a marca própria de humor e personalidade de Carrie Fisher, quão revolucionária seria a Princesa Leia, como escrita no roteiro, no primeiro Star Wars? Aqui, as decisões de liderança que elas precisam tomar são monumentais, e as consequências delas ainda maiores – elas são forças que afetam a jornada dos homens ao redor delas, mas também personagens vívidas e autônomas, com arcos próprios e edificantes. Em certa cena, Leia e Holdo (Laura Dern) tentam dizer, ao mesmo tempo, a frase clássica da série: “Que a Força esteja com você”. Parando na metade, Leia ri da forma como apenas Carrie Fisher era capaz de rir, e faz concessão à amiga: “Eu já disse isso o bastante”. Temos que discordar, Leia – não ouvimos sua voz o bastante desde o começo de Star Wars, lá em 1977. Nem perto disso.

✰✰✰✰✰ (5/5)

jedi

Star Wars: Os Últimos Jedi (Star Wars: The Last Jedi, EUA, 2017)
Direção e roteiro: Rian Johnson
Elenco: Mark Hamill, Carrie Fisher, Adam Driver, Daisy Ridley, John Boyega, Oscar Isaac, Andy Serkis, Lupita Nyong’o, Domhnall Gleeson, Anthony Daniels, Gwendoline Christie, Kelly Marie Tran, Laura Dern, Benicio Del Toro, Frank Oz, Billie Lourd
152 minutos

10 de dez. de 2017

Diário de filmes do mês: Novembro/2017

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por Caio Coletti

Nem todos os filmes merecem (ou pedem) uma análise complexa como a que fazemos com alguns dos lançamentos mais “quentes” ou filmes que descobrimos e nos surpreendem positivamente. É levando em consideração a função da crítica e da resenha como uma orientação do público em relação ao que vai ser visto em determinado filme que eu resolvi criar essa coluna, que visa falar brevemente dos filmes que não ganharam review completo no site. Vamos lá:

atomic

Atômica (Atomic Blonde, Alemanha/Suécia/EUA, 2017)
Direção: David Leitch
Roteiro: Kurt Johnstad, baseado nos quadrinhos de Anthony Johnson & Sam Hart
Elenco: Charlize Theron, James McAvoy, Eddie Marsan, John Goodman, Toby Jones, James Faulkner, Sofia Boutella, Bill Skarsgard, Til Schweiger
115 minutos

Atômica começa com Charlize Theron mergulhada em uma banheira de gelo, nua. A câmera do diretor David Leitch, no entanto, não filma a cena iluminada por neon de forma sensual, mas passa seu tempo focando nos enormes hematomas nas costas de Theron, que interpreta a espiã Lorraine Broughton, enviada à Berlim dias antes da queda do muro, em plena Guerra Fria, para recuperar uma lista roubada de agentes secretos e seus nomes reais. Os próximos 115 minutos são passados explicando porque Lorraine acabou indo parar nessa banheira de gelo, com esses hematomas – e Theron faz valer o outlook nada sensual do diretor Leitch ao construir uma anti heroína misteriosa, brutal, imparável, perenemente surpreendente. Com a desonrosa exceção da cena de sexo desnecessária entre Lorraine e Delphine (Sofia Boutella), inserida no roteiro puramente para permitir a fetichização de um relacionamento lésbico, Atômica entrega uma protagonista feminina complexa e naturalmente icônica, que sempre joga no mesmo nível (ou acima) dos homens que a cercam. O oxigênio do filme é a performance física e emocional de Theron, que rouba a cena até da ambientação oitentista espetacularmente construída pelo diretor Leitch.

A direção de arte decadente, cheia de paredes descascadas, coberturas ímpias de arranha-céus, e muito neon (designer de produção: David Scheunemann); a música propulsiva escolhida pelo supervisor John Houlihan (há uma cena de ação ao som de “Major Tom”, de Peter Schilling, que é uma combinação de arrepiar) e, em suas intervenções originais, composta por Tyler Bates; o figurino de Cindy Evans e o trabalho da equipe de cabelo e maquiagem, apresentando visuais icônicos da época sem serem óbvios ou “certinhos” demais, sofisticados demais para a situação. Atômica é um tremendo feito de produção. que revela Leitch não só como um grande diretor de ação (o que já sabíamos, graças a John Wick), mas um cineasta detalhista e elegante. Resta aguardar o refinamento desse talento nos próximos longas metragens de seu currículo.

✰✰✰✰ (4/5)

gerald

Jogo Perigoso (Gerald’s Game, EUA, 2017)
Direção: Mike Flanagan
Roteiro: Mike Flanagan, Jeff Howard, baseados no livro de Stephen King
Elenco: Carla Gugino, Bruce Greenwood, Chiara Aurelia, Carel Struycken, Henry Thomas, Kate Siegel
103 minutos

A junção do diretor Mike Flanagan com o escritor Stephen King faz muito sentido – em seus poucos filmes até agora, Flanagan demonstrou um refinamento sem precedentes para brincar com as convenções do gênero de horror, e King sempre casou essa mesma habilidade com um olhar cirúrgico sobre a condição humana e alguns dos temas mais importantes da nossa sociedade. A perspectiva de ver Flanagan brincando com uma das histórias em que o princípio de King de que “o verdadeiro monstro é o ser humano” mais se aplica era excitante, e o resultado – esse Jogo Perigoso, lançado pela Netflix – corresponde às expectativas. É um terror de sobrevivência obviamente tenso, mas surpreendentemente denso, examinando profundamente o passado de sua protagonista e como ele afetou decisões que ela tomou no seu presente. A trama, como todo mundo sabe, compreende uma mulher, Jessie (Carla Gugino) que é deixada algemada à cama quando seu marido, Gerald (Bruce Greenwood), tem um ataque cardíaco fulminante no meio da “hora H”. O filme é notavelmente mais do que isso, no entanto, usando a engenhosa premissa para entender relações masculino-feminino e traumas de abuso sexual com sensibilidade aguda.

Gugino, que sempre foi uma grande atriz mal-aproveitada em pequenos papéis, regozija ao ganhar uma personagem tão complexa, que é o centro das atenções por 103 tensos minutos. Intensamente ponderada em seu legue de emoções intensas, Gugino segura o olhar do espectador com o que parece muito pouco esforço, encontrando as melhores formas de expressar o trauma que guia a personagem, e as formas como ela é maior do que ele. Um deliciosamente teatral Bruce Greenwood dá apoio à protagonista em algumas das cenas mais cáusticas e envolventes do filme, com o diretor de fotografia Michael Fimognari trabalhando habilmente as luzes e sombras do quarto onde a maioria da ação se localiza. Stephen King teve algumas boas adaptações em 2017, mas Jogo Perigoso é talvez a que melhor entende aquilo que o tornou um escritor de tanto apelo popular quanto aclamação crítica – a força de seus personagens, e as histórias em que o medo sobrenatural é também trauma e opressão, terrores muito reais dos quais tentamos sempre nos desvencilhar.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

kingsman

Kingsman: O Círculo Dourado (Kingsman: The Golden Circle, Inglaterra/EUA, 2017)
Direção: Matthew Vaughn
Roteiro: Jane Goldman, Matthew Vaughn, baseados nos quadrinhos de Mark Millar & Dave Gibbons
Elenco: Taron Egerton, Mark Strong, Hanna Alström, Julianne Moore, Colin Firth, Channing Tatum, Halle Berry, Elton John, Jeff Bridges, Pedro Pascal, Edward Holcroft, Michael Ganbon, Bruce Greenwood, Emily Watson
141 minutos

Eu não amei o primeiro Kingsman como a maioria das pessoas que eu conheço (e uma boa parte da crítica) amou. Serviço Secreto, de 2014, me atingiu como uma parábola arrogante sobre como “as maneiras fazem o homem”, que reforçava um estereótipo masculino menos agressivamente ofensivo, mas ainda essencialmente tóxico. Sua sátira dos épicos de super espiões, por outro lado, era consideravelmente menos esperta e mais óbvia do que achava ser, e não havia medida de criatividade visual e adrenalina bem dirigida que apagasse tudo isso. No fim das contas, Serviço Secreto era um blockbuster pouco imaginativo que fingia não o ser, o que faz com que a continuação, O Círculo Dourado, represente uma melhora para a franquia – ao menos aqui as gracinhas conceituais do diretor Matthew Vaughn fazem parte da piada, já que o segundo Kingsman abraça seu status como arrasa quarteirões sem ambições metalinguísticas e deixa atores mastigadores de cenário e encantos pura e rasamente estéticos brilharem no lugar de pseudo-ambições de mensagem social. Ele ainda não é um grande filme, mas ao menos não parece tentar ser.

Dessa vez, Eggsy (Taron Egerton) precisa lidar com a traficante de drogas Poppy (Julianne Moore), que tem um plano para obrigar o presidente dos EUA a legalizar os narcóticos (da maconha à heroína, naturalmente). Para isso, os espiões britânicos cruzam o Oceano Atlântico e se juntam a suas contrapartes americanas, que incluem agentes interpretados por Pedro Pascal, Channing Tatum, Halle Berry e Jeff Bridges. Encarnando personagens coloridos que os permitem exageros, esses atores, com destaque especial para uma Moore claramente inspirada pelo Lex Luthor clássico de Gene Hackman, abrilhantam a tela quando O CÍrculo Dourado derrapa nas ambições narrativas para além de seus paradigmas óbvios de pastiche de gênero. O retorno relativamente decepcionante na bilheteria é apropriado: Kingsman não tinha muito mais a dar além disso.

✰✰✰ (3/5)

assassin

O Assassino: O Primeiro Alvo (American Assassin, EUA/Hong Kong, 2017)
Direção: Michael Cuesta
Roteiro: Stephen Schiff, Michael Finch, Edward Zwick, Marshall Herskowitz, baseados no livro de Vince Flynn
Elenco: Dylan O’Brien, Sanaa Lathan, Michael Keaton, Scott Adkins, Taylor Kitsch, Shiva Negar
112 minutos

Virtualmente todas as pessoas envolvidas com O Assassino mereciam um filme melhor – a começar por Dylan O’Brien, o jovem astro de Teen Wolf que tenta lançar uma carreira cinematográfica em cima da força do personagem Mitch Rapp, consagrado nos livros de Vince Flynn. Ele encontra todos os recôncavos mais sombrios do personagem e os expressa com a destreza com a qual encarnou todos os seus papéis até hoje, o que faz ainda mais penoso que O Assassino seja um filme de ritmo tão torturado, mensagem tão conservadora, falhas tão previsíveis em quesitos chave para um bom filme de ação em pleno 2017. O diretor Michael Cuesta, que assinou o bom O Mensageiro, injeta o máximo de propulsão às cenas de adrenalina, nunca deixando seu herói se tornar um super-agente invencível nos moldes de John McClane ou James Bond – na câmera de Cuesta, o protagonista Rapp é um jovem hábil e flexível, cuja ira instintiva é a maior motivação. Entendemos sua falta de cautela, mas o filme não pinta suas ações, que beiram o vigilantismo, como negativas ou moralmente ambíguas.

O que acontece é justamente o contrário, aliás – aqueles que levantam essas preocupações são vistos como obstáculos no caminho da justiça, e essa é a falha fatal de O Assassino como peça de ficção ligada ao nosso momento social. Na pele do “mentor” de Rapp, Michael Keaton é consistentemente mais envolvente do que deveria ser, assim como um Taylor Kitsch que há muito tempo merece papéis mais complexos para interpretar – aqui, eles sabem que são os holofotes brilhantes de exagero cuidadoso em um filme sombrio e contido, e se divertem muito nesses papéis. Fracasso de bilheteria, essa primeira aventura de Mitch Rapp provavelmente não vai gerar continuações – é difícil comemorar, no entanto, quando isso significa algo ruim para a carreira de gente que poderia abrilhantar Hollywood.

✰✰✰ (2,5/5)

23 de nov. de 2017

Review: Liga da Justiça erra quando foge do grande filme que poderia ser

justice

por Caio Coletti

Quando Batman vs Superman foi lançado, no ano passado, logo no título do meu review escrevi que o filme “só errava quando não estava totalmente comprometido com sua proposta”. Havia um cinismo na visão dos roteiristas Chris Terrio e David S. Goyer, e na iconoclastia de Zack Snyder, que me encantava – o retrato desses heróis como deuses caídos à Terra, incapazes de proteger o mundo sem destruí-lo, em muitos sentidos perpetuamente aprendendo a mexer em uma “caixinha de brinquedos” perigosa na forma de seus superpoderes, me fazia mais conectado do que nunca a essas figuras em tela. Eles eram míticos no sentido mais puro da palavra, maiores que a vida, mas ao mesmo tempo tão absolutamente familiares a ela.

Por todo o seu alarde de mudança, o que Mulher-Maravilha fez foi pegar esse conceito inovador e muito habilidosamente aplicá-lo de forma mais equilibrada e mais sutil, erguendo um novo mito em torno de Diana Prince e seus ideais mais positivos, embora não menos ambíguos, de heroísmo. Se tivesse aprendido as lições desses dois antecessores, Liga da Justiça poderia ser um grande filme – ao direcionar a visão única de Snyder e Terrio, que retornariam para dirigir e escrever o filme, respectivamente, para uma narrativa que crescia em uma direção mais esperançosa, uma “saída do inferno” que se completaria no fim do filme, os maiores heróis da mitologia dos quadrinhos poderiam fazer jus a esse título também no cinema.

Como costuma acontecer nessas histórias, no entanto, havia uma Warner Bros no caminho do Liga da Justiça que poderia ser sutil o bastante para consertar os erros de Batman vs Superman. A gigante corporativa aproveitou-se da saída de Zack Snyder da produção durante o processo de refilmagens, devido à problemas familiares, para chamar Joss Whedon (Os Vingadores), um diretor e roteirista eficiente quando tem espaço para realizar sua visão, a fim de tornar o filme “mais leve”, nos moldes do seu análogo da Marvel. O problema é que Liga da Justiça, da forma como foi lançado, com suas rasteiras 2 horas de duração, não é o filme de nenhum desses dois cineastas – de fato, é aquele raro produto cinematográfico que, preso entre múltiplas identidades, não consegue alcançar nenhuma.

Em meio à continuada e inteligente reflexão do roteirista Terrio sobre heroísmo e a oposição entre cinismo e esperança que existe no coração dele, as piadas quase “improvisadas” de Whedon não só são inclusões por vezes constrangedoras como são entregues com compreensível inabilidade por atores que passam o restante do tempo construindo personagens conflitantes com elas. Isso é verdade especialmente do Batman de Ben Affleck, no que poderia muito bem ser a pior atuação de sua carreira (se ela não incluísse Contato de Risco, é claro). O Bruce Wayne estoico e calejado que o ator construiu no filme anterior some embaixo de um arco forçado do qual Affleck apenas muito eventualmente consegue extrair qualquer sentido ou substância.

Ezra Miller, Gal Gadot e Jason Momoa encontram formas mais equilibradas de construir seus heróis, em especial os dois rapazes, destaques óbvios do filme, já que à ela é relegado, no pior estilo Whedon, o papel da mulher responsável que reclama das irreverências dos seus colegas de equipe (uma versão piorada da Viúva Negra fetichizada de Whedon em ambos os filmes dos Vingadores). Poucos meses depois de Patty Jenkins lançar o espetacular Mulher-Maravilha, é desencorajador ver um filme que dá tantos passos atrás na representação de mulheres fortes, autônomas e guerreiras, mas que não cabem em estereótipos, nos blockbusters – e essa culpa deve ser dividida entre Snyder e Whedon, diga-se de passagem.

Também é desencorajador perceber que algumas das virtudes técnicas óbvias de Batman vs Superman foram abandonadas após a recepção fraca do filme. A troca de Larry Fong por Fabian Wagner na fotografia, por exemplo, significa que os efeitos especiais não são explorados por sua plasticidade, e sim de uma maneira mais “pedestre”. O estilo de Wagner funciona bem para a tela pequena e para a elaboração realista das batalhas de Game of Thrones, mas não se encaixa no mundo de deuses superpoderosos da DC. O mesmo vale para a troca de Junkie XL & Hans Zimmer por Danny Elfman na trilha sonora – como um todo, Liga da Justiça parece fugir do desafio de ser um filme de gênero orgulhoso como seu predecessor, porque acha que isso significa ódio crítico e do público.

No entanto, pelas frestas dessa fuga sufocante de si mesmo, Liga da Justiça mostra flashes de brilhantismo. Seu arco narrativo fundamental, que viaja do exaspero à esperança, pode parecer apressado e atribulado, mas ainda está lá, e a reminiscência da mensagem original do Superman e de seus companheiros de equipe, nos quadrinhos, é maior do que em qualquer outro filme da DC até aqui. Terrio encontra na junção da humanidade desses super-heróis uma forma de conduzir o mundo sombrio criado por ele no filme anterior a um tipo ambíguo, complicado e belo de luz. O filme desenha a história de cada um dos membros da equipe como definida por perdas metafóricas e literais, e busca entender como essas perdas os propelem adiante no combate a um mal tão mesquinho como o de Lobo da Estepe.

Liga da Justiça ainda é um bom filme, apesar de si mesmo. É triste, no entanto, imaginar o grande filme de heróis que está escondido dentro dele, e que provavelmente nunca veremos sair.

✰✰✰✰ (4/5)

justice

Liga da Justiça (Justice League, EUA/Inglaterra/Canadá, 2017)
Direção: Zack Snyder
Roteiro: Chris Terrio, Joss Whedon
Elenco: Ben Affleck, Henry Cavill, Amy Adams, Gal Gadot, Ezra Miller, Jason Momoa, Ray Fisher, Jeremy Irons, Diane Lane, Connie Nielsen, J.K. Simmons, Ciarán Hinds, Amber Heard, Joe Morton
120 minutos

19 de nov. de 2017

Review: Sim, Thor: Ragnarok é hilário – mas também pode (e deve) ser levado a sério

ragna

por Caio Coletti

Eis algo que você provavelmente não leu em outras críticas de Thor: Ragnarok – o terceiro filme do deus do trovão da Marvel é uma reflexão refrescante, ambivalente e esperta sobre as armadilhas da liderança, que adiciona um imperativo moral ao mundo cada vez mais complicado e difuso da editora no cinema. Eric Pearson (Agent Carter), Craig Kyle (do setor de animação da Marvel) e Christopher Yost (Star Wars Rebels) criam um roteiro que não introduz personagens a esmo, ao invés disso medindo-os para ajudar essa reflexão quase política, que informa e enriquece o restante do universo Marvel.

Eis algo que você provavelmente leu em todas as outras críticas de Thor: Ragnarok – Taika Waititi, o diretor neozelandês conhecido pela pérola independente O Que Fazemos nas Sombras, pega tudo isso e transforma em uma aventura hilariante, recheada de improvisos, que se beneficia imensamente das personalidades de seus intérpretes. O resultado da equação é um filme ágil, mas que se mostra tão essencial na mitologia de líderes falhos e heróis emocionalmente vulneráveis da Marvel quanto delicioso de se assistir, de uma forma que poucos longas de super-heróis, envolvidos com suas tramas atribuladas e (vamos ser sinceros) enfadonhas, conseguem ser hoje em dia.

Na trama, reencontramos Thor (Chris Hemsworth) pela primeira vez desde Vingadores: Era de Ultron, trabalhando para salvar Asgard do que ele vê como ameaças potencialmente apocalípticas (como o demônio Surtur, contra quem ele batalha na primeira cena do filme). Ele desmascara o irmão Loki (Tom Hiddleston), que posava como Odin (Anthony Hopkins) no trono de Asgard, e precisa lidar com a chegada da tremendamente poderosa vilã Hela (Cate Blanchett), a deusa da morte nórdica, que quer o comando da terra dos deuses para si. No meio do caminho para derrotá-la, ele vai parar em Sakaar, um planeta de gladiadores em que é obrigado a enfrentar Hulk (Mark Ruffalo), também sumido desde Era de Ultron.

Ao desvendar o passado que conecta Odin e Hela, Ragnarok desvenda mais um tipo de hipocrisia daqueles que se encontram em posições de poder – de certa forma, é o polo oposto de Doutor Estranho, que destacava a importância de um pragmatismo absoluto por parte dos nossos líderes. Ragnarok é sobre a importância de encarar com honestidade a sua própria história, seja ela a história de uma nação ou de um indivíduo em particular – o roteiro de Pearson, Kyle e Yost é cheio de personagens tentando fazer as pazes com o seu próprio passado, e buscando criar um novo paradigma de comportamento frente a ele.

Na direção de atores, Waititi encontra formas de fazer cada membro de seu elenco “se soltar” em frente à câmera, para o bem ou para o mal. Hemsworth encontra um charme um pouco fácil demais na pele de Thor, que como personagem é, e sempre foi, essencialmente um valentão pomposo com boas intenções; já Jeff Goldblum, como um Grão-Mestre que seria impensável na pele de qualquer outro ator, é um prazer de se assistir, todos os seus tiques se conectando diretamente com o público; Tessa Thompson também entrega uma atuação feroz, divertida e complexa como a Valquíria, a coadjuvante feminina mais bem escrita da Marvel até hoje; Hiddleston e Blanchett, talvez os atores mais prestigiados do elenco sem contar Hopkins, parecem se divertir em papéis de elaborações simples e cujas relações com o público são diretas.

Ragnarok é espetacularmente criativo no âmbito visual, mas não da mesma forma explosiva de Guardiões da Galáxia Vol. 2, ainda a obra-prima de efeitos especiais e direção de arte da Marvel em 2017. Os ângulos escusos e cores vivas de Sakaar se contrastam com as superfícies polidas e grandiosas de Asgard, sutilmente afastada da terra idílica construída por Kenneth Branagh e Alan Taylor nos filmes anteriores do deus do trovão. Se a narrativa parece esparsa, é por causa dos improvisos e da leveza da direção de Waititi, que transforma um roteiro denso em um espetáculo divertido e perenemente disposto a surpreender.

Tomem nota, fãs e produtores – é assim que se junta o melhor de dois mundos no cinema.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

thor

Thor: Ragnarok (EUA, 2017)
Direção: Taika Waititi
Roteiro: Eric Pearson, Craig Kyle, Christopher Yost
Elenco: Chris Hemsworth, Tom Hiddleston, Cate Blanchett, Idris Elba, Jeff Goldblum, Tessa Thompson, Karl Urban, Mark Ruffalo, Anthony Hopkins, Benedict Cumberbatch, Taika Waititi, Rachel House, Clancy Brown, Zachary Levi
130 minutos

5 de nov. de 2017

Diário de filmes do mês: Outubro/2017

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por Caio Coletti

Nem todos os filmes merecem (ou pedem) uma análise complexa como a que fazemos com alguns dos lançamentos mais “quentes” ou filmes que descobrimos e nos surpreendem positivamente. É levando em consideração a função da crítica e da resenha como uma orientação do público em relação ao que vai ser visto em determinado filme que eu resolvi criar essa coluna, que visa falar brevemente dos filmes que não ganharam review completo no site. Vamos lá:

1 gaga

Gaga: Five Foot Two (EUA, 2017)
Direção: Chris Moukarbel
100 minutos

É um pouco estúpido reclamar a artificialidade de porções de Gaga: Five Foot Two, documentário lançado pela Netflix que dá acesso à vida particular e artística de Lady Gaga nos meses antecedendo sua apresentação no SuperBowl 2017. Tanto a arte pop de Gaga quanto o cinema documental tem um histórico de artifício como forma de revelar a realidade. É fácil sentir quando a artista está performando e quando está falando ou agindo sem o filtro de sua vida pública – e, ao mesmo tempo, as duas coisas de confundem o tempo todo. A questão com Gaga, e com o cinema documental, nunca é: isso é mesmo de fato, concretamente, real? E sim: o quê de real eu consigo extrair disso? O filme de Chris Moukarbel persegue essa questão o tempo todo, destrinchando pedaços particulares e públicos da vida de Gaga para tentar entender sua fascinação pela própria arte, e a fascinação do mundo pelos altos e baixos dela. O problema aqui é que Moukarbel não é habilidoso ou tem recursos o bastante para de fato extrair as respostas, ou sondar concretamente as profundidades das questões. Five Foot Two é um documentário polido e direto, quase avesso à criação de uma narrativa a partir do que observa, o que o faz funcionar muito mais como um pedaço de propaganda do que um pedaço de arte.

É uma pena, porque Gaga é claramente uma mulher fascinante – não por qualquer misticismo ou mistério em sua pessoa, mas pela combinação de sua visão única e sua experiência e comportamento comuns. Sentada no estacionamento de seu estúdio, rebatendo acusações de plágio e falando das inconsistências da fama e do mundo pop, ela é uma; cozinhando em casa ou recebendo flores indesejadas do ex-noivo, é outra. Ainda assim, nessa conjunção de personas diferentes, ela nunca parece estar mentindo, como muitos acusam – ao menos não em uma dimensão maior do que as mentiras que todos contamos ao performar partes diferentes de nossa vida. Em sua desafiadora complexidade, ela merecia um documentário mais ponderado e inteligente.

✰✰✰✰ (3,5/5)

2 spidey

Homem-Aranha: De Volta ao Lar (Spider-Man: Homecoming, EUA, 2017)
Direção: Jon Watts
Roteiro: Jonathan Goldstein, John Francis Daley, Jon Watts, Christopher Ford, Chris McKenna, Erik Sommers
Elenco: Tom Holland, Michael Keaton, Robert Downey Jr., Marisa Tomei, Jon Favreau, Gwyneth Paltrow, Zendaya, Donald Glover, Jacob Batalon, Laura Harrier, Tony Revolori
133 minutos

A questão “o mundo precisa de mais uma versão do Homem-Aranha?” passou pela cabeça de todo mundo quando a Marvel e a Sony anunciaram que iam fazer parceria para finalmente incluir o Aracnídeo no universo maior da editora. De Volta ao Lar responde à pergunta com um sonoro “vocês ainda não viram o Homem-Aranha de verdade”. Com um roteiro escrito à doze mãos e um diretor relativamente inexperiente no comando, é estonteante que De Volta ao Lar funcione tão bem – e não é por sua modéstia na trama charmosa envolvendo um Peter Parker (Tom Holland) em idade colegial lidando com problemas adolescentes, ou por sua correlação com filmes teen de John Hughes, muito menos por incluir o herói em um universo ao qual ele sempre deveria ter pertencido. De Volta ao Lar funciona porque entende artificialidade óbvia tanto do gênero do filme de colegial quanto do filme de super-herói, assim como entende o motivo pelo qual essas obras ressoam tanto com o espectador. Através de uma fantasia óbvia (e não estou falando do traje de herói de Peter), De Volta ao Lar encontra os pontos de conexão com a realidade sem enfatizá-los demais, e cria com isso um filme satisfatório em todas as dimensões.

Holland transborda carisma na pele de Peter, que após a aparição rápida em Capitão América: Guerra Civil volta para seu Queens natal com a Tia May (Marisa Tomei), percebendo logo que o bairro é assombrado por uma misteriosa figura alada que comercializa armas poderosas, o Abutre (Michael Keaton). Para o desgosto de seu mentor, Tony Stark (Robert Downey Jr), Peter decide “provar seu valor” caçando o vilão. Ameaçador e imbuído de senso de propósito, Keaton cria um vilão convincente que pouco tem a fazer em um filme concentrado na jornada de amadurecimento de seu herói. De Volta ao Lar é uma comédia adolescente esperta, com personagens distintos cercando o herói em sua vida escolar, e uma primeira aventura solo que acha o cantinho único no qual mais um filme de mais um Homem-Aranha poderia funcionar em pleno 2017.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

3 souls

Nossas Noites (Our Souls at Night, EUA, 2017)
Direção: Ritesh Batra
Roteiro: Kent Haruf, Scott Neustadter, Michael H. Weber
Elenco: Robert Redford, Jane Fonda, Judy Greer, Matthias Schoenaerts, Iain Armitage, Bruce Dern, Phyllis Somerville
103 minutos

Todo mundo ama ver dois grandes atores em cena juntos – mas como Al Pacino e Robert De Niro provaram em As Duas Faces da Lei (2008), há pouco que dois grandes atores possam fazer quando o roteiro e o restante do filme é um verdadeiro desastre. Felizmente, não é o caso de Nossas Noites, romance da Netflix que reuniu Jane Fonda e Robert Redford quase 40 anos depois de sua última parceria, O Cavaleiro Elétrico (mais famoso é Descalços no Parque, que os dois fizeram em 1968). Graças ao roteiro sensível assinado por Kent Haruf, Scott Neustadter e Michael H. Weber, e à direção econômica de Ritesh Batra, aos dois astros é dado amplo espaço para dar vida a seus personagens. Fonda é Addie, uma viúva que se aproxima do vizinho Louis (Redford), cuja esposa também faleceu. Os dois engatam um romance a partir da simples premissa de não quererem passar a noite sozinhos, mas problemas de família e fantasmas do passado dos dois começam a reaparecer conforme eles se conhecem melhor. A forma como os dois atores dançam ao redor das profundidades do texto só pode ser descrita como magistral – nunca exagerando nos monólogos ou nas reações, Fonda e Redford dão uma aula de sutileza e realismo.

A química entre os dois também solta faíscas, tanto emocionais quanto sexuais. Batra não foge dessas últimas, tratando com inteligência e afeto os momentos mais físicos do relacionamento, confiando no carisma infalível de Fonda para carregar as cenas, abordadas com mais cautela por Redford. Nossas Noites funciona só porque nos investimos o bastante no desenrolar do romance entre Addie e Louis, e o tempo de tela econômico dado por Batra para elementos fora da relação dos dois (ainda que essenciais para a trama) funciona no sentido de nos manter focados na interação entre eles. O pequeno Iain Armitage e os coadjuvantes Judy Greer e Matthias Shoenaerts estão aqui para dar apoio à história dos dois protagonistas, que tanto diz sobre afeto, arrependimento e comunicação em qualquer idade.

✰✰✰✰ (4/5)

4 marsha

The Death and Life of Marsha P. Johnson (EUA, 2017)
Direção: David France
Roteiro: David France, Mark Blane
105 minutos

Ao contrário do que o título pode indicar, o documentário The Death and Life of Marsha P. Johnson, da Netflix, não é sobre a pioneira do movimento LGBT que atirou um dos primeiros tijolos na revolta de Stonewall. A reabertura da investigação de sua morte talvez seja o ponto de partida, mas o filme de David France resolve, acertadamente, honrar a memória dessa figura quase mítica ao abordar questões mais profundas levantadas por sua história – da marginalização social das pessoas LGBT (especialmente pessoas trans) ao senso de história e responsabilidade deturpado, até preconceituoso, que existe dentro da própria comunidade. Faz isso também através da história de Sylvia Rivera, melhor amiga de Marsha, ao mostrar os anos seguintes à morte da personagem-título, quando Sylvia se viu sem-teto e esquecida pela comunidade que ajudou a organizar. É nas sessões dedicadas à Rivera que o filme encontra seus minutos mais dolorosos, simbólicos e fundamentais – é na história dela que a falta de impacto duradouro e indignação coletiva com a morte de Marsha parece mais revoltante, porque poderia ter mudado tanta coisa, para tenta gente. O filme de France é cortante porque mostra que, se Marsha foi a mártir da luta LGBT, porque tantas como ela existem até hoje?

Parte da história é Victoria Cruz, uma mulher transgênero que trabalha com uma organização de justica social e resolve reabrir o caso de Marsha. O filme faz crônica não só desse, mas de outros casos de violência contra pessoas trans que são virtualmente ignorados fora da própria comunidade e de organizações como aquela na qual Victoria trabalha. Com tanta obstinação quanto sua protagonista, o diretor France e seu parceiro de roteiro, Mark Blane, destrincham as profundezas desse descaso institucional e social que vem de todos os lados, massacrando e silenciando centenas de milhares de indivíduos, até hoje. É um trabalho fundamental, ainda que frustrante e enfurecido, de cinema e de discurso social.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

5 baby

Em Ritmo de Fuga (Baby Driver, Inglaterra/EUA, 2017)
Direção e roteiro: Edgar Wright
Elenco: Ansel Elgort, Jon Bernthal, Jon Hamm, Eiza González, Micah Howard, Lily James, Kevin Spacey, CJ Jones, Sky Ferreira, Jamie Foxx, Flea
112 minutos

Sim, Em Ritmo de Fuga tem cenas de ação excepcionais e algumas sacadas visuais espetaculares do diretor Edgar Wright, que cria muitas de suas cenas mais “banais” ao ritmo da trilha-sonora. É uma inovação animadora e fascinante, mas não faz um filme – e o problema de Em Ritmo de Fuga é que ele quase não é um filme. Enquanto na direção Wright encontra-se com facilidade, o seu roteiro tropeça na própria falta de ambição, aderindo sem hesitar à clichês cansados sem nenhum sendo de afeição ou ironia para torná-los mais confortáveis. O filme tampouco cria personagens de verdade, transformando em cifras tanto o protagonista interpretado sem particular carisma por Ansel Elgort quanto os coadjuvantes vividos por atores de primeira linha como Jon Hamm e Jamie Foxx. Curiosamente, quem se sai melhor é Eiza González, que entrega um trabalho vívido que absolutamente não morava no roteiro de Wright – ela é um ponto brilhante que de fato podemos compreender em um mar de personagens-caricatura sem motivações claras, incluindo o maior crime de todos: uma “donzela em perigo” mais antiquada e mal desenvolvida que aquelas que vemos em franquias como Transformers.

A trama segue Baby (Elgort), um motorista muito habilidoso que é contratado por um grupo de criminosos para servir de motorista de fuga após assaltos. No time, personalidades explosivas como Buddy (Hamm), Darling (González) e Bats (Foxx) fazem com que cada trabalho seja mais perigoso do que o anterior – e Baby procura uma forma de sair dessa para fugir ao lado da jovem garçonete Debora (James). Graças às cenas de ação bem dirigidas, pouco mais de metade da metragem de Em Ritmo de Fuga consegue fazer o espectador esquecer a trama inana e os personagens pouco convincentes – mas definitivamente não é o bastante para aclamar, como a maioria da crítica fez, como um dos melhores filmes do ano.

✰✰✰ (3/5)

6 big sick

Doentes de Amor (The Big Sick, EUA, 2017)
Direção: Michael Showalter
Roteiro: Emily V. Gordon, Kumail Nanjiani
Elenco: Kumail Nanjiani, Zoe Kazan, Holly Hunter, Holly Hunter, Ray Romano, Anupam Kher, Zenobia Shroff
120 minutos

Holly Hunter está espetacular em Doentes de Amor – mas eis aqui a verdade: a vencedora do Oscar por O Piano nunca está menos que espetacular em nenhum papel que a mereça. Neurótica, mas estonteantemente crível na pele da mãe preocupada da protagonista Emily (Zoe Kazan), Hunter acende a tela a cada vez que aparece nela, mas a diferença dessa grande performance para algumas outras de sua carreira é que, aqui, tudo ao seu redor funciona tão bem quanto ela. A comédia do diretor Michael Showalter (Hello My Name is Doris, outra pérola recente do gênero) é conduzida com tanta inteligência e discrição que deixa cada elemento de sua feliz combinação de talentos brilhar em seu máximo. A história escrita por Emily V. Gordon e pelo próprio astro do filme, Kumail Nanjiani, reconstrói a história real dos dois, que se conheceram em um show de comédia e passaram por um relacionamento único após Gordon enfrentar um problema de saúde sério e Nanjiani peitar as tradições de sua própria família paquistanesa. Doentes de Amor discute barreiras culturais com inteligência tremenda e tiradas realmente geniais, e aproveita para falar de perdão e dos rumos curiosos da vida com a mesma habilidade.

Por estar tão confortável interpretando a si mesmo, Nanjiani entrega a performance mais subestimada do elenco, encontrando formas engraçadas e espertas de expressar os conflitos do Kumail personagem, sem dúvida resgatando a forma como ele mesmo lidou com eles no passado. Acontece que ao redor dele não temos só Hunter, que rouba cada cena em que aparece, mas uma tipicamente sensível e especialmente desafiadora de estereótipos Zoe Kazan, e um hilariante, perfeitamente inepto Ray Romano. Nesse quarteto principal o filme firma as fundações de sua exploração profunda, ainda que sempre engraçada, dos conceitos de tradição e família, com todas as suas rachaduras e vulnerabilidades.

✰✰✰✰✰ (5/5)

raw

Grave (Raw, França/Bélgica/Itália, 2016)
Direção e roteiro: Julia Ducournau
Elenco: Garance Marillier, Ella Rumpf, Rabah Nait Oufella, Laurent Lucas, Joana Preiss
99 minutos

Não é o bastante comparar Grave a longas de gente como David Cronenberg e David Lynch, porque embora os estilos desses mestres certamente tenham sido inspirações para a diretora/roteirista Julia Ducournau, sua visão é tão única e tão profunda que reduzi-la a um pacote de referências pop não seria justo. Grave é uma jornada absurda, visceral e por vezes surreal, sim, mas é também uma obra ponderada e sincera sobre o pesadelo de ser mulher, os recursos de dominação (sexual, comportamental) aos quais uma mulher precisa recorrer no mundo em que vivemos para afirmar qualquer módico de poder, e a armadilha armada para aquelas mulheres que escolhem usar esses recursos, e são julgadas por isso. Se parece um tópico complexo para um filme de terror de 99 minutos sobre canibalismo que reportadamente fez espectadores desmaiarem em festivais por aí, bom… Você claramente ainda não viu nada como a obra de estreia de Julia Ducournau. Só por isso, ela já precisa ser vista, mas o filme é também refinadamente produzido em seus aspectos técnicos, realçando a complexidade do tema e o formato surrealista adotado pela diretora.

A fotografia de Ruben Impens explora as linhas retas e mínimas do design de produção de Laurie Colson para criar a sensação de desconforto que é marca do filme, enquanto a edição de Jean-Christophe Bouzy cuida da dimensão visceral das cenas mais chocantes do longa. A protagonista Garance Marillier está mais do que disposta a entregar os aspectos físicos exigidos por sua personagem, uma jovem vegetariana que entra na faculdade de veterinária e é obrigada a comer carne em um trote – a partir daí, seu apetite está literalmente aberto para a caça. Ainda melhor que ela é Ella Rumpf, que empresta uma intensidade insuspeita à irmã da protagonista, que estuda já há alguns anos na mesma faculdade. A forma como Rumpf guarda os segredos mais profundos de sua Alexia até os momentos certos é simbólico da reflexão de Grave sobre o que obrigados nossas mulheres a se tornarem para sobreviver.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

14 de out. de 2017

Review: O Ato de Matar e O Peso do Silêncio são os dois filmes mais importantes da nossa década

look of silence act of killing

por Caio Coletti

Nenhum outro filme despertou em mim exatamente o mesmo sentimento do que O Ato de Matar. Quando os créditos subiram no documentário de Joshua Oppenheimer, o feito monumental de cinema que eu tinha testemunhado parecia minúsculo, insignificante, perto da força humanitária e do testemunho de moralidade complicada da obra. O Ato de Matar é um grande filme, mas eu não quero sair gritando aos sete ventos que ele é um grande filme – eu não quero indicá-lo para os meus amigos, falar sobre ele na mesa do bar ou nos espaços on-line reservados para discutir cinema.

O que transpira quando Oppenheimer faz contato com líderes dos “esquadrões da morte” da Indonésia e pede para eles reencenarem o terrível genocídio que eles comandaram em forma de cinema é uma daquelas raras peças de arte que são maiores do que si mesmas, maiores até do que o nosso conceito mesquinho e arrogante de arte. O Ato de Matar é um filme que faz o espectador lamentar, de forma profunda e visceral, sua própria existência – é uma obra colossal, fundamental e indescritivelmente terrível.

Há de se colocar as reações físicas e emocionais a ele de lado, no entanto, para entender tudo de essencial que o filme discute. O Ato de Matar é sobre a história como construção dos vencedores, sobre a mentira como um mecanismo de autoproteção (por toda a sua eficiência e sua fragilidade), sobre o contraste espantoso entre ficção e realidade, e, ao mesmo tempo, sobre como uma tem poder de refletir na outra. Ao expor de forma inclemente a humanidade de figuras políticas monstruosas, O Ato de Matar os banaliza e os diminui tanto quanto os faz ainda mais aterrorizantes – porque, chocantemente, eles não são tão diferentes de nós.

E então temos O Peso do Silêncio, espécie de “continuação” do filme anterior produzida por Oppenheimer dois anos depois. Para o segundo filme, o diretor inverte a perspectiva e nos apresenta com uma obra que, embora não tenha o mesmo efeito de “soco no estômago para nunca mais se esquecer”, eleva a complexidade da discussão e coloca o panorama devastador que Oppenheimer fez dos massacres indonésios em um patamar no qual nenhuma obra cinematográfica pode alcançá-lo tão cedo.

Dessa vez, acompanhamos um sobrevivente dos massacres buscando conhecer a história de seu irmão, que foi morto na época. Em uma série de visitas tensas, ele confronta vários dos chefes locais que ajudaram a assassinar milhões de ditos “comunistas”, em busca talvez de um senso de reconciliação – Oppenheimer vê empatia aparecendo pelas frestas do mundo sombrio que retrata, mas vê também a toxicidade que contamina todas as interações em uma comunidade, um país (enfim, uma humanidade), que viveu tais horrores. A reflexão profunda e a história frágil contada por O Peso do Silêncio acaba sendo tão marcante quando a ânsia e a exaustão que O Ato de Matar causam no espectador.

Combinar um exercício intelectual com uma exposição de humanidade em seus impulsos mais monstruosos foi o que Oppenheimer buscou fazer aqui – no meio do caminho, encontrou uma experiência que é muito mais do que artística (embora também o seja, e tão, tão fundamentalmente). Em um díptico pintado em tons de cinza, o documentarista cria os filmes mais importantes da nossa década justamente ao nos lembrar que o cinema nunca será capaz de abraçar, consertar, mudar ou retratar a realidade e suas consequências mais profundas.

look of

O Ato de Matar (The Act of Killing, Inglaterra/Dinamarca/Noruega, 2012)
Direção: Joshua Oppenheimer, Christine Cynn, Anônimo
115 minutos

O Peso do Silêncio (The Look of Silence, Dinamarca/Indonésia/Finlândia/Noruega/Inglaterra/Israel/França/EUA/ Alemanha/Holanda/Taiwan, 2014)
Direção: Joshua Oppenheimer
103 minutos

7 de out. de 2017

Review: O que incomoda em Mãe! é o cruzamento herético entre deuses e humanos

mother

por Caio Coletti

Um dos meus melhores hábitos (os bons não são muitos, acredite) é não criar expectativas para obras artísticas. Via de regra, busco me manter calmamente afastado do furor pelo lançamento de qualquer peça de cinema, TV, música ou seja lá o que for, a fim não de manter a objetividade ou a frieza ao finalmente poder assisti-la (ou lê-la, ou ouvi-la, enfim), mas de me manter aberto à subjetividade que ela quer me passar, ao invés de julgá-la a partir daquilo que esperava dela. No entanto, ao entrar na minha sessão de Mãe!, era impossível não sentir aquela curiosidade no fundo da cabeça, reprimida pelas minhas melhores tentativas de não ceder ao hype: O que será que incomodou tanto nesse filme?

As reações ao longa de Darren Aronofsky não poderiam ser mais polêmicas: Houve quem o amou, saudando a coragem e intensidade do filme como dignas do pesadelo que se via em tela; e houve quem o odiou, cunhando as expressões de sempre (“exercício de ego vazio” e suas inúmeras variações) ou reclamando, do ponto de vista conservador, do uso de símbolos e metáforas sacras para contar uma história de violência.Tinha isso em mente quando o título rabiscado do filme apareceu em tela, seguido imediatamente de um ponto de exclamação grosseiro, quase como que zombando da controvérsia que Aronofsky sabia que seu filme ia causar. Por outro lado, quando “The End of the World” tocou enquanto os créditos subiam, no final do filme, a dúvida (“O que em Mãe! incomoda tanto?”) não existia mais.

A trama de Mãe! (não há spoilers aqui) acompanha o casal formado por Javier Bardem e Jennifer Lawrence, que vivem em uma casa ainda em construção. Ele, um escritor; ela, uma dona de casa. Subitamente, chega por lá um homem (Ed Harris), que cria uma ligação com o personagem de Bardem enquanto Lawrence protesta (educadamente, em particular, como a boa esposa suburbana) contra sua permanência na casa. Logo, junta-se a ele a esposa (Michelle Pfeiffer), e a partir daí o roteiro de Aronofsky dispara uma série tensa de acontecimentos que atingem um crescendo até a odisseia alucinante do final. Metade drama doméstico, metade filme de guerra, e inteiro alegoria, Mãe! é, como cinema, um bicho estranho, que não liga para equilíbrio tonal e não se acanha em usar truques sujos para pegar o espectador desprevenido.

No entanto, ainda não é isso que incomoda sobre Mãe!, visto que Aronofsky é um mestre em dançar na ponta dos pés ao redor da percepção do espectador. O filme não tem qualquer trilha sonora artificial perceptível (o compositor Jóhann Jóhannsson chegou a escrever temas que não foram usados no corte final), mas usa a edição e mixagem de som com maestria para inserir o espectador em um ambiente acústico à flor da pele. O diretor de fotografiaMatthew Libatique, velho parceiro de Aronofsky, mantem a iluminação natural e, sem dúvida sob instruções do cineasta, passa uma enorme parte da metragem filmando o rosto de Jennifer Lawrence em close-up, sua pele de boneca enchendo a tela. Percebendo o desafio, a estrela entrega uma atuação que não é só puramente reativa, buscando personalidade em meio ao desespero que o roteiro joga em sua direção.

Ainda melhores estão outros dois membros do elenco. Bardem parece se deliciar com a missão de retirar as camadas de seu personagem lentamente durante o filme, elaborando sem medo o egocentrismo que guia cada uma de suas decisões, e encarando cada momento em que o roteiro aumenta o volume da paródia/metáfora que representa com tanto senso de aventura quanto coerência. Extravagante na medida certa, Bardem acerta o tom difícil do filme de Aronofsky na mosca, como o grande ator que é. Enquanto isso, Mãe! pede que Michelle Pfeiffer faça justamente o contrário, colorindo ao redor de uma personagem que é em muitos sentidos unidimensional – ela encontra um tom de humor negro tão refinado que, quando ela está em cena, é difícil prestar atenção em qualquer outra coisa. 

Não é nada disso que incomoda em Mãe!, no entanto. Saindo da minha sessão, a impressão é que o que enerva e envolve tanto no filme é a forma como a história contada por Aronofsky desnuda a mitologia da sociedade ocidental de seu misticismo e encontra nela observações minutas e detalhes sórdidos do nosso egoísmo, da nossa prepotência, da nossa teimosia, do nosso equívoco ao tentar entender conceitos como amor, devoção e perdão. Mãe! olha para os deuses que criamos e acha neles a reflexão da nossa pior natureza, e da verdade que nenhum de nós quer encarar: a de que cada ato, consequência, equívoco e desastre que acontece conosco, e entre nós e o meio em que vivemos, é de nossa responsabilidade.

Por toda a sua carreira, Aronofsky transformou humanos em deuses e demônios tortos. Réquiem Para um Sonho, Fonte da Vida, O Lutador, Cisne Negro, Noé – são todos filmes sobre homens e mulheres cujas obsessões, confusões, perturbações e arrependimentos os transformam em seres saídos direto de tragédias gregas grandiosas em que reis e rainhas se digladiam em meio a temas de vingança, degradação e glória. Acontece quando Nina abre suas asas na apresentação final de Cisne Negro, ou Randy sobe nas cordas do ringue para dar seu último pulo em O Lutador, ou Noé decide se deve ou não ouvir as ordens de Deus e matar um membro de sua família, ou Sara descende à loucura com seus remédios para emagrecer enquanto delira sobre estar em um programa de auditório em Réquiem.

Há 17 anos, Darren Aronofsky transforma humanos patéticos, sujos e de caráter duvidoso em deuses e mitos. Em Mãe!, o script se inverteu, e os deuses desceram à Terra para nos mostrar que, veja só, eles são mesmo só humanos, tão gloriosamente perturbados quanto os outros do diretor. É isso que realmente incomoda em Mãe!. Ele faz acreditar, mesmo que por meras 2 horas, que não há uma história maior, mais ideal ou mais pura – que isso que temos aqui é tudo o que jamais teremos. É um filme urgente, totalmente idiossincrático, que precisa ser respeitado e ouvido mesmo que todos os nossos instintos digam que não.

✰✰✰✰✰ (5/5)

mother

Mãe! (Mother!, EUA, 2017)
Direção e roteiro: Darren Aronofsky
Elenco: Jennifer Lawrence, Javier Bardem, Ed Harris, Michelle Pfeiffer, Brian Gleeson, Domhnall Gleeson, Jovan Adepo, Kristen Wiig
121 minutos

24 de set. de 2017

Diário de filmes do mês: Setembro/2017

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por Caio Coletti

Nem todos os filmes merecem (ou pedem) uma análise complexa como a que fazemos com alguns dos lançamentos mais “quentes” ou filmes que descobrimos e nos surpreendem positivamente. É levando em consideração a função da crítica e da resenha como uma orientação do público em relação ao que vai ser visto em determinado filme que eu resolvi criar essa coluna, que visa falar brevemente dos filmes que não ganharam review completo no site. Vamos lá:

annabelle

Annabelle (EUA, 2014)
Direção: John R. Leonetti
Roteiro: Gary Dauberman
Elenco: Annabelle Wallis, Ward Horton, Tony Amendola, Alfre Woodard
99 minutos

Há um filme de horror interessante dentro de Annabelle, o primeiro derivado da franquia Invocação do Mal, mas a ele não é permitido o espaço para respirar sobre as confecções preguiçosas do diretor John R. Leonetti. Difícil culpá-lo, no entanto: com apenas US$6.5 milhões à disposição no orçamento e a pressão para criar um filme que apele a uma grande audiência, ele usa os mais baixos denominadores comuns do gênero para produzir sustos sem trabalhar o suspense ou os personagens com a mesma habilidade e paciência de seu colega de profissão, o criador da franquia James Wan. Onde Wan é engenhoso com a colocação da câmera e a sugestão, Leonetti é óbvio na forma colo “telegrafa” a história dos personagens, os temas de sacrifício e maternidade do roteiro de Gary Dauberman, e a presença quase não sentida da boneca amaldiçoada do título. Na trama, vemos como Annabelle “absorve” o espírito de uma discípula de um culto satanista que morre dentro da casa da protagonista, Mia (Annabelle Wallis), enquanto ela ainda está grávida. Os acontecimentos bizarros que ocorrem ao redor da boneca não seguem uma lógica própria, e o mundo sobrenatural de Annabelle se parece exatamente com o que é: uma confecção apressada que buscou capitalizar no sucesso da “personagem” durante o filme original.

A talentosíssima Alfre Woodard é o destaque do elenco, imbuindo sua personagem com um certo censo de autoparódia, com todas as suas expressões espantadas e diálogos ominosos – se não fosse por ela, o final trágico do filme não funcionaria em nenhuma dimensão. É fácil creditar a fotografia óbvia e o design de produção pouquíssimo inspirado ao baixo orçamento, mas filmes independentes dentro e fora dos EUA nos mostram rotineiramente que dinheiro não é obstáculo para uma mente criativa. Fazer um filme de terror com propósito, climatização e habilidade artesanal sem muito dinheiro não é impossível – para que aconteça, só é preciso tempo e vontade, duas coisas que aparentemente faltam aqui.

✰✰✰ (2,5/5)

discovery

The Discovery (EUA, 2017)
Direção: Charlie McDowell
Roteiro: Justin Lader, Charlie McDowell
Elenco: Jason Segel, Robert Redford, Rooney Mara, Jesse Plemons, Riley Keough, Mary Steenburgen
102 minutos

Antes de The Discovery, o diretor Charlie McDowell e seu parceiro de roteiro, Justin Lader, criaram outra pequena ficção científica que causou comoção na época do lançamento: Complicações do Amor, lançada em 2014, sobre um casal que vai a um retiro para recuperar seu matrimônio e encontra uma cabana em que coisas bizarras acontecem (não queremos estragar nada). Como The Discovery, era uma premissa engenhosa executada com precisão e bravura, que não fugia da ambiguidade ou da ironia de seu final. Como The Discovery, era um filme ao qual faltava alguma coisa – nos 102 minutos de sua nova ficção científica, McDowell e Lader conseguem explorar os cantos escuros da mortalidade, do suicídio, da própria condição humana. O que não conseguem, no entanto, é construir personagens com jornadas que realmente envolvem o espectador. O resultado é um filme paradoxal: profundamente humano pela natureza de sua trama, mas estranhamente frio, como se a ideia (a tal descoberta) importasse mais do que as pessoas envolvidas nela – o que pode funcionar na ciência, mas não funciona na arte. Will (Jason Segel), o protagonista, vai visitar seu pai, Thomas (Robert Redford), um renomado cientista que conseguiu comprovar a existência da vida após a morte, um evento que deu início a uma epidemia de suicídios. Chegando lá, conhece Isla (Rooney Mara), que logo se junta ao grupo de “seguidores” que o pai de Will reuniu ao redor de si.

O elenco tenta de forma dedicada construir a jornada desses personagens a partir dos poucos detalhes dado pelo roteiro – Segel entrega uma performance dramática que é particularmente precisa, e Redford também destaca-se com uma de suas melhores e mais sutis performances em tempos. Assim como em Lion, a Mara é dado o papel de criar suporte às elaborações emocionais de seu protagonista masculino, o que não serve bem a uma atriz tão habilidosa, cheia de recursos para criar personagens complexos (lembram-se de Carol?). O estilo meditativo de The Discovery casa bem com as intervenções escarças da câmera de McDowell e sua diretora de fotografia, Sturla Brandth Grovlen. É um filme que quer deixar espaço para sua história ganhar vida, mas não dá a ela sangue o bastante para tal – ainda que um pouco frustrante, é um exercício interessante de cinema, vindo de um gênero e um cenário que explode de ideias inovadoras todos os anos.

✰✰✰✰ (3,5/5)

gits

A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell (Ghost in the Shell, Inglaterra/China/Índia/Hong Kong/EUA, 2017)
Direção: Rupert Sanders
Roteiro: Jamie Moss, William Wheeler, Ehren Kruger, baseados no mangá de Shirow Masamune
Elenco: Scarlett Johansson, Pilou Asbaek, Takeshi Kitano, Juliette Binoche, Michael Pitt
107 minutos

Faz alguns meses que eu me obriguei a assistir Ghost in the Shell, o original japonês, duas vezes para entendê-lo (leia o review). Foram precisas duas sessões porque o filme de Mamoru Oshii me pegou desprevenido na primeira vez, com seus longos diálogos e trechos contemplativos, combinados com a ação árida, os traços retos e a consideração profunda sobre identidade de gênero, sexualidade, livre arbítrio, corrupção governamental, engenharia social que a história fazia. Posso apostar que a versão americana de Ghost in the Shell, nunca vai prontificar alguém e dizer, quando sobem os créditos: “Bom, eu preciso ver isso de novo”. Isso não só porque o filme de Rupert Sanders é menos extraordinário como peça de cinema, mas porque o roteiro de Jamie Moss, William Wheeler e Ehren Kruger vai de encontro ao mangá original de Shirow Masamune e reduz sua firma contestação filosófica a uma batida reafirmação de humanidade acima da artificialidade que já vimos um milhão de vezes na ficção científica hollywoodiana. Pudera: pensar que um roteirista de Transformers (Kruger) era uma boa escolha para adaptar uma obra como essa, ou mesmo tirar algo de diferente e igualmente excitante dela, é algo que só Hollywood faria. A trama envolve a Major (Scarlett Johansson), uma mulher de corpo inteiramente biônico, porém consciência humana, transplantada para o invólucro artificial após um acidente mortal – ela trabalha com uma organização governamental que caça o criminoso Kuze (Michael Pitt), capaz de hackear a mente de pessoas e controlá-las.

A história ligando Major e o vilão é óbvia o bastante para que o espectador médio veja a “reviravolta” chegando de longe, e o final não é nem metade tão subversão do status quo quanto o do original. Para piorar a situação, o diretor Rupert Sanders aborda o futuro de Ghost in the Shell com sua sensibilidade visual aguçada, porém voltada a um uso impecável dos melhores efeitos especiais que Hollywood pode oferecer. O resultado é um filme superficialmente deslumbrante, com seus plásticos lustrosos e curvas sinuosas – é sedutor elogiá-lo por isso, mas a verdade é que pouca ou nenhuma inventividade visual está envolvida na concepção desse futuro de Sanders, que divide o (des)crédito com o designer de produção Jan Roefls. O Ghost in the Shell americano não precisava ser igual ao original – de fato, há de se argumentar que o que o filme precisava fazer para honrar seu predecessor era criar algo nunca visto antes, no espírito de Oshii. Foi aí que (de novo) Hollywood falhou.

✰✰ (2/5)

ican

Ao Cair da Noite (It Comes at Night, EUA, 2017)
Direção e roteiro: Trey Edward Shults
Elenco: Joel Edgerton, Christopher Abbott, Carmen Ejogo, Riley Keough, Kelvin Harrison Jr
91 minutos

Seria fácil dizer que o grande trunfo de Ao Cair da Noite, como outros terrores e suspenses independentes antes dele, é o senso de expectativa que ele cria. De fato, o diretor e roteirista Trey Edward Shults é inteligente na forma como movimenta a câmera através dos espaços confinados do filme, no mistério inclemente com o qual cerca a ameaça externa enfrentada pelos protagonistas, nos poucos flashes de imagens obvia e visceralmente perturbadoras que escolhe mostrar. O incômodo causado pelo filme de Shults, no entanto, tem muito mais a ver com o que ele significa do que com a forma na qual ele é conduzido – habilidosamente, ele criou um suspense que traça as origens do medo e da raiva que impulsionam tantas atitudes e pensamentos isolacionistas e preconceituosos, muito especialmente a xenofobia que é a força motriz por trás de tantas campanhas políticas bem sucedidas mundo afora no momento atual. Ao Cair da Noite incomoda porque expõe as consequências mais extremas de um pensamento protetivo que existe na própria natureza da humanidade, e que costuma se exacerbar nos momentos mais sombrios de dificuldade (ó título do filme não é aquele por acaso). O roteiro de Shults desenha paralelos complexos desse pensamento com a estrutura machista da sociedade, tanto a que ele apresenta quanto a nossa, e tem a delicadeza de concentrar em seu protagonista adolescente a reflexão sobre como ideologias de ódio e medo tem um profundo impacto na nossa formação psicológica.

Na trama, Paul (Joel Edgerton), Sarah (Carmen Ejogo) e o jovem Travis (Kelvin Harrison Jr) vivem juntos em uma casa isolada – o mundo sucumbiu a algum tipo de vírus e os poucos sobreviventes vivem quase sem contato com o exterior. É quando Will (Christopher Abbott), com sua esposa Kim (Riley Keough) e o filho ainda criança, aparecem propondo uma parceria para sobreviver – Shults desenha a desconfiança e as sutis maneiras de segregação que os recém-chegados enfrentam com sutileza, e deixa seu filme rapidamente tomar uma direção sombria quando o primeiro evento “estranho” acontece na residência dividida das famílias. A escalação violenta, em junção com duas performances explosivas de Edgerton e Abbott, criam um clímax tão chocante quanto claramente inevitável. Quando os créditos de Ao Cair da Noite sobem, uma mistura de náuseas, tristeza e impotência toma conta do espectador – com sua fábula fatalista, Shults criou o épico de terror mais representativo da nossa época.

✰✰✰✰ (4/5)

tdt

A Torre Negra (The Dark Tower, EUA, 2017)
Direção: Nikolaj Arcel
Roteiro: Akiva Goldsman, Jeff Pinkner, Anders Thomas Jansen, Nokolaj Arcel, baseados nos livros de Stephen King 
Elenco: Idris Elba, Matthew McConaughey, Tom Taylor, Dennis Haysbert, Claudia Kim, Jackie Earle Haley, Abbey Lee, Katheryn Winnick
95 minutos

Adaptar A Torre Negra, saga de sete livros assinados por Stephen King, sempre foi uma tarefa ridiculamente difícil – os livros são supremamente bizarros, uma mistura curiosa, excitante e inesquecível de épico de fantasia, faroeste e a escrita sempre recheada de cultura pop de King. Seria tolice esperar que um filme hollywoodiano de 95 minutos, como o A Torre Negra de Nikolaj Arcel, fosse capaz de capturar essa bizarrice e esse exato encanto. Talvez por isso a decisão dos roteiristas de criar uma nova história com os mesmos personagens tenha sido acertada, mas do jeito como foi feito, A Torre Negra não se destaca de seus parceiros blockbusters nem em feitura nem em narrativa. A construção de Akiva Goldsman, Jeff Pinkner, Anders Thomas Jansen e do próprio Nikolaj Arcel no roteiro é inana, conformando os personagens em moldes pré-concebidos. Pior ainda, o script não consegue se decidir qual dos moldes quer dar para cada um deles – o pistoleiro Roland vai de herói estoico a alívio cômico/peixe fora d’água, enquanto o jovem Jake (Tom Taylor) começa como aprendiz subestimado e acaba como mais um “Prometido” trágico da fantasia, um Harry Potter sem a gana adolescente do protagonista de J.K. Rowling.Enquanto isso, Matthew McConaughey mal é um personagem – o filme não lhe dá espaço ou material para ser, e o ator se reduz a ajustar seus maneirismos usuais em um contexto vilanesco arrogante. O Homem de Preto de McConaughey quer destruir a Torre Negra, construção que mantém os múltiplos universos livres de monstros, enquanto Roland jurou impedí-lo, e Jake é jogado em meio a essa batalha de homens poderosos quando percebe que tem habilidades psíquicas especiais. A jornada de Jake e Roland por dois desses múltiplos universos (o nosso e um outro, que parece genericamente pós-apocalíptico) não encontra virtualmente nenhum módico de originalidade.

Se a construção clichê não desmorona completamente, culpe Idris Elba. O ator encontra no Roland errante do roteiro um personagem envolvente, colando as partes distintas de seu passado com habilidade – contra todas as possibilidades, o ator britânico consegue comunicar a tragédia, relutância, extraordinária habilidade e até a comédia de Roland; muitas vezes todas elas ao mesmo tempo. É uma performance incomum em um filme desesperadoramente comum, ao qual o diretor Arcel faz pouco para injetar vida – seu trabalho ao lado do cinematógrafo Rasmus Vidabaek é belamente controlado, mas o mesmo não pode-se dizer da concepção e uso dos efeitos especiais, por exemplo. Mudar o universo de Stephen King não foi o problema em A Torre Negra – privá-lo de sua humanidade, sim.

✰✰✰ (2,5/5)

whtm

Onde Está Segunda? (What Happened to Monday, Inglaterra/França/Bélgica/EUA, 2017)
Direção: Tommy Wirkola
Roteiro: Max Botkin, Kerry Williamson
Elenco: Noomi Rapace, Glenn Close, Willem Dafoe, Marwan Kenzari
123 minutos

O diretor Tommy Wirkola não tem exatamente o melhor dos currículos. Seja a “franquia” Zumbis na Neve ou o terrível João e Maria: Caçadores de Bruxas, o norueguês é conhecido por construções baratas e “sujas” de ação, erguidas sem o cuidado de outros diretores contemporâneos do gênero. Onde Está Segunda? não é tão diferente – Wirkola encontra-se com um roteiro básico de Max Botkin e Kerry Williamson e não faz muito esforço para surpreender com ele. Seu filme é eventualmente divertido e envolvente, mas some da memória do espectador minutos depois dos créditos subirem. A falta de imagens ou momentos indeléveis também não favorece a atriz Noomi Rapace, que já provou ser talentosa sob as condições corretas. Aqui, ela encara um papel sétuplo que não lhe dá espaço para desenvolver nenhuma das irmãs Settman propriamente – Rapace é boa em simular o desespero pelo qual as irmãs passam, a busca incessante por conexão humana, o cansado companheirismo entre elas, mas são emoções primárias e coletivas que se esquivam das complexidades do particular de cada uma. Conforme o roteiro despacha cada uma das gêmeas Settman, a impressão é que nunca realmente as conhecemos – o que é uma pena, porque o roteiro é de exemplar diversidade. Não ajuda que o filme desperdice Glenn Close, sempre excelente independente do material, na pele de uma vilã cujas motivações podemos entender, e cuja frustração com a monstruosidade de seus próprios atos é palpável.

Na trama, Close é uma cientista que provém a solução definitiva para o problema de superpopulação na Terra: permitir que cada família tenha apenas um filho, e congelar qualquer eventual irmão em criogenia, para ser acordado quando a situação estiver normalizada. Quando as gêmeas Settman nascem, a mãe morre no parto, e o avô (Willem Dafoe) as cria para se esconderem do mundo – todas elas assumirão a identidade de Karen Settman, e só sairão de casa um dia por semana. O “plano perfeito” funciona por décadas, até que um dia a irmã para a qual é designada a Segunda-Feira desaparece do mapa. Daí para frente, Wirkola dirige uma série de cenas de ação brutais e dinâmicas, mas desencontra de vez a urgência e humanidade de sua história.

✰✰✰ (3/5)

30 de jul. de 2017

Review: O documentário Quem é JonBenet entende que a empatia é o traço mais humano de todos

casting

por Caio Coletti

O misterioso caso do assassinato de JonBenét Ramsey tem fascinado o público americano e mundial há mais de 20 anos. Uma breve contextualização: Ramsey era uma garota de apenas 6 anos, conhecida no circuito de concursos de beleza para crianças dos EUA, que foi encontrada morta em 1996 em sua própria casa, em um caso nunca solucionado. Teorias incluem a possibilidade de que os pais, Patsey e John, estivessem envolvidos, ou de que o irmão, Burke, a teria matado acidentalmente e os pais estavam encobrindo as evidências, e levantam também a possibilidade assustadora da existência de um círculo de prostituição infantil em Boulder, Colorado (EUA), onde a menina vivia com a família.

O documentário Quem é JonBenet, da diretora Kitty Green, explora todas essas possibilidades, ao mesmo tempo em que se estrutura de forma única para o gênero. Ao invés de trazer entrevistas com pessoas de fato envolvidas no caso, a diretora colocou uma chamada de elenco para um filme sobre JonBenet no jornal local, e entrevistou e reencenou momentos chaves do caso com aqueles que responderam. O resultado é uma análise profunda de temas como memória, preconceito, escolhas narrativas e a influência da mídia na nossa percepção de mundo, mas é também um testemunho de força inexplicável sobre a maior e mais delicada das qualidades humanas: a empatia.

Conforme conduz as entrevistas e encenações, Green escolhe se embrenhar não só na vida da família Ramsay como ela é contada por atores amadores e profissionais de Boulder, como também nas questões de foro pessoal que levam cada um deles a fazer certas escolhas em suas atuações. Incansável, a documentarista coloca uma lente de aumento sobre os pontos de contato das histórias desses indivíduos em frente a suas câmeras e a história da família imperfeita e incógnita que está no centro desse caso. Quem é JonBenet entende a imperfeição e a peculiaridade da condição humana que dá combustível para a fascinação em torno da morte de JonBenet, e prefere sublinhar essa fascinação do que buscar respostas inéditas ou insights baratos.

Planejado e executado à perfeição, o experimento cinematográfico de Green exige habilidade que sobra à diretora, tanto para editar a vastidão de material que com certeza conseguiu em suas entrevistas quanto para escolher os detalhes minuciosamente destacados pela fotografia. Assistida pelo editor Davis Coombe e pelo diretor de fotografia Michael Latham, Green encontra seu ponto de equilíbrio com facilidade, comandando uma progressão confiante de emoções entrelaçadas que atingem um clímax impecável. Atenção especial para o ator Dixon White, que faz teste para viver John Mark Karr, um pedófilo que confessou (falsamente) ter matado JonBenét. White mergulha na psique perturbada e nos motivos obscuros de Karr com uma vontade e fascinação que o fazem uma força da natureza – e um parceiro criativo perfeito para Green. Em meio a uma sinfonia cinematográfica de engenhosidade inegável, é um dueto de ator e diretor delicioso de se assistir.

✰✰✰✰✰ (5/5)

casting

Quem é JonBenet (Casting JonBenet, EUA/Austrália/China, 2017)
Direção e roteiro: Kitty Green
80 minutos

Diário de filmes do mês: Julho/2017

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por Caio Coletti

Nem todos os filmes merecem (ou pedem) uma análise complexa como a que fazemos com alguns dos lançamentos mais “quentes” ou filmes que descobrimos e nos surpreendem positivamente. É levando em consideração a função da crítica e da resenha como uma orientação do público em relação ao que vai ser visto em determinado filme que eu resolvi criar essa coluna, que visa falar brevemente dos filmes que não ganharam review completo no site. Vamos lá:

okja

Okja (Coreia do Sul/EUA, 2017)
Direção: Joon-ho Bong
Roteiro: Joon-ho Bong, Jon Ronson
Elenco: Seo-Hyun Ahn, Tilda Swinton, Jake Gyllenhaal, Giancarlo Esposito, Steven Yeun, Paul Dano, Lily Collins
120 minutos

A tomada final de Okja é um dos maiores triunfos de estrutura fotográfica do cinema contemporâneo. Ao mesmo tempo, ela vem de uma tradição centenária do cinema oriental – estudantes da filmografia japonesa vão identificar com facilidade a homenagem ao mestre Yasujiro Ozu, mas não é preciso ser um intelectual para entender o brilhantismo do coreano Joon-ho Bong, um dos maiores talentos de sua geração. Seu faro perfeito para a criação de mundos e personagens únicos brilhou anteriormente em O Hospedeiro e Expresso do Amanhã, entre suas outras obras, e em Okja ele está especialmente afiado. Colorido por performances devidamente exageradas de Jake Gyllenhaal, Paul Dano e da genial Tilda Swinton, cujo estilo de atuação sempre cai como uma luva na sensibilidade do diretor, o filme é um equilíbrio prodigioso de tons e gêneros, uma experiência de encenação elaborada, e uma história genuinamente tocante. A habilidade de casar tudo isso em um todo coerente, lançando mão tanto de técnicas clássicas quanto de inovações, é o que faz um grande cineasta contemporâneo como Bong parecer mais vital a cada obra acertada.

Okja é a história de um animal artificialmente criado por uma corporação da indústria alimentícia, que após dez anos sendo criado com carinho por um avô e sua neta, precisa viajar para os EUA a fim de reproduzir-se e acabar confortavelmente na mesa de jantar de alguma família de comercial de margarina. Bong, também coautor do roteiro, não esteriliza o processo, suas crueldades e suas hipocrisias, mas empresta ao filme a ambiguidade humana necessária para entender o sistema maior em que esse processo está inserido. É um filme corajosamente criativo, mas talvez ainda mais bravamente realista – e um testemunho e tanto do talento de seu diretor.

✰✰✰✰ (4/5)

holyHoly Hell (EUA, 2016)
Direção: Will Allen
100 minutos

Há um valor inestimável intrínseco ao material apresentado em Holy Hell, documentário do diretor Will Allen sobre os 22 anos que ele mesmo passou dentro de um culto liderado por um ex-ator pornográfico americano. Sim, você leu certo. O Buddhafield começou como uma espécie de “acampamento” espiritual, mas ao longo das décadas se tornou a própria definição do culto de personalidade nos séculos XX e XXI. Como cineasta-residente do grupo, Allen tem material farto para contar sua história, e como sobrevivente ele tem uma conexão pessoal inexorável com ela, assim como contato a outros que passaram pela mesma experiência. O resultado é uma narrativa minuciosa e compreensiva, tremendamente bem ilustrada, editada e refletida pelas entrevistas dos ex-membros do culto. Por vezes ligeiramente polido demais, e com poucos insights formais, Holy Hell supera suas (poucas) deficiências como cinema através de suas (muitas) virtudes como documento histórico, e seu absurdo poder de fascinação. É um exercício de empatia em muitos sentidos entender a forma como as pessoas que vemos em frente às câmeras puderam passar duas décadas sob o feitiço de um psico-hipnotista e seu discurso pseudo-religioso. Allen nos conduz em direção a essa empatia com a mão segura que só poderia vir de alguém que também a pede do espectador ao contar sua própria história.

Em sua abundância de material, Holy Hell serve também como uma janela para a cultura da época que produziu o Buddhafield e tantos casos semelhantes, ao mesmo tempo em que frisa as características perenes da condição humana que tornaram eles possíveis. Da euforia do início nos anos 80 ao apego na década seguinte a conceitos que rapidamente se tornavam ultrapassados no zeitgeist contemporâneo, o que levou a uma posição radicalmente isolacionista nos anos 2000, a história do Buddhafield atravessando os anos é também a história da civilização ocidental nesse período de tempo. Pelo testemunho de sobrevivência, pelos insights humanos de suas testemunhas ou por esse valor histórico, Holy Hell merece ser assistido.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

ticklesTickled (Nova Zelândia, 2016)
Direção: David Farrier, Dylan Reeve
92 minutos

É impossível não desejar que Tickled, o documentário, tivesse sido feito por outra pessoa. David Farrier e Dylan Reeve merecem os louros de terem perseguido a história mais improvável do ano passado, mas seus instintos de repórteres não são os mesmos que um documentarista de verdade teria inserido no filme. A linguagem jornalística de Tickled é seu calcanhar de Aquiles, mas a força da história que Farrier e Reeve descobrem o faz também inescapavelmente fascinante e envolvente. Tudo começa quando Farrier, jornalista de matérias “curiosas” na Nova Zelândia, encontra na internet vídeos de jovens rapazes enfrentando maratonas de cócegas – e a companhia que banca esses vídeos jura que é um esporte legítimo. A partir daí, dizer mais seria estragar a jornada: Tickled se torna uma por vezes curiosa, por vezes revoltante jornada pelos cantos mais escuros do corporativismo e do privilégio capitalista nos EUA, além de uma reflexão engajada sobre a facilidade de destruir a vida e a reputação de uma pessoa na era da internet (isto é, quando ela não tem dinheiro o bastante para contra-atacar). É ao mesmo tempo a velha história de Davi versus Golias do mundo industrial, e uma nova e aterrorizante faceta dela – ao traçar o início de sua história junto ao início da internet, Farrier mostra instintos de pesquisa perfeitos e contextualiza a história com inteligência.

O filme escolhe acompanhá-lo durante a investigação, como se uma equipe de filmagens entrasse nos momentos íntimos em que os caminhos de uma história jornalística se desenvolve. Não sobram insights sobre esse processo, visto que o foco da câmera está constantemente nas barreiras e reviravoltas que os dois jornalistas encontram, e não na forma como as superam. Em suma, talvez o formato pareça mais uma necessidade do que uma escolha criativa – e nesse caminho Tickled se torna um documentário pouco notável tanto quanto é uma história, de sua própria forma, essencial. Paradoxal, talvez. Como o filme mostra, muitas coisas no mundo contemporâneo são.

✰✰✰✰ (4/5)

weiner

Weiner (EUA, 2016)
Direção: Josh Kriegman, Elyse Steinberg
96 minutos

Ao contrário dos outros documentários que dominam o nosso diário do mês de julho, Weiner não é diretamente argumentativo ou investigativo. Os diretores Josh Kriegman e Elyse Steinberg preferem outra abordagem clássica do gênero: o estilo “mosca-na-parede”, que coloca a câmera como mera observadora, e os cineastas como agentes raramente intrusivos na situação real que registram. Nesse modo, o cinema documental funciona como crônica, revelando a visão única de seus autores de forma mais sutil – na forma como estrutura a narrativa através da edição, ou nos detalhes que decidem ou não filmar. A crônica aqui é da campanha de Anthony Weiner para prefeito de Nova York em 2013/2014, e os subsequentes escândalos que revelaram que o ex-congressista democrata traía a esposa com várias mulheres através da internet. Weiner havia passado por acusações semelhantes anos antes, e foi obrigado a renunciar do cargo no Congresso, mas achou que estava na hora de voltar para a política. Kriegman e Steinberg registram a vida esparsa, as mentiras e o instinto de lutador de Weiner com um mesmo distanciamento cuidadoso, criando um estranho anti-herói com um ponto válido a fazer, mas a reputação errada para fazê-lo. No caminho, os diretores revelam a complexidade da vida pública, do sistema de governo, e de nossa relação com a imprensa quando decidindo posições políticas.

O apelo carismático do personagem no centro do documentário, assim como o quanto desse apelo é fachada, ficam claros ao final de Weiner, que acaba também testemunhando o começo da ruína de um casamento e a provação pública de uma mulher humilhada pelos segredos do marido, mas nada disposta a se deixar abater por eles. Ao invadir o espaço particular de Weiner e sua família, o documentário por vezes se parece com uma sátira sombria das ações da imprensa que acompanhou o ex-congressista em sua nova campanha, mas o desastre todo é tão envolvente que é impossível de desgrudar os olhos da tela. Talvez porque Weiner represente um símbolo tão perfeito do lugar que estamos, como civilização, na “marketização” da política, sua história é infinitamente fascinante, e inexplicavelmente essencial.

✰✰✰✰✰ (5/5)

roger

Get Me Roger Stone (EUA, 2017)
Direção: Dylan Bank, Daniel DiMauro, Morgan Pehme
92 minutos

Get Me Roger Stone é um filme cruel. Isso porque, assim como seu protagonista, o filme embrulha uma profundamente pessimista mensagem sobre o mundo e a humanidade em um pacote vagamente sensacionalista de personalidade ultrajante. O Roger Stone do título é um operativo político cuja carreira em Washington data dos anos 70, quando foi um ator para lá de coadjuvante no escândalo Watergate, que derrubou Richard Nixon. Desde então, Stone se tornou lobista, fazendo milhões ao defender interesses de ditadores sanguinários junto a congressistas americanos, e mais recentemente participou da campanha de Donald Trump para a presidência dos EUA. Os codiretores Dylan Bank, Daniel DiMauro e Morgan Pehme são fascinados por essa figura do vale-tudo político e pelo que ela representa, mais estão ainda mais interessados em entender o que ele realmente sente sobre o país que desempenhou papel fundamental para criar. Uma mistura de desdém, interesses egocêntricos e a amarga realização de que ele estava certo desde o começo é o que se vê no homem para além da figura quase cartunesca que ele cria para se defender dos críticos e realizar seus estratagemas políticos.

A ideologia cínica da política-por-lucro de Stone, suas ataques sujos aos adversários, sua visão imperdoável dos instintos mais básicos da natureza humana e do quanto eles dirigem as atitudes daqueles a sua volta – tudo isso entra em perspectiva com a vitória de Trump, e o clima político que se vive no mundo ocidental hoje em dia, ao mesmo tempo cria direta e vitória ideológica de Stone. Fazendo uma análise minuciosa da história que nos trouxe até aqui através da biografia de seu protagonista, Get Me Roger Stone é um frio e sombriamente bem-humorado feito de cinema documental que não nos deixa, ou ao próprio Stone, escaparmos de uma verdade inconveniente: a tragédia do cínico é sempre, invariavelmente, que ele está certo.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

ns

Nobody Speak: Trials of the Free Press (Holanda/EUA, 2017)
Direção: Brian Knappenberger
95 minutos

O diretor Brian Knappenberger pode ser visto como um documentarista um pouco argumentativo demais por vezes. Sua tendência de fazer da câmera um palanque, ainda mais sem todo o senso de entretenimento de um Michael Moore, compromete um pouco a importância de Nobody Speak: Trials of the Free Press, mas a força das histórias que ele conta em muitos momentos fala por si mesma. Em uma combinação raramente criativa de entrevistas e imagens de arquivo, o filme reconta o julgamento do site de fofocas Gawker pela publicação de uma sex tape do lutador profissional Hulk Hogan, e usa o caso de trampolim para observar como milionários estão tentando impor censuras à imprensa nos EUA e no mundo. O filme tem a coragem de mostrar o Gawker, desprezado por muitos como “lixo jornalístico”, pelo que ele era: um espaço onde era permitido jogar sujo com os ricos, famosos e privilegiados, e um site que, por toda sua fama de fútil, ainda revelou o hábito de drogas de um prefeito em exercício e denunciou atos de machismo e hipocrisia do conglomerado tecnológico Vale do Silício. Era a imprensa livre em suas consequências mais incômodas, mais ambíguas, mais provocativas e mais absolutamente fundamentais para sobrevivência da democracia como a conhecemos.

Seguindo o exemplo do site, Knappenberger desenterra evidências e ligações das quais um diretor com menos vontade de enfrentar o estabelecimento social talvez não dispusesse. Essa é a maior importância de Nobody Speak – seu status como representante da mesma liberdade de expressão que aos poucos é cerceada pelos mesmos setores da sociedade que colam o rótulo de “censura” no politicamente correto contemporâneo. Como desafio ideológico, portanto, o filme triunfa em passar sua mensagem, ainda que como obra cinematográfica lhe falte talvez a legitimidade de discurso que um trabalho mais equilibrado e focado em insights “merecidos” poderia trazer.

✰✰✰✰ (4/5)

sam

Um Cadáver Para Sobreviver (Swiss Army Man, EUA/Suécia, 2016)
Direção e roteiro: Daniel Kwan, Daniel Scheinert
Elenco: Daniel Radcliffe, Paul Dano, Mary Elizabeth Winstead, Richard Gross
97 minutos

É um chavão barato da crítica cinematográfica dizer que “você nunca viu um filme como esse antes” – o que é uma pena, porque às vezes, só às vezes, ele é verdade. Swiss Army Man, traduzido pobremente como Um Cadáver Para Sobreviver no Brasil, é um desses filmes. O que há de único nele? Nas mãos dos diretores e roteiristas Daniel Kwan e Daniel Scheinert, é a sua estranhamente comovente celebração da verdadeira diferença, livre dos constrangimentos da sociedade, e seu reconhecimento da artificialidade do mundo civilizado que construímos para nós mesmos. A trama mostra o náufrago interpretado por Paul Dano encontrando um cadáver, interpretado por Daniel Radcliffe, e usando suas surpreendentes “habilidades especiais” para tentar retornar ao mundo que deixou para trás. Piadas baratas não estão abaixo dos roteiristas, mas a dupla de atores não só vende os momentos mais pueris de Swiss Army Man como segue a deixa do roteiro e encontra uma complicada ressonância emocional neles. Não dá para dizer que é a obra-prima mais sofisticada dos últimos anos, mas você definitivamente nunca viu um filme exatamente assim.

O forte de Radcliffe como ator nesses anos pós-Harry Potter tem sido a fisicalidade, e aqui ele tem material farto para brincar com as caretas desconjuntadas de seu cadáver e as posições desconfortáveis em que o corpo é deixado. Dano, por sua vez, encontra uma sutil compreensão emocional de seu personagem e da jornada construída para ele durante os enganosamente densos 97 minutos de filme. Com um design de produção explosivamente criativo e a determinação de surpreender o espectador até onde a trama lhe permitir, Swiss Army Man é uma curiosa peça de cinema que merece ser experimentada – mesmo que você vá odiá-la.

✰✰✰✰ (4/5)

    

audrie

Audrie & Daisy (EUA, 2016)
Direção: Bonni Cohen, Jon Shenk
95 minutos

Não dá para escapar do sentimento que Audrie & Daisy renderia um documentário muito mais poderoso na mão de diretores mais organizados e sensíveis do que Bonni Cohen e Jon Shenk. A intenção é absolutamente nobre: o filme conta a história de duas entre muitas garotas que, ainda adolescentes, foram abusadas sexualmente. Uma delas não faz denúncia e, pressionada pelos colegas de escola que compartilhavam vídeos do ocorrido, acaba tirando a própria vida. Outra vai às autoridades, mas sua cidade prefere ficar ao lado dos astros do futebol americano que ela acusa, e a pressão quase a leva para o mesmo caminho. O filme, em suma, é um testemunho denso e necessário do processo de humilhação pública que muitas vítimas de abuso sexual passam mesmo após decidirem fazer a denúncia e identificarem os culpados, e dos caminhos que elas encontram para a sobreviver e tomar de volta uma agência sobre seus próprios destinos que foi tirada não só pelos criminosos, como por aqueles que os apoiaram. A dupla de diretores ouve e recria com sensibilidade o testemunho dessas garotas, mas não encontra meios para nos dar a dimensão exata, ou o sentimento aproximado, do que é ter uma história de violência como essa negada ou defendida por aqueles da comunidade a sua volta que deveriam te proteger.

Com meros 95 minutos, o filme não tem a força de um The Killing Ground, por exemplo, que lida com temas semelhantes. O apelo emocional está aqui por conta das histórias que o filme escolhe contar, mas o contexto da cultura em que elas nasceram, tão essencial para entender como elas foram e continuam sendo possíveis, não aparece com clareza e detalhismo suficientes. Para um filme cuja missão mais fundamental é denunciar a cultura do estupro, Audrie & Daisy mergulha muito pouco nos seus significados e ramificações contemporâneos – o que é uma pena, visto o enorme poder do cinema documental de elevar casos e problemas sociais na discussão popular.

✰✰✰✰ (4/5)

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O Que Fazemos nas Sombras (What We Do in the Shadows, Nova Zelândia/EUA, 2014)
Direção e roteiro: Jemaine Clement, Taika Waititi
Elenco: Jemaine Clement, Taika Waititi, Jonny Brugh, Cori Gonzalez-Macuer, Stu Rutherford, Ben Fransham, Jackie van Beek
86 minutos

A premissa mais interessante da comédia O Que Fazemos nas Sombras é que vampiros não são mais cool. Os galanteadores medievais viraram ídolos adolescentes radiantes (literalmente), e agora sua lenda foi exposta pela fragilidade trágica que sempre teve. No hilário filme de Jemaine Clement e Taika Waititi, os vampiros são os excluídos, seus costumes anacrônicos rejeitados pela sociedade conectada ao redor deles, e essa banalização de suas figuras abre caminho para uma série de piadas que (quase) ninguém ousou fazer antes. Nesse falso documentário, acompanhamos quatro vampiros que vivem juntos em uma casa – ao receberem um quinto membro na família, eles se veem confrontados com o mundo do qual tão frequentemente se escondem. Sobra espaço para sátira social no roteiro, mas Waititi e Clement sabem o valor de uma piada boba no momento certo, especialmente aquelas que conectam aos usos dos poderes vampirescos nos momentos mais banais, de brigas entre amigos àquele momento muito identificável em que você só deseja que a pessoa com quem você está conversando pare de falar.

Em ritmo alucinante, os dois diretores constroem personagens curiosos e bem definidos, interpretados por eles mesmos ao lado de um grupo de atores mantidos na ponta dos pés pela natureza imprevisível do filme em que se encontram. Tirando sarro dos estereótipos em que esses personagens se encaixam, e aproveitando para introduzir um subtexto queer muito óbvio que sempre foi intrínseco às histórias de vampiro, O Que Fazemos nas Sombras mostra que a forma mais fácil de fazer qualquer tema se tornar engraçado é explorar as reentrâncias mais humanas de sua mitologia. Raramente vampiros foram tão envolventes quanto aqui.

✰✰✰✰ (4/5)

truth

Conspiração e Poder (Truth, Austrália/EUA, 2015)
Direção: James Vanderbilt
Roteiro: James Vanderbilt, baseado no livro de Mary Mapes
Elenco: Cate Blanchett, Robert Redford, Topher Grace, Dennis Quaid, Elizabeth Moss, Bruce Greenwood, Stacy Keach, John Benjamin Hickey, Dermot Mulroney
125 minutos

O caso de Mary Mapes e Dan Rather, produtora e âncora do programa 60 Minutes durante a crise envolvendo uma reportagem sobre o serviço militar do presidente George W. Bush no ano de 2004, é um dos mais famosos da mitologia jornalística contemporânea. Após a estreia do programa, que questionava se Bush havia cumprido mesmo suas obrigações militares, evidências começaram a surgir que os documentos conseguidos pelos repórteres, dados por um ex-tenente do exército, eram falsos. Mapes e Rather deixaram a emissora, e foram investigados por uma comissão independente que, se você acreditar no retrato visto no filme Conspiração e Poder, estava predisposta a condená-los mesmo que sua conduta jornalística não tenha sido teoricamente equivocada. O filme, é claro, é baseado no livro da própria Mapes contando o acontecido, e talvez more só na atuação de Cate Blanchett a noção de que esse é um debate mais profundo do que aquele apresentado pelo roteiro de James Vanderbilt. Pelos olhos de Blanchett, que está excepcional como de costume, podemos ver uma Mapes inteligente e determinada, mas entendemos também de onde vem a noção de que ela pode ter se aproximado desse tema com menos cautela por conta de suas posições políticas e personalidade.

Dirigido de forma um tanto burocrática pelo próprio Vanderbilt e com uma série de atores coadjuvantes que por vezes parecem desperdiçados em seus papeis (Dennis Quaid está especialmente competente), o filme serve como documento histórico de um caso que encarna um dilema do jornalismo político que não surgiu com os tempos contemporâneos, mas que certamente está mais proeminente neles: como encontrar um equilíbrio na busca pela verdade? E o quanto as nossas posições particulares, como indivíduos, podem e devem ser removidas do nosso trabalho como repórteres? O filme advoga por uma resposta muito simples para uma questão tão complexa, mas ainda merece ser visto – mesmo que seja só para ver a melhor atriz em atividade em tela.

✰✰✰✰ (3,5/5)

experimenter

Experimentos (Experimenter, EUA, 2015)
Direção e roteiro: Michael Almereyda
Elenco: Peter Sarsgaard, Winona Ryder, Jim Gaffigan, John Leguizamo, Anton Yelchin, Kellan Lutz, Dennis Haysbert
98 minutos

Peter Sarsgaard é um dos grandes atores americanos da atualidade, e uma parcela ínfima da crítica, que dirá do público, lhe dá o devido crédito. Em Experimentos, ele é o psicólogo Stanley Milgram, que famosamente conduziu uma série de testes comportamentais em voluntários que mostravam o quanto nós, como seres humanos, estávamos dispostos a obedecer ordens de terceiros mesmo quando o resultado delas parecia cruel. Nas mãos de Sarsgaard, Milgram é um homem quietamente, placidamente apaixonado e fascinado pelo seu próprio trabalho, e mais tarde frustrado pela recepção dele e as críticas que recebe. O filme de Michael Almereyda usa o tempo todo recursos narrativos peculiares, entre eles fazer o próprio Milgram “quebrar a quarta parede” e conversar conosco, o espectador – é nessas cenas que Sarsgaard mostra que o filme não funcionaria com outro ator na pele do protagonista, medindo com cuidado o ritmo dessa narração e a relação de olhares e linguagens corporais que cria com o espectador. Ele, e em uma escala menor sua companheira de cena, Winona Ryder, equilibram a artificialidade proposital da encenação e da direção de arte com retratos profundamente humanos, mesmo que terrivelmente excêntricos, desses personagens reais.

Sobre essa tal artificialidade: o filme usa cenários reduzidos a pinturas de fundo e uns poucos móveis, ou desconstrói o espaço percorrido pelos personagens, criando intrincados diálogos que passeiam pela percepção do espectador atento de forma confiante. É um filme que nunca se cansa de surpreender e recompensar um olhar afiado com pequenos detalhes subversivos, que se entrelaçam espertamente com a trama e a percepção de mundo de Milgram, um homem acostumado a despir a condição humana a seus traços mais básicos, instintivos e deterministas. O diretor e roteirista Almereyda fez um filme único que faz jus ao homem único que representa, e uma brincadeira artística que ele, certamente, apreciaria.

✰✰✰✰✰ (5/5)