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31 de jan. de 2016

Diário de filmes do mês: Janeiro/2016


por Caio Coletti

Nem todos os filmes merecem (ou pedem) uma análise complexa como a que fazemos com alguns dos lançamentos mais “quentes” ou filmes que descobrimos e nos surpreendem positivamente. Particularmente, também, eu não me dou a escrever críticas grandes de filmes que considero ruins ou irrelevantes, porque não vejo sentido em remoer demais os erros de uma produção cinematográfica. É levando em consideração a função da crítica e da resenha como uma orientação do público em relação ao que vai ser visto em determinado filme que eu resolvi criar essa coluna, que visa falar brevemente dos filmes que não ganharam review completo no site. Vamos lá:

Hotel Transilvânia 2 (Hotel Transylvania 2, EUA, 2015)
Direção: Genndy Tartakovsky
Roteiro: Robert Smigel, Adam Sandler
Elenco: Adam Sandler, Andy Samberg, Selena Gomez, Kevin James, Steve Buscemi, David Spade, Keegan-Michael Key, Molly Shannon, Megan Mullally
89 minutos

O primeiro Hotel Transilvânia, lançado em 2012, não conseguiu evitar de se parecer muito com um desperdício dos talentos consideráveis do mestre da animação Genndy Tartakovsky, que estava fazendo sua estreia no comando de um longa-metragem depois de assinar séries de TV elogiadas como Star Wars: Clone Wars, Samurai Jack e As Meninas Super-Poderosas. O design tremendamente criativo dos personagens monstrengos de Hotel Transilvânia, a energia das piadas físicas e visuais, as referências clássicas do conceito inicial, tudo era afogado por um roteiro sem ritmo nem surpresas, que seguia à risca os clichês do gênero e não aproveitava o potencial que a história poderia oferecer.

Para a continuação, três anos depois, era difícil esperar algo diferente, principalmente com o astro Adam Sandler (que dubla o protagonista Dracula) assumindo serviços de roteirista. Que surpresa, portanto, que Hotel Transilvânia 2 abrace pelo menos um pouco mais do potencial de seus personagens e de sua premissa – na nova trama, Drac tem de lidar com a filha, Mavis (Selena Gomez) pensando em se mudar do Hotel com seu novo marido, o humano Jonathan (Andy Samberg), e o filho recém-nascido, que ainda não mostrou sinais de ser um monstro como o lado materno da família. Por baixo da trama boba e do humor um pouco mais controlado, corre em Transilvânia 2 um agradável e esperto discurso sobre preconceito e a vontade de moldar a próxima geração com os costumes das suas predecessoras.

Nesse ritmo, talvez o inevitável Hotel Transilvânia 3 possa estar à altura do seu genioso (e genial) diretor.

✰✰✰✰ (3,5/5)


A Visita (The Visit, EUA, 2015)
Direção e roteiro: M. Night Shyamalan
Elenco: Olivia DeJonge, Ed Oxenbould, Deanna Dunagan, Peter McRobbie, Kathryn Hahn
94 minutos

Desde o lançamento de A Visita nos cinemas, no finalzinho de Novembro (Setembro nos EUA), o filme foi saudado como um peculiar retorno à forma de M. Night Shyamalan, o homem responsável por clássicos como O Sexto Sentido e A Vila, mas também por desastres como Fim dos Tempos e O Último Mestre do Ar. A percepção crítica não estava errada, mas A Visita não é o que se poderia esperar de um comeback movie para Shyamalan, conhecido pelas formalidades clássicas e pela influência de Spielberg, Hitchcock e outros diretores classudos em suas obras. Pelo contrário, é um filme que testemunha a evolução de um autor e a forma como um período sendo alvejado por críticas pesadas o moldou – ao se apropriar da cansada convenção do found footage, Shyamalan decidiu não se levar a sério demais, criando um filme rechado de consciência de si mesmo e das convenções com as quais brinca, mas que as subverte e as usa com sabedoria.

A Visita é uma esperta história de terror sobre familiaridade, trauma, mágoa e cicatrizes psicológicas, o que o funda firmemente em um plano terreno, como a maioria dos bons filmes do gênero. As duas adoráveis crianças no centro do filme, Becca (Olivia DeJonge) e Tyler (Ed Oxenbould, especialmente ótimo), foram abandonadas pelo pai mais velho, que fez a mãe (Kathryn Hahn) fugir de casa aos 19 anos para construir uma vida sozinha. Quando os avós de Becca e Tyler, com quem a mãe não tinha contato desde então, pedem para conhecer os netos, o filme estabelece sua história e seu tom, usando as aspirações cinematográficas de Becca, que planeja fazer um documentário sobre os avós perdidos, para justificar o formato e tecer um discurso de metaficção no processo. Deanna Dugan e Peter McRobbie, os dois character actors veteranos que fazem o papel doa avós, abocanham com gosto as partes mais exaltadas do roteiro de Shyamalan, transpirando a malediscência do texto com facilidade.

Tremendamente criativo e com toques de irreverência que temperam o terror found footage sem deixá-lo perder o potencial aterrorizante (e as imagens impactantes que Shyamalan conjura, especialmente no memorável terceiro ato), A Visita é uma das mais bacanas misturas de gêneros do cinema em 2015.

✰✰✰✰ (4/5)


Maze Runner: Prova de Fogo (Maze Runner: The Scorch Trials, EUA, 2015)
Direção: Wes Ball
Roteiro: T.S. Nowlin, baseado na novela de James Dashner
Elenco: Dylan O’Brien, Ki Hong Lee, Kaya Scodelario, Thomas Brodie-Sangster, Jacob Lofland, Giancarlo Esposito, Patricia Clarkson, Aidan Gillen, Lili Taylor, Barry Pepper
132 minutos

No mar de adaptações de literatura young adult inundando os multiplexes por aí, é difícil encontrar alguma que pareça ter algo realmente especial. Jogos Vorazes, com sua estrela vencedora de Oscar, seu discurso político e emocional mais contundente, e suas referências à clássicos da ficção científica (1984 especialmente, é claro), é uma dessas. Maze Runner também parecia ser, no seu primeiro capítulo, se diferenciando dos concorrentes pela trama mais contida a um espaço, pelo mistério pulp da organização secreta (chama WICKED!) que estava orquestrando o futuro distópico da história, e pelo design de produção espetacular, dando apoio a um elenco jovem bem escolhido. Se acomodando ao ciclo de produção intenso das outras franquias do gênero, Prova de Fogo, a continuação, chegou aos cinemas por volta de um ano depois – uma pena que a continuação da história urdida por James Dashner na trilogia de livros originais não retenha as melhores partes do primeiro capítulo.

Prova de Fogo vê nossos heróis, liderados por Thomas (Dylan O’Brien, que merece papeis melhores), sendo acolhidos por um grupo suspeito de militares ao escapar do labirinto do primeiro filme. Lá, descobrem que as intenções de seus “salvadores” não são tão boas quanto parecem, embora o espectador provavelmente tenha adivinhado isso assim que Aidan Gillen, o Mindinho de Game of Thrones, foi escalado para interpretar a principal figura de liderança do tal destacamento militar. O filme desvenda alguns dos mistérios da WICKED, adiciona perigos ao lançar os protagonistas em um deserto onde são perseguidos por criaturas parecidas com zumbis (humanos infectados com um vírus que a WICKED quer curar “chupando” o gene de imunidade dos jovens protagonistas – tal gene só existe na nova geração), mas no final das contas se parece com um longo e burocrático exercício de perseguição, estilizado com habilidade pelo diretor Wes Ball, mas nunca exibindo o brilho peculiar do primeiro filme, uma pérola de ficção científica kitsch encrustada no meio de um esquema de produção hollywoodiano que só produz pedras brutas.

✰✰✰ (3/5)


Perdido em Marte (The Martian, EUA/Inglaterra, 2015)
Direção: Ridley Scott
Roteiro: Drew Goddard, baseado no livro de Andy Weir
Elenco: Matt Damon, Jessica Chastain, Kristen Wiig, Jeff Daniels, Michael Peña, Sean Bean, Kate Mara, Sebastian Stan, Chiwetel Ejiofor
144 minutos

O maior trunfo de Perdido em Marte é Matt Damon. O americano de 45 anos, duas vezes indicado ao Oscar de atuação (ele venceu, junto com Ben Affleck, mas pelo roteiro de Gênio Indomável), está em um momento interessante da carreira, escolhendo com cuidado projetos que o colocam naquele raro equilíbrio entre “ator respeitável” e “astro de ação”. O recente Elysium foi uma derrapada nesse sentido, pendendo mais para um lado do que para o outro, mas Perdido em Marte acerta em cheio – chegando perto das 2h30 de metragem, o filme do veterano Ridley Scott, cujas incursões anteriores pela ficção científica (Alien, Blade Runner) dão à Perdido em Marte certo pedigree, não é uma obra-prima, mas se apóia no carisma e na transparência emocional sutil de Damon para envolver o espectador em uma história de sci-fi muito mais firmada na realidade e nos dados científicos atuais do que estamos acostumados a ver. Nas mãos de Damon, a ficção científica possível de Perdido em Marte encontra um herói igualmente crível, e é aí que o filme ganha o jogo.

Especialmente porque, com a honrosa exceção da capitã Lewis de Jessica Chastain, em sua segunda ótima atuação em papeis coadjuvante em ficções científicas em pouco tempo (vide Interestelar), os coadjuvantes são meros peões dessa complexa história de resgate, que é impulsionada quando um grupo de cientistas em uma missão em Marte é obrigado a abandonar o planeta vermelho por conta de uma tempestade, mas acaba deixando para trás um da sua equipe, o Mark Watney feito por Damon – que eles presumiam estar morto. Quando a NASA descobre que não é bem assim, a corrida para garantir a sobrevivência de Mark começa. O roteiro de Drew Goddard (O Segredo da Cabana) adapta com bom-humor e contenção o livro elogiado de Andy Weir, e a direção de Scott garante a elegância dos procedimentos, trabalhando a câmera e os recursos narrativos (o diário de Mark, as câmeras de vigilância do habitat artificial onde ele tem que viver) com habilidade.

Perdido em Marte envolve o espectador com facilidade, um épico de ficção científica bem diferente das aspirações filosóficas e metafóricas de seus companheiros de gênero. É um filme-pipoca em seu cerne, e um dos bons.

✰✰✰✰ (4/5)


O Bom Dinossauro (The Good Dinosaur, EUA, 2015)
Direção: Peter Sohn
Roteiro: Meg LeFauve
Elenco: Raymond Ochoa, Jack Bright, Jeffrey Wright, Frances McDormand, A.J. Buckley, Anna Paquin, Sam Elliott
93 minutos

Segundo acerto da Pixar em 2015, O Bom Dinossauro notavelmente teve um dos processos de produção mais difíceis da história da companhia, passando por uma série de reimaginações desde 2009. Talvez o pé atrás que muitos críticos desenvolveram com a empresa de animação depois do período de seca criativa entre 2010 e 2015, somado com esses já reportados problemas de produção, tenham evenenado a percepção deles do filme de Peter Sohn, que estreia em longas-metragens depois do memóravel curta Parcialmente Nublado. Embora não tenha a genialidade visual e narrativa de Divertida Mente, seu companheiro de estúdio em 2015, O Bom Dinossauro é uma fábula bem contada sobre superação de medos e, especialmente, sobre o indelével valor que esse sentimento tem na formação do caráter de uma pessoa. Uma história de crescimento como tantas da Pixar, o filme de Peter Sohn é um inteligente retrato de personagens cujos maiores medos os guiam de maneira definitiva, e da maturidade emocional que é necessária para enfrentá-los ao invés de fugir deles.

A história acompanha Arlo (Raymond Ochoa), um apatossauro que, num nundo alternativo em que aquele infame asteróide não atingiu a Terra, perde o pai e se envolve em uma confusão que o leva para longe da fazenda da sua família, onde sua ajuda é necessária. Ele se alia a um menino humano (Jack Bright), que age como um cachorro e não parece ter família própria – em uma sequência linda, de cortar o coração, a origem dos dois protagonistas fica clara através de uma metáfora que o diretor Peter Sohn definiu como o coração do filme, concentrando-se na comunicação não-verbal. O Bom Dinossauro, de fato, é uma narrativa muito visual, combinando suas paisagens ultra-realistas com o deisgn mais caricato dos personagens de maneira adorável e fazendo referências visuais à farorestes clássicos e a outros filmes, como o clássico Tubarão (na cena em que os dinossauros se reúnem ao redor da fogueira). A jornada do protagonista é identificável e os personagens que o cercam sublinham essa jornada com delicadeza e graça – O Bom Dinossauro pertence, com todos os filmes da era de ouro da Pixar, na prateleira de triunfos do estúdio. Pena que nem todo mundo o tenha percebido assim.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)


Goosebumps: Monstros e Arrepios (Goosebumps, EUA/Austrália, 2015)
Direção: Rob Letterman
Roteiro: Darren Lemke, baseado nos livros de R.L. Stine
Elenco: Jack Black, Dylan Minnette, Odeya Rush, Ryan Lee, Amy Ryan, Jillian Bell, Halston Sage, Ken Marino
103 minutos

Com mais de 300 milhões de cópias vendidas mundialmente, a série de terror-para-crianças Goosebumps é chamada por muitos de “a Harry Potter dos anos 90”, mas sua natureza de histórias isoladas a cada livro, além do ritmo prolífico de seu autor (foram 62 livros entre 1992 e 1997), impediram que Goosebumps chegasse aos cinemas intacta. Uma série de antologia, produzida entre 1995 e 1998, adaptou vários dos contos assinados por R.L. Stine para a TV, mas Goosebumps, de 2015, é a primeira adaptação direta para o cinema – e o roteiro de Darren Lemke (Jack, o Caçador de Gigantes) é esperto ao comprimir todas as criaturas de Stine em uma única trama, minar a capacidade de nostalgia que essas histórias trazem, criar um conto metalinguístico divertido, e ainda estruturar uma aventura juvenil que se abre para futuras explorações em forma de franquia.

Associado à direção habilidosa de Rob Letterman (Monstros vs. Alienígenas), que mantem as engrenagens rolando, especialmente nas ótimas cenas de ação, esse trabalho de roteiro faz de Goosebumps um blockbuster divertido, mesmo que não o faça ganhar em profundidade, nem vá muito longe na reprodução da magia dos livros de Stine, que contavam histórias aterrorizantes que mexiam com medos infanto-juvenis com maestria. Jack Black estrela como o próprio Stine, retratado no filme como um paranóico morador de uma cidade pequena para onde Zach (Dylan Minnette) se muda. Não demora tanto para que o jovem descubra o segredo do escritor – quando um de seus manuscritos da série Goosebumps é aberto, o monstro que habita o mundo de ficção da história em questão é libertado. A premissa abre caminho para efeitos especiais e cenas de perseguição impressionantes, sejam elas envolvendo o Abominável Homem das Neves ou, na nossa preferida, um Lobisomem vestido de uniforme de futebol americano.

Sem a ousadia nem o elenco certo para abraçar a natureza irônica de sua reconstrução da mitologia da série, Goosebumps, o filme, sofre do frequente mal da incompletude que assombra os filmes grandes de Hollywood. Segue como uma aventura divertida, mas não satisfaz com sua reviravolta de trama meticulosamente previsível, nem com sua exploração rasa de certos temas e consequências.

✰✰✰✰ (3,5/5)


Z for Zachariah (Islândia/Suiça/Nova Zelândia/EUA, 2015)
Direção: Craig Zobel
Roteiro: Nissar Modi, baseado na novela de Robert C. O’Brien
Elenco: Chiwetel Ejiofor, Chris Pine, Margot Robbie
98 minutos

O diretor Craig Zobel brinca com os limites entre o cinema independente e o mainstream em Z for Zachariah, seu terceiro longa-metragem, primeiro desde o polêmico Obediência (2012), que explora de forma chocante a forma como as tensões escalam a partir de um trote inicialmente inofestivo a um restaurante de fast-food. A apreensão que Zobel fez crescer naquele filme, um dos mais interessantes (e menos vistos) dos últimos anos, está presente de maneira mais sutil em Zachariah, um conto dramático de ficção científica que Zobel e o roteirista Nissar Modi (Breaking at the Edge) injetam com metáforas bíblicas e discussões sobre raça, religião e machismo. Adaptado livremente de um clássico cult do gênero escrito por Robert C. O’Brien (A Ratinha Valente), Zachariah é um filme quieto e discreto, cujos desafios e teses se escondem por debaixo da superfície do triângulo amoroso que se forma entre os três únicos personagens que vemos em cena.

Localizado em um mundo pós-apocalíptico, Zachariah começa com o encontro entre Ann (Margot Robbie), uma fazendeira que foi salva dos eventos misteriosos do apocalipse graças ao isolamento natural do vale em que vive; e John (Chiwetel Ejiofor), um cientista envolvido em um traje anti-radiação que parece muito empolgado por finalmente ter encontrado ar respirável. A partir daí, a relação entre os dois vai evoluido, tal e qual um Adão e Eva moderno, completa com o conflito religioso obrigatório – Ann é católica, e John acredita apenas na ciência, o que é um problema quando a capela da fazenda, onde Ann toca órgão mesmo que sozinha, precisa ser demolida para se construir um moinho que pode trazer energia elétrica para a casa. O terceiro elemento da trama é Caleb (Chris Pine), a proverbial serpente do paraíso, que aparece assim que John e Ann acertam entre si a possibilidade de, já que são provavelmente os únicos sobreviventes do apocalipse, se juntarem como um casal. Caleb tem muito mais em comum com Ann, e Pine o interpreta com os olhos sedutores e a eventual astúcia maliciosa que o roteiro lhe pede – a maçã que essa serpente oferece à Eva é muito atraente a ela.

Tanto essa metáfora quanto o subtexto racial correm por baixo da narrativa direta e linear do diretor Zobel, que nunca foi muito de subterfúgios. Sua força como artista está em criar filmes impactantes narrativamente que possuem um discurso social inteiramente escrito nas entrelinhas, e nesse sentido não é tão grande o espaço que separa Obediência de Z for Zachariah. Aqui, ele tem a ajuda de um trio de atores espetacular, com Robbie se tornando imediatamente o destaque por trazer para o filme uma Ann que se equilibra na ponta dos pés entre a inocência e uma melancolia profunda e internalizada, que a envelhece muito. A atriz some dentro do papel, o que é sempre a marca de uma intérprete comprometida – ela é o trunfo de um filme lindamente concebido, mas nem sempre bem-realizado.

✰✰✰✰ (3,5/5)


A Walk in the Woods (EUA, 2015)
Direção: Ken Kwapis
Roteiro: Michael Arndt, Bill Holderman, baseados no livro de Bill Bryson
Elenco: Robert Redford, Nick Nolte, Emma Thompson, Mary Steenburgen, Nick Offerman, Kristen Schaal
104 minutos

Ainda imponente e em boa forma do alto de seus 79 anos, o perpetualmente cool Robert Redford fez de A Walk in the Woods mais um de seus projetos passionais. O astro de Butch Cassidy and The Sundance Kid está tentando adaptar o livro de não-ficção do escritor Bill Bryson há quase uma década – em primeira instância, o filme deveria marcar a reunião de Redford com o velho amigo Paul Newman, mas a doença e eventual morte do ator liquidou com os planos de produção. Sem Newman, Redford acabou escalando outro velho amigo, Nick Nolte (48 Horas), com quem ainda não tinha dividido a cena, para formar a parceria central da história, que foca em um escritor renomado perto da aposentadoria (Redford) que, ao decidir fazer uma trilha que atravessa todo os EUA, é acompanhado por um amigo das antigas com quem havia perdido contato devido a um desentendimento (Nolte). A dinâmica entre os dois atores veteranos é deliciosa de se assistir, com Nolte mastigando com gosto um papel cômico feito sob medida para seus talentos, sua voz áspera e seu porte físico desajeitado, e Redford emprestando calor humano ao protagonista da jornada.

Uma pena que os dois atores sejam quase os únicos atrativos do filme. O roteiro de Michael Arndt (Pequena Miss Sunshine) e Bill Holderman (Leões e Cordeiros) tropeça da adaptação, o que é uma surpresa dados os créditos anteriores de ambos – nas mãos deles, A Walk in the Woods é uma jornada condescendente com todos os personagens que não se encaixam no ideal de comportamento de seus protagonistas, e é melhor nem falar do tratamento que o filme dispensa às personagens femininas. Pior ainda é perceber que, se quisesse, A Walk in the Woods podia ter um elenco de personagens femininas coadjuvantes memorável, visto que reúne ótimas intérpretes (cada uma em seu estilo) como Emma Thompson, Mary Steenburgen e a sempre hilária Kristen Schaal, que até nos breves momentos em que aparece em tela consegue deixar uma marca com sua personagem. A direção de Ken Kwapis (Quatro Amigas e um Jeans Viajante) também não ajuda, aproveitando pouco das paisagens deslumbrantes do caminho e engatando o piloto-automático, deixando Nolte e Redford fazerem todo o trabalho de encenação.

Esses dois excelentes intérpretes fazem de A Walk in the Woods uma bela jornada de personagem, mas nem as forças combinadas deles conseguem fazê-lo um bom filme.

✰✰✰ (2,5/5)


A Espiã que Sabia de Menos (Spy, EUA, 2015)
Direção e roteiro: Paul Feig
Elenco: Melissa McCarthy, Jude Law, Rose Byrne, Miranda Hart, Allison Janney, Jason Statham, Morena Baccarin, Bobby Cannavale
119 minutos

Numa das cenas de ação climáticas de Spy (nos recusaremos a usar o título nacional), Melissa McCarthy enfrenta uma oponente feroz, incorporada pela esguia e atlética atriz nova-iorquina Nargis Fakhri. Encenada na cozinha de um restaurante, a luta inclui a personagem de McCarthy utilizando uma variedade de produtos alimentícios para desviar os golpes de faca da oponente, e eventualmente encontrando a arma de que precisava em uma pequena frigideira. Encenada em ritmo alucinante pelo diretor e roteirista Paul Feig (Missão Madrinha de Casamento), a luta é uma das cenas de ação mais cinéticas, divertidas, surpreendentes e bem-conduzidas do ano – e 2015 foi ano de Mad Max, lembrem-se! Na fisicalidade das duas atrizes, na escolha de não esconder a brutalidade do confronto físico e de dar a sua protagonista ostensivamente cômica um conjunto de habilidades comparável a sua graça em tela, Feig empresta da cartilha de Jackie Chan e cria uma das lutas mais bacanas do cinema na memória recente.

Na trama, McCarthy interpreta Susan, uma analista da divisão técnica da CIA que, após a morte do agente de campo com o qual ela trabalhava (feito por Jude Law), se voluntaria para sair detrás da mesa do escritório e embarcar em uma perseguição internacional por um traficante de armas que botou as mãos em uma ogiva nuclear. Se você quer um pastiche dos filmes de espião que, ao mesmo tempo, acerte todos os pontos altos do entretenimento que eles proporcionam, não recorra à Kingsman, a esnobe aventura dirigida por Matthew Vaughn, mas sim à Spy. De brinde, ainda dá para ganhar uma performance espetacular de McCarthy, tremendamente engraçada sem nunca se contentar em ser o alvo das piadas – com a ajuda de Feig, ela faz de sua Susan uma protagonista para a qual torcemos, e que faz valer a nossa torcia. Spy é uma celebração dos talentos dessa mulher que tantos subestimaram, e para a gordinha McCarthy, essa deve ser uma história familiar até demais.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

28 de jan. de 2016

Review: "Spotlight" é um tributo ao jornalismo, e um choque de realidade

 
por Caio Coletti

Perto do final de Spotlight, o editor-chefe do Boston Globe, interpretado por Liev Schreiber (Ray Donovan) está revisando o texto de uma matéria importante junto de seus colegas de trabalho. Enquanto lê, o personagem de Schreiber risca com uma caneta algumas palavras na folha – “O quê?”, lhe pergunta Walter Robbinson (Michael Keaton), um dos jornalistas responsáveis pela investigação que resultou na tal matéria; “Adjetivos”, responde o editor. A atuação de Schreiber, que sempre se mostrou excelente em entender seus personagens, é discreta e minimalista como no filme todo, compondo em tela um jornalista não só crível (afinal, ele foi baseado em um personagem real), mas facilmente identificável. Spotlight é obcecado por esses pequenos detalhes, esses minúsculos vícios e procedimentos que fazem do jornalista o que ele é, e do processo tudo aquilo que não se é alardeado por aí – intenso, mas em muitos momentos quase corriqueiro; que exige coragem e percepção aguda, mas também paciência, minúcia e suor. Em termos de tributo a essa atividade profissional, poucos filmes se comparam a Spotlight nos últimos anos.

O diretor e roteirista Tom McCarthy (O Visitante), com a ajuda do co-escritor Josh Singer (O Quinto Poder), reconstrói a investigação, feita entre 2001 e 2002, por um grupo especializado de jornalistas do Boston Globe, sobre os casos de pedofilia e abuso sexual dentro da Igreja, e especialmente dentro das paróquias da cidade tradicionalmlente católica em que se encontravam. Os resultados a que eles chegam são chocantes, mas Spotlight faz com que eles cheguem a custo de muito trabalho – esse é o tipo de filme em que a descoberta e exaustiva leitura de um registro de padres da Igreja católica e a descoberta de termos usados neles para denotar padres afastados por incidentes de abuso se torna um desenvolvimento de trama excitante. Temperado com cenas de seus protagonistas construindo uma base de confiança com as fontes mais importantes (especialmente o advogado armênio feito, com a maestria de sempre, por Stanley Tucci), e de nossos repórteres batendo de porta em porta fazendo perguntas delicadas a respeito de casos de abuso sexual, Spotlight é um procedural que poderia ser entediante, se não tivesse tanta paixão pela atividade que retrata, pelos personagens que constrói, e pela importância da informação que traz.


O filme de McCarthy é também um que leva muito a sério as consequências dos acontecimentos que retrata. O roteiro não alivia a angústia contida na forma como cada um dos nossos protagonistas, religiosos ou não, vêem sua fé ou falta de fé afundar frente aos fatos que estão descobrindo, e através deles nos deixa na boca o gosto amargo que também ficou, com certeza, em boa parte da comunidade católica ao descobrir o que sua Igreja escondia. O fato da investigação contida em Spotlight conter dados espantosos até hoje, 14 anos depois da reportagem original ser publicada, só sublinha o quanto a luta desses jornalistas e de cada um daqueles que eles entrevistaram para apurar seus fatos precisou continuar muito depois do resultado final ganhar as páginas do Boston Globe. Spotlight não nos dá muito insight na vida pessoal dos seus protagonistas, mas faz o bastante para mostrar que seus status de jornalistas não ficam só no espaço da redação do jornal, e que em muitos sentidos aquela missão que eles abraçam no trabalho lhes define para muito além dele.

McCarthy também escapa de glorificar seus protagonistas ou colocá-los em um pedestal. Com uma revelação pertinho do final do filme, Spotlight é bem aberto ao definir a atividade jornalística como um “passeio no escuro”, e seus praticantes como seres humanos passíveis de falhas, hipocrisias e falhas e caráter, como todos nós. É por essa humanidade que o filme, e especialmente o seu elenco, brilha tanto e com tal realismo – a performance detalhista e geniosa de Keaton como o chefe do time de repórteres investigativos que faz a matéria desenha um arco de personagem mais claro; mas o destaque provavelmente é a impressionante atuação de Mark Ruffalo, incorporando os maneirismos e o crescente exasperamento de seu personagem com bravura e comprometimento. O restante do elenco brilha com a harmonia de um time, em papeis grandes ou pequenos – McAdams, indicada ao Oscar pelo trabalho, não é um destaque especial do filme, mas cumpre sua função nele com brilhantismo.

Spotlilght é preciso em seu retrato da cidade de Boston como uma comunidade fechada em que a proteção à Igreja Católica (e da Igreja Católica) significa muito, e da hipocrisia de tantos que simplesmente e fazem vista grossa, enquanto cumprindo as obrigações do seu trabalho, para aquilo que está acontecendo bem a sua frente. É devastador em sua abordagem do significado da religiosidade, e das cicatrizes que a quebra dessa fé e o abuso físico podem deixar nas pessoas. É realista, profissional e hercúleo em seu comprometimento com o procedimento jornalístico. E é, sem dúvida nenhuma, um dos grandes filmes de 2015 – uma grande história, dessa importância, sendo contada com tamanha competência, sempre vai ter um lugar garantido em qualquer lista de melhores do ano.

✰✰✰✰✰ (5/5)


Spotlight: Segredos Revelados (Spotlight, EUA, 2015)
Direção: Tom McCarthy
Roteiro: Josh Singer, Tom McCarthy
Elenco: Mark Ruffalo, Michael Keaton, Rachel McAdams, Liev Schreiber, John Slattery, Brian d’Arcy James, Stanley Tucci, Paul Guilfoyle, Billy Crudup
128 minutos

24 de jan. de 2016

Review: "Brooklyn" é um belo retrato da imigração, e uma peça de cinema ainda maior que sua estrela


por Caio Coletti

É fácil subestimar Brooklyn. Seja por sua história açucarada, repleta de romance; pela protagonista inicialmente inocente, advinda de uma cidadezinha no meio do nada (ou melhor, da Irlanda); ou pela visão utópica que mantem da América, uma terra de oportunidades como sempre é comercializado que ela seja. Há no filme do diretor John Crowley (Rapaz A), no entanto, uma profundidade, um discurso, uma importância e, mais marcantemente, uma sensibilidade extraordinária. Brooklyn adapta o premiado livro de Colm Tóibín sobre uma garota irlandesa que vai à Nova York nos anos 50 para encontrar oportunidades que inexistem para ela na cidadezinha natal, onde deixa a mãe e a irmã mais velha, esta última a patrocinadora da viagem. No ato de voltar no tempo e olhar para a experiência de Eilis, nossa heroína, como imigrante, Brooklyn provém comentário essencial sobre a forma como cada um de nós trata (e como eles, os americanos, tratam) aqueles que vem de além da fronteira.

Muitas resenhas neutralizam esse lado do filme de Crowley argumentando que Brooklyn é o relato da experiência de uma imigrante branca, europeia e cristã chegando à América, em oposição aos imigrantes árabes, do Oriente Médio e muçulmanos que tantos países da Europa e do mundo todo tem barrado ou acolhido hoje em dia. No entanto, o efeito dessas diferenças, que não devem ser ignoradas, é só sublinhar e reforçar a intenção e a profundidade do comentário social – porque para Eilis a América é uma terra onde sonhos podem se realizar, e para essas centenas de milhares imigrantes orientais (e mexicanos, diga-se de passagem) não? Brooklyn resgata uma época e uma circunstância em que Nova York, e os EUA, serviram o mote de acolhimento e oportunidade que sempre fez parte do seu orgulho e de sua identidade nacional, recebendo jovens e imbuindo-os do espírito de confiança em si mesmos que vem de agarrar seus objetivos sozinho. Quer nos lembrar da beleza desse ideal de forma completa, com os espinhos e as belas pétalas que nascem dele, e faz isso lindamente.

Nisso, o trabalho de adaptação de Nick Hornby se mostra excelente. Ele mesmo um novelista, tendo escrito os livros que geraram Alta Fidelidade e Um Grande Garoto, Hornby recentemente tem se dedicado a levar o trabalho de outros artesãos da palavra para a tela.  Aqui, ele transforma a prosa de Tóibín em uma narrativa encantadora se de acompanhar, mantendo o diálogo afiado, surpreendendo o espectador emocionalmente a cada esquina, e desenhando a jornada da personagem principal com maestria, mesmo que sem muitos floreios de poesia. Em muitos momentos, a história e o carisma de Eilis como personagem falam por si só, e Hornby é sábio o bastante para deixar que isso aconteça – o resultado é uma bela narrativa que lida encantadoramente com a interação entre as mulheres, sem vilanizar nenhuma delas ou desenhar rivalidades mesquinhas, além de uma angustiantemente bela reprodução dos sentimentos e das particularidades de encontrar e construir uma vida longe de casa. Em certa cena, Eilis escreve numa carta para a irmã, assim que as coisas começam a parecer melhores para ela em Nova York: “Before, by body was here, but my heart was in Ireland. Now, it’s halfway across the ocean”.


Para sustentar essa confiança que Brooklyn ostenta na própria história e na própria protagonista, Eilis precisava mesmo de uma atriz como Saoirse Ronan. Superlativa em todos os sentidos, a jovem estrela que ganhou a primeira indicação ao Oscar aos 14 anos por Desejo e Reparação (e a segunda agora, por esse filme) ganha a simpatia do espectador imediatamente, mas não sacrifica o trabalho de personagem para isso, aproveitando que o diretor Crowley lhe dá espaço para trabalhar (vários takes estendidos apenas observam a expressão no rosto de Eilis) para entregar uma atuação vivaz e alerta, sempre em contato com o mais trágico e o mais belo na história que está contando. Um dos momentos mais notáveis do começo do filme, e talvez a cena mais fundamental em nos envolver na história de Brooklyn, acontece quando Eilis, ainda na Irlanda, vai para um último baile com sua melhor amiga, Nancy, que logo consegue o par que almejava para dançar. Assim que a amiga se afasta com a nova conquista, passamos um tempo com Eilis, com a câmera concentrada em seu rosto – Saoirse a faz dardejar os olhos pela sala, considerar tudo ali que lhe soa como insuficiente ou desconfortável, e mesmo assim a esmagadora noção do quanto ela vai sentir falta de tudo aquilo. Nós, espectadores, simplesmente assistimos, por alguns segundos, um personagem pensar (não interagir, ou conversar, ou monologar, mas pensar), e nas mãos de Ronan isso se torna um espetáculo arrepiante.

Temperado por um trabalho belíssimo de trilha-sonora de Michael Brook (As Vantagens de Ser Invisível), que destaca com elegância os toques emocionais do filme, sem sentir vergonha ou fugir do apelo deles, Brooklyn é um romance encantador, um drama familiar e de amadurecimento ainda mais espetacular, e um lembrete agridoce e clássico da proposta do sonho americano – por consequência, é também uma contestação sutil do porquê ele não funciona para todo mundo. É um filme cuja fé na narrativa é charmosamente antiquada, mas cujo ponto de vista é refrescantemente moderno. E é um pedaço de cinema de tirar o fôlego, completo em sua ambição, em sua execução e no impacto que causa no espectador.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)



Brooklyn (Irlanda/Inglaterra/Canadá, 2015)
Direção: John Crowley
Roteiro: Nick Hornby, baseado na novela de Colm Tóibín
Elenco: Saoirse Ronan, Emory Cohen, Domhnall Gleeson, Jim Broadbent, Julie Walters, Fiona Glascott
111 minutos

22 de jan. de 2016

10+ filmes que Sundance 2016 vai ver (e você também deveria)

 
por Caio Coletti

Todos os anos, lá pelo mês de Maio, nós aqui d’O Anagrama puxamos um pouco o saco do Festival de Cannes, com o nosso postzinho anual de 10 filmes imperdível da seleção do festival francês. O que nos passou relativamente despercebido até agora é que existe outra festa do cinema que precisa ser notada e merece o mesmo tratamento. Sundance acontece desde 1978, em uma cidadezinha de Utah, no coração dos EUA – já é o maior festival de cinema independente americano, e a cada ano que passa a sua seleção de filmes de outros países e documentários ganha mais destaque. Acompanhar a seleção de Sundance é invariavelmente encontrar algumas pérolas indies sobre as quais falaremos o ano todo, e é a oportunidade de conhecer, também, talentos emergentes que podem estar borbulhando por baixo do radar de Hollywood. Em tempos de Oscar, é bom lembrar que existe (muito) mais cinema por aí do que o que a Academia escolhe reconhecer.



The Birth of a Nation (Nate Parker, EUA)

Nate Parker ganhou destaque na indústria como ator, em papéis coadjuvantes em Sem Escalas e Amor Fora da Lei, além do papel principal no drama romântico Nos Bastidores da Fama, elogiado filme da diretora Gina Prince-Bythewood (A Vida Secreta das Abelhas) de 2014. A estreia do moço na direção em The Birth of a Nation, no entanto, tem arrancado mais entusiasmo da crítica do que qualquer coisa que ele fez na frente das câmeras – “emprestando” o título do filme de D.W. Griffith de 1915, considerado um clássico inovador por sua contribuição para a técnica do cinema e da narrativa, mas amplamente condenado como uma história racista que transforma em heróis os integrantes da Ku Klux Klan, Parker dirige, escreve e protagoniza a história de um ex-escravo que, em 1831, tenta libertar outros cidadãos negros que estão submetidos à escravidão na Virginia, estado conservador dos EUA.

É uma história real, daquela que é considerada a rebelião de escravos mais bem-sucedida da história americana. No elenco, destacam-se Gabrielle Union (Being Mary Jane), Armie Hammer (O Cavaleiro Solitário), Penelope Ann Miller (O Artista) e Jackie Earle Haley (Watchmen).




Christine (Antonio Campos, EUA)

A história de Christine Chubbuck ficou conhecida mundialmente em 1974, quando ela desferiu um tiro na própria cabeça durante uma transmissão ao vivo do programa que comandava em uma pequena emissora da Flórida, nos EUA. Assolada pela depressão desde jovem, Christine tinha apenas 30 anos, e as muitas declarações de sua família e de seus colegas de trabalho desde então fizeram crer que a absoluta solidão afetiva, a dificuldade social e as pressões do trabalho a levaram ao ato. O filme Christine, dirigido por Antonio Campos (Simon Killer) e escrito por Craig Shilowich (Rio Congelado), foca na psique dessa personagem real perturbadora e engimática, além de sublinhar o papel da desmoralização do trabalho e dos esforços da repórter em fazer do Suncoast Digest, programa que apresentava, um pedaço sério e comprometido de jornalismo, enquanto a emissora pedia por histórias mais “suculentas” e “sangrentas” para atrair audiência.

Rebecca Hall, que já provou suas capacidades na minissérie Parade’s End e em Vicky Cristina Barcelona, de Woody Allen, aceitou o desafio de encarnar Christine; enquanto isso, Michael C. Hall (Dexter) co-estrela na pele do colega de trabalho, e uma paixão não-correspondida da jornalista, George Peter Ryan.




Goat (Andrew Neel, EUA)

Segundo filme de ficção do também documentarista Andrew Neel (Darkon), Goat é chamado, na descrição provida pelo próprio site do Festival de Sundance, de “parte neorrealismo, parte filme de horror” e “uma experiência cinematográfica tão importante quanto é brutal”. Apoiada na experiência do diretor com documentários, o filme se apóia firmemente no realismo para contar a história de um garoto de 19 anos (Ben Schnetzer, de Pride) que, depois de um ato de violência cometido contra ele, entra na faculdade e se alia a mesma “irmandade” de seu irmão mais velho, interpretado por ninguém menos que Nick Jonas. O que se segue é uma exploração dos aspectos mais violentos e brutais do que aprendemos a convencionar, na sociedade, como “a identidade masculina”. É um filme acusatório pela mera verdade que expõe, e parece ser uma experiência cinematográfica interessante.

No elenco também o jovem Danny Flaherty, que se destacou com um papel coadjuvante em The Americans. Um dos responsáveis pelo roteiro, por sua vez, é David Gordon Green, que já dirigiu filmes elogiados como Joe, além do recente Especialista em Crise.



As You Are (Miles Joris-Peyrafitte, EUA)

Filmes de amadurecimento com pré e pós-adolescente são um artigo tão frequente em Hollywood que é uma surpresa que eles não sejam um mote batido. Como As You Are prova, no entanto, há sempre novos e interessantes meios de se olhar para essa eternamente fascinante fase da nossa vida – passado durante os anos 90, o filme de estreia do diretor/roteirista Miles Joris-Peyrafitte foca em três amigos que se consideram outsiders na escola em que estudam. O filme nos conta a história dessa explosiva relação de amizade e afeição através do ponto de vista de cada um dos três protagonistas, construindo um quebra-cabeças de memórias através de seus depoimentos para uma investigação policial. Os atrês adolescentes são feitos pelos jovens talentos Owen Campbell (excelente na segunda temporada de The Americans), Charlie Heaton (Stranger Things) e Amandla Stenberg (Jogos Vorazes).

O filme, uma exploração em longa-metragem da premissa que já rendeu o curta As a Friend, do diretor Peyrafitte, ainda conta com performances coadjuvantes fortes de Scott Cohen (Allegiance) e Mary Stuart Masterson (Tomates Verdes Fritos).




Lovesong (So Yong Kim, EUA)

Uma das recentes queridinhas de Sundance, a diretora/roteirista asiático-americana So Yong Kim já está no seu terceiro filme selecionado pelo festival. Ou seja, é uma boa ideia prestar atenção à moça, de 48 anos, que já entrou por lá com In Between Days (2006) e For Ellen (2002) – a bola da vez é o drama Lovesong, a história de duas amigas que, quando saem para uma roadtrip improvisada juntas, descobrem uma nova dimensão de afeição no relacionamento entre elas. O problema é que uma delas não sabe lidar com esses novos sentimentos, e as duas acabam se afastando até 3 anos depois, quando uma delas está de casamento marcado. Riley Keough (Mad Max) entrega uma performance elogiada ao lado da co-protagonista Jena Malone (Sucker Punch), e o resumo provido pelo festival garante que, em Lovesong, “silêncio e olhares contam uma história mais completa do que diálogo explicito”.

O elenco, estrelado para os padrões de Sundance, inclui Brooklyn Decker (Battleship), Ryan Eggold (The Blacklist), Rosanna Arquette (Pulp Fiction), Amy Seimetz (Upstream Color) e até o diretor Cary Joji Fukunaga, conhecido por comandar a primeira temporada de True Detective.




Swiss Army Man (Dan Kwan, Daniel Scheinert, EUA)

Conhecidos pelos trabalhos em videoclipes, o duo formado por Dan Kwan e Daniel Scheinert (ou simplesmente “The Daniels”) marcaram muitos espectadores com obras como "Don't Stop", do Foster The People, e "Cry Like a Ghost", do Passion Pit. A estreia dos dois na direção e roteiro de um longa-metragem promete trazer a mesma carga de criatividade e energia dos clipes, contando a história improvável de um homem perdido em uma ilha deserta que, logo antes de perder as esperanças, vê um cadáver sendo carregado pelo mar para o litoral. Munido de seu novo “amigo” de uma série de recursos improváveis, a dupla parte em uma saga para levar o protagonista de volta para a mulher de seus sonhos.

No elenco tem Paul Dano (Pequena Miss Sunshine), Daniel Radcliffe (Harry Potter) e Mary Elizabeth Winstead (Scott Pilgrim), todos encarnando papeis que podem muito bem ser os mais improváveis de suas carreiras. A descrição do festival saúda o filme como “uma celebração das maravilhas e oportunidades oferecidas pelo cinema”.




Joshy (Jeff Baena, EUA)

Uma comédia dramática delicada e que não tem medo de cutucar o ego e a fragilidade masculina, Joshy chega à Sundance prometendo ser uma lufada de ar fresco em meio aos dramas mais pesados do festival. A história acompanha o personagem-título, cujo noivado termina bruscamente, dias antes da data em que o casamento estava marcado. Joshy resolve aproveitar a festa já marcada de despedida de solteiro mesmo assim, levando os poucos amigos que ainda se dispõem a ir com ele – o problema é que, concentrados em suas drogas e seus hook-ups, os tais amigos se recusam a endereçar o elefante branco que é a separação de Joshy, e conforme convidados desejáveis e não-desejáveis vão chegando e partindo, o protagonista vai ter que encontrar algum tipo de conclusão para essa etapa da sua vida.

Thomas Middleditch (Sillicon Valley) faz o protagonista, enquanto o elenco coadjuvante está lotado de talento cômico, como Adam Pally (Happy Endings), Nick Kroll (The League), Jenny Slate (Obvious Child), Lauren Graham (Gilmore Girls), Aubrey Plaza (Parks and Recreation), Joe Swanberg (O Último Sacramento), Alison Brie (Community) e Jake Johnson (New Girl).



Other People (Chris Kelly, EUA)

Um roteirista de longa data do Saturday Night Live e de séries como Broad City, Chris Kelly estreia na direção e roteirização de um longa-metragem com a história muito pessoal de um personagem que se parece muito com ele. David, o protagonista de Other People, é um escritor de comédia iniciante que se muda de Nova York de volta para sua cidade do interior dos EUA, a fim de ajudar a mãe, que está gravemente doente. Vindo do fim de um relacionamento, David se sente um peixe fora d’água, agora, com o seu pai ultra-conservador e suas irmãs mais novas – e, apesar da deterioração do estado da mãe, tenta convencer a todos (e a si mesmo) que está “indo tudo bem”. Nas palavras dos organizadores do festival, o filme de Kelly é especial porque captura a importância de pequenos momentos na dinâmica familiar, e todo o espectro de emoções que só um dia com a sua família pode trazer.

Jesse Plemons (Fargo) estrela, com Molly Shannon (Wet Hot American Summer) entregando uma performance celebrada como sua mãe, e Bradley Whitford (Trophy Wife), June Squibb (Alaska) e Paul Dooley (Insônia) completando o elenco.




Southside With You (Richard Tanne, EUA)

Southside With You é a crônica de uma tarde significativa de 1989, quando um estudante de direito de Harvard marcou um encontro com uma advogada da firma em que ambos trabalhavam. O nome dela era Michelle Robinson, e o dele Barack Obama – e apesar da pretensão para o “encontro” ter sido um evento de caridade no qual ambos deveriam comparecer pela empresa, logo fica claro que o fumante de voz suave que Michelle nunca notou na firma de advocacia está tentando impressioná-la. O épico primeiro encontro desses dois personagens significativos para a história americana é contado com habilidade e consciência pelo diretor de primeira viagem Richard Tanne, tomando muitas liberdade poéticas mas captando a essência dessas duas pessoas, iguais em poder, personalidade, ambição, intelecto e idealismo.

Tika Sumpter (The Haves and Have Nots) e Parker Sawyers (A Hora Mais Escura) estrelam em Southside With You, um filme importante para ponderar a significância desse e de tantos outros momentos para a história, principalmente agora que o segundo mandato de Obama está acabando.




Spa Night (Andrew Ahn, EUA)

O diretor Andrew Ahn estreia em longas-metragens com o promissor Spa Night, que coloca luz sobre uma comunidade pouco vista no cinema (a dos imigrantes coreanos nos EUA, especialmente em Los Angeles), e ainda os confronta com a cultura gay ocidental e as novas configurações familiares que se organizam no mundo todo. Na história, um jovem consegue trabalho em um spa para ajudar sua família, em crise financeira quando o restaurante do qual eram donos vai à falência – lá, ele descobre um submundo de sexo gay e possibilidades de relacionamentos novos que o assustam e o excitam ao mesmo tempo. Em casa, o pai machista não admite que a mãe, que conseguiu rapidamente um emprego como garçonete, seja a provedora de dinheiro para a família.

Joe Seo (Férias Frustradas) encara o difícil papel principal, enquanto Haerry Kim (Law & Order) interpreta a mãe. A descrição do festival diz que o diretor estreante Ahn, “assim como o seu protagonista, está à beira de um desenvolvimento incrível”.


Menções honrosas:

- White Girl (Elizabeth Wood, EUA): Uma garota branca e de classe privilegiada se apaixona, em meio à diversão regada a drogas das suas férias de verão, por um traficante de drogas porto-riquenho.

- Between Sea and Land (Carlos del Castillo, Colômbia): Um jovem com uma doença debilitante, preso em sua cama, sonha em visitar o mar, que se estende logo a frente de sua janela.

- Mi Amiga Del Parque (Ana Katz, Argentina/Uruguai): Uma jovem mãe se esforça para cuidar do filho recém-nascido enquanto o marido viaja a trabalho, encontrando no parque em que passei uma mãe solteira, de classe mais baixa, com a qual se conecta.

- The Lure (Agnieszka Smoczynska, Polônia): Uma família encontra duas sereias no litoral, que prometem não devorá-los. Elas se tornam vocalistas de uma nova banda no clube de dança local, mas a paixão de uma delas pelo baixista pode provocar consequências mortais.

- Sand Storm (Elite Zexer, Israel/França): Conflito de gerações em uma família muçulmana – enquanto prepara o casamento de seu marido com uma segunda esposa, Jalila descobre que sua filha mais velha, Suliman, está envolvida em um caso proibido com um garoto da universidade.

- Tallulah (Sian Heder, EUA): Uma moradora de rua (Ellen Page) “sequestra” o bebê de uma mãe negligente, e no desespero procura a única adulta responsável que conhece – sua ex-sogra (Alison Janney). Entrevista com a diretora aí embaixo.


Documentários:

- Audrie & Daisy (Bonnie Cohen, Jon Shenk, EUA): Duas garotas de idade escolar foram atacadas sexualmente por garotos que achavam ser seus amigos. Uma delas tirou a própria vida, e o filme acompanha a jornada da outra e sua descoberta sobre um caso tão semelhante ao seu.

- Author: The JT Leroy Story (Jeff Feuerzeig, EUA): Desmascarada em 2006, após 10 anos de atividade, Laura Albert publicou três celebradíssimos livros sob o pseudônimo JT Leroy – e enganou o público de tal forma, incluindo aparições públicas (conduzidas por uma atriz profissional) e amizades com grandes artistas e escritores, que seu caso até hoje caminha na linha tênue entre pseudônimo e fraude.

- Life, Animated (Roger Ross Williams, EUA): Aos três anos, Owen Suskind começou a aparesentar sinais de autismo – o único estímulo ao qual respondia eram os filmes da Disney. Um dia, seu pai perguntou a ele, com o boneco do papagaio Yago, de Aladdin, em mãos: “como é ser você?”. E Owen respondeu.

- Suited (Jason Benjamin, EUA): A empresa Bindle & Keep é uma alfaiataria inovadora – eles consideram a narrativa pessoal de cada um dos seus clientes para criar o terno perfeito, e não tem problemas em olhar para além dos gêneros binários.

- Holy Hell (Will Allen, EUA): Ao sair da faculdade, o jovem aspirante a cineasta Will Allen se juntou a um culto religioso – lá, filmou mais de 20 anos de acontecimentos chocantes e, mais tarde, da lenta deterioração e derrocada da seita. Entrevista com o diretor aí embaixo.


18 de jan. de 2016

Review: As verdades mal-escondidas de "Carol"


por Caio Coletti

O primeiro take de um filme diz muito sobre ele – nas mãos de um bom diretor, a escolha de um take inicial pode introduzir, das maneiras mais simples e simbólicas, a trama e o significado do filme que se segue a ele. Carol começa com um close em um padrão abstrato, que descobrimos ser uma calçada a partir da qual a câmera se ergue para explorar de forma elegante e clássica a Nova York dos anos 50, em uma noite qualquer. É uma decisão brilhante do diretor Todd Haynes (Não Estou Lá.), que diz muito em pouca informação visual, revelando a cuidadosa reconstituição de época empreendida pelos aspectos técnicos do filme (especialmente o trabalho fabuloso de Sandy Powell nos figurinos); a intenção estética e proposta de classicismo do filme, que empresta tantos vícios de câmera e construções de cena do cinema dos anos 40/50; e a recorrente metáfora visual das superfícies, que reflete no mundo ao redor de suas personagens principais o próprio conflito que existe dentro delas, apresentando-se de uma forma para o mundo enquanto cuidadosamente escondem o que existe por baixo dessa encenação.

Durante as duas horas de Carol, frequentemente vemos as duas protagonistas, feitas por Cate Blanchett e Rooney Mara, através de vidros manchados de verde, janelas gotejadas de chuva, espelhos de molduras luxuosas. Haynes e seu diretor de fotografia, Edward Lachman, com quem trabalha desde Longe do Paraíso (2002), conjuram um olhar sobriamente romântico da Nova York da época que retratam, lançando um realismo muito moderno sobre as idealizações que todos temos dos cenários das décadas de ouro de Hollywood. Carol é um filme ferozmente urbano, e a decadência dos quartos de hotel baratos, refeitórios de lojas de departamento, apartamentos modestos de jovens de classe média-baixa, tudo isso faz parte de sua composição visual, sempre honesta com o espectador, cujo olhar, ditado pela câmera, por vezes asssume a identidade de observador distante, e por vezes adentra na percepção dos personagens, especialmente de Therese (Rooney Mara). A encenação ditada por Haynes é econômica e abusa da movimentação dos atores ao invés de confiar na edição, abrindo espaço para Affonso Gonçalves (Indomável Sonhadora) fazer um trabalho imensamente elegante nesse campo.

O filme segue Therese, uma jovem atendente de loja de departamento na Nova York dos anos 50 que, perto da época do Natal, vê seus caminhos se cruzarem com Carol Aird (Cate Blanchett), uma dona-de-cada mais velha, casada, mãe de uma jovem menina, que mesmo assim deixa as faíscas voarem livremente desde as primeiras interações entre as duas. Carol encena essa tensão romântica e sexual que existe entre elas sem receios, mas mantem o espírito contido que é exigido de suas personagens graças ao ambiente social em que elas se encontram – o trabalho das atrizes, e da química entre elas, é reforçar e sublinhar essa nem-tão-sutil, mas obrigatoriamente discreta, atração entre as duas. Não só ambas se entregam nesse sentido, inclusive na única cena mais quente que dividem, mas ultrapassam todas as expectativas ao entenderem, de maneiras diferentes, porém complementares, os atos teatrais e verdades que se escondem por trás deles, que formam a espinha dorsal desse relacionamento complicado e inesquecível.


A presença de Blanchett em tela é quase sobrenatural. Se, no próximo dia 28 de Fevereiro, o Oscar resolver lhe garantir a terceira estatueta da carreira pela atuação, ela estará (novamente) em boas mãos – sua Carol é uma criatura extraordinária, envolvida nos exagerados casacos de pele que a figurinista Powell lhe dá como um manto de proteção, jogando e arrumando os cabelos no vento e na neve como uma estrela de cinema dos anos 40, uma Lana Turner em carne e osso. É fácil entender porque Therese se apaixona por ela, mas Blanchett também encontra os menores e mais significativos momentos para expressar o que existe por baixo de todo o charme e sedução dessa mulher misteriosa. Em uma cena especialmente marcante, Carol está ao telefone com a mulher mais jovem, e uma pergunta feita por sua interlocutora parece ser o estopim de uma reação emocional – em um trejeito que não dura mais que um segundo em tela, Blanchett agarra o telefone e muda sutilmente a expressão corporal, e é o bastante para aquele momento atingir o espectador como um soco no estômago. Em muitos outros coasos, a atriz não precisa de nada mais do que um olhar para nos comunicar quem é a mulher que ela está interpretando quando ela baixa a guarda. No filme em que está inserida, Blanchett não poderia ser uma protagonista melhor.

Não há de se diminuir a excelência de Mara, no entanto – nem relegá-la ao espaço de coadjuvante, como a Weinstein Company fez ao submeter sua atuação para o Oscar. De forma ainda mais sutil, ela constrói sua Therese e as múltiplas facetas que ela apresenta para aqueles e sua volta com cuidado, mantendo na superfície, o tempo todo, a juventude e os conflitos internos que existem dentro da personagem. Sua atuação é um trabalho muito mais nervoso, muito mais intenso (de certa forma) do que a atuação de Blanchett, e as duas se completam pela tensão e encanto que trazem, simultaneamente, ao romance principal do filme. Com a ajuda inestimável do compositor Carter Burwell (Fargo), que cria uma das trilhas-sonoras mais belas do ano, elas e o diretor Haynes transformam Carol em um caso de amor tórrido, apaixonante, calcado em detalhes e em sentimentos fugazes, sem perder de vista o realismo e o retrato social que formam o coração da trama.

A roteirista Phyllis Nagy (Mrs. Harris) adapta o romance seminal de Patricia Hishgmith com propriedade (ela era amiga pessoal da escritora), retratando a vida de mulheres lésbicas na época em que o filme se passa e o “armário” na qual elas eram obrigadas a serem mantidas se não quisessem perder o que construíram de bom na existência de heterossexualidade compulsória que levaram até então – a repressão é palpável em Carol, nos momentos menores tanto quanto na odisséria da sua personagem-título para reter a guarda da filha após o divórcio com o marido, feito por Kyle Chandler (Bloodline). Enquanto o livro é contado apenas do ponto de vista de Therese, Carol expande sua visão para cenas em que a personagem de Blanchett é vista sozinha, ou com a amiga (e ex-namorada) Abby (Sarah Paulson), ou conversando com seu advogado, a procura de um retrato mais completo da época e da provação pela qual essas mulheres passavam. Honrando o desejo da escritora de criar um romance homossexual que não seguisse as regras daqueles que eram contados na época, Carol prova que ainda há algo de vitalmente importante a ser aprendido aqui. Com seu olhar moderno e realista, mas tremendamente romântico, o filme sutilmente sugere que o apagamento e a vilanização da identidade desses personagens não ficou nos anos 50 – e com seu caso de amor elusivo e intenso, envolvente e tocante, Carol fica na memória como nenhum outro drama LGBT recente conseguiu ficar.

✰✰✰✰✰ (5/5)


Carol (Inglaterra/EUA, 2015)
Direção: Todd Haynes
Roteiro: Phyllis Nagy, baseada na novela de Patricia Highsmith
Elenco: Cate Blanchett, Rooney Mara, Kyle Chandler, Jake Lacy, Sarah Paulson, John Magaro
118 minutos

12 de jan. de 2016

Review: Quentin Tarantino cresce ainda mais (e faz um de seus melhores filmes) com "Os Oito Odiados"

 

por Caio Coletti

Quentin Tarantino não tinha completado 30 anos ainda quando ascendeu à fama com Cães de Aluguel, o thriller independente que abriu caminho para o lendário Pulp Fiction, lançado 22 anos atrás. Nas últimas duas décadas, portanto, Tarantino operou no centro dos holofotes, mesmo nos longos seis anos de pausa entre Jackie Brown (1997) e Kill Bill: Vol. 1 (2003) – quando ele voltou aos cinemas, parecia nunca ter ido embora, tamanho o hype que cercava sua nova obra. O seu processo de amadurecimento como artista escancarado para quem quisesse absorvê-lo em cada um de seus filmes, Tarantino tomou uma lenta e tortuosa estrada que o colocou, ao mesmo tempo que em uma posição vulnerável, na perspectiva única de um autor criando as particularidades e temáticas do seu universo na frente do grande público, e com eloquência infalível.

A essa altura, em Os Oito Odiados, já sabemos de cor e salteado os elementos que podemos esperar de um filme de Tarantino: os diálogos intrincados e (cada vez mais conforme a carreira foi avançando) longos; temas primordiais como a vingança do oprimido contra o opressor (mulheres e homens em À Prova de Morte, judeus e nazistas em Bastardos, escravos e escravocratas em Django); e a indelével ultra-violência niilista e ligeiramente irrealista do diretor. Esses elementos, junto com a trupe geralmente limitada de atores recorrentes nos filmes de Tarantino, faz de cada um deles uma experiência que poderia ser familiar demais – mas o diretor tira prazer em surpreender o espectador, e Os Oito Odiados não é exceção. Misturando os ingredientes de sempre, ele cria uma narrativa que é uma evolução natural de todas as temáticas e discursos que ele vem construindo na segunda parte da carreira (a partir de Kill Bill Vol. 2), e que surpreende principalmente pelo simples fato de ser tão, tão intimista.

Não que Tarantino tenha feito um drama delicado sobre as sutilezas humanas. Pelo contrário, o seu discurso é pop, atual, enérgico e esperto como sempre, mesmo que respeite muito mais as convenções e exigências do gênero em que atua (o faroeste) aqui do que em Django. Em Os Oito Odiados, os requintes de crueldade e as brincadeiras conceituais e narrativas do diretor/roteirista aparecem dentro do contexto, e não nos transportando para fora dele, e o adjetivo “intimista” é ganho pura e simplesmente pela natureza da trama, que se concentra em um rol pequeno de personagens, presos em uma única locação. O mais perto que o filme tem de um protagonista é Marquis Warren (Samuel L. Jackson), um caçador de recompensas, ex-escravo e ex-soldado das forças militares pela abolição da escravatura na Guerra Civil americana – ele topa com John Ruth (Kurt Russell), outro caçador de recompensas, que está transportando uma condenada (Jennifer Jason Leigh) para a forca. Pegos de surpresa por uma tempestade de neve, eles são obrigados a tomar abrigo em um estabelecimento à beira da estreada, onde os outros cinco “odiáveis” do título estão entocados.

É nesse confinamento que o filme toma parte na imensa maioria do tempo – de forma que uma esmagadora maioria da sua metragem é gasta com a interação entre os personagens e construindo o clima de tensão que existe entre eles. Localizado no pós-Guerra Civil, Os Oito Odiados abraça com vontade o contexto da história e lança um discurso tremendamente oportuno (e maduro) sobre racismo, machismo e as consequências da violência. Tarantino não tem pudor de colocar seus personagens usando o polêmico epiteto “nigger” para se referir ao personagem de Samuel L. Jackson, porque o desconforto racial e o contexto que existe entre os personagens fala mais alto. Em outros tempos de sua carreira, pareceria uma polêmica gratuita, enquanto hoje a escolha é sustentada pelo discurso do filme, que coloca personagens marcados, de um jeito ou de outro, pelo vicioso e racista conflito bélico que marcou a história dos EUA, e examina as suas ideias de violência, justiça, vingança e moralidade.


Tecnicamente, há de argumentar que Os Oito Odiados é também o filme mais refinado de Tarantino. Pedindo para o seu contumaz colaborar Robert Richardson fotografar o filme em Ultra Panavision 70, um processo que não era usado há quase meio século (sério, o último a usá-lo foi Khartoum, de 1966), Tarantino cria algo além de beleza estética, garantida pelo talento de Richardson – no formato ultra-widescreen de Os Oito Odiados, a ambientação quase teatral da trama se expande, a pequenez dos nossos personagens frente à natureza que se estende ao redor deles sublinhada por uma câmera que não perdoa. Na trilha-sonora, ninguém menos que o mestre dos faroestes Ennio Morricone pode ganhar um Oscar tardio (aos 88 anos!) graças ao filme, uma vez que suas composições originais adicionam tanta nuance às cenas e ao clima da história, usando notas dissonantes do piano com a maestria que só o responsável pela trilha de faroestes como Por Um Punhado de Dólares e Três Homens em Conflito poderia ter.

Samuel L. Jackson e Jennifer Jason Leigh são os destaques inevitáveis do elenco. Na pele do ex-Major Marquis, o colaborador mais frequente de Tarantino encarna o que pode ser seu melhor personagem nas mãos do diretor, emprestando tanto sua já esperada intensidade quanto uma boa dose de sutileza para a forma como expressa as particularidades desse caçador de recompensas. No espetacular monólogo em que se vinga de um ex-general da Guerra Civil conhecido por matar soldados negros, Jackson deixa que a loucura sádica absoluta do personagem transborde o bastante para mostrar o senso de justiça que existe por trás dela – é um feito difícil que Tarantino pede do seu protagonista, mas Jackson acerta em cheio. Leigh, por sua vez, na primeira colaboração com o diretor, cria a personagem mais marcante do filme: sua Daisy Domergue, que passa as quase três horas de metragem com sangue manchando o rosto e sendo abusada e maltratada pelos seus co-protagonistas, é uma criatura feral e visceral em muitos sentidos, mas é também uma mulher subjugada e julgada pelos caminhos que tomou e pelas escolhas que fez para se sentir segura (e livre) em uma sociedade que lhe permitia quase nada. Daisy tem um espírito violento e cruel, mas Leigh deixa claro onde ela o conseguiu.

Lá em 1994, pouca gente diria que Quentin Tarantino estaria fazendo um filme tão complexo (e, ao mesmo tempo, tão contido – pelo menos até o clímax) quanto Os Oito Odiados. Ainda menos gente diria que esse roteirista do Tennessee estaria escrevendo um roteiro sobre os valores fundamentais da civilização ocidental e a essencial falha que existe neles e na forma como eles foram escritos. Os Oito Odiados é tudo o que ninguém nunca esperou de Quentin Tarantino, sem perder a prerrogativa de ser uma das sessões de cinema mais verdadeiramente divertidas do ano. 22 anos mudam as pessoas – e ainda bem que mudam.

✰✰✰✰✰ (5/5)


Os Oito Odiados (The Hateful Eight, EUA, 2015)
Direção e roteiro: Quentin Tarantino
Elenco: Samuel L. Jackson, Kurt Russell, Jennifer Jason Leigh, Walton Coggins, Demián Bichir, Tim Roth, Michael Madsen, Bruce Dern, Zoë Bell, Channing Tatum
184 minutos