Review: Dirty Computer (álbum e filme)

Janelle Monáe cria a obra de arte do ano com um álbum visual espetacular - e que desafia descrições.

Os 15 melhores álbuns de 2017

Drake, Lorde e Goldfrapp são apenas três dos artistas que chegaram arrasando na nossa lista.

Review: Me Chame Pelo Seu Nome

Luca Guadagnino cria o filme mais sensual (e importante) do ano.

Review: Lady Bird: A Hora de Voar

Mais uma obra-prima da roteirista mais talentosa da nossa década.

Review: Liga da Justiça

É verdade: o novo filme da DC seria melhor se não tivesse uma Warner (e um Joss Whedon) no caminho.

31 de mai. de 2010

Pandorum (Pandorum, 2009)

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Não existe filme completamente ruim. Há tanta complexidade e detalhismo envolvidos no próprio processo de se fazer uma peça de cinema que soa quase como uma impossibilidade a existência de uma obra descartável ou repugnante em todos os aspectos. Veja Pandorum, por exemplo. Por um lado, é impossível não se ver intrigado pelo mistério que o roteiro de Travis Milloy (o ex-dublê que assumiu a posição de escritor a partir do fraco O Sorriso de Monalisa) ardilosamente propõe, ou até mesmo pela discussão que ele levanta: até que ponto, sem as amarras morais da nossa sociedade, nós somos humanos? É uma questão naturalmente fascinante que a trama trabalha com habilidade, colocando o espectador em uma paranóica viagem envernizada por cenas de ação eletrizantes, mas que pouco esclarece sobre a natureza da trama até o final chocante. Tudo isso, no entanto, é embalado de forma porca por um roteiro que não consegue fugir de alguns clichês (tanto do terror quanto da ficção científica) e por uma direção sem novidades nem ousadias. O resultado é um pacote atraente, amparado por propaganda das boas e produção requintada, mas que nunca cumpre todas as promessas que faz.

O início vai tão direto ao ponto que soa até apressado: a Elysium é uma nave destinada a colonizar o planeta Tamis, um planeta com condições perfeitas para a vida que surge como alternativa a Terra aos pedaços de um século no futuro. Acontece que o Cabo Bower (Ben Foster) e o Tenente Payton (Dennis Quaid) acordam do hiper-sono e percebem que não estão tão sozinhos quanto deveriam em seu turno na viagem de 123 anos. Com a energia da nave desligada e a entrada da ponte de comando travada, Peyton fica para trás, guiando Bower até o reator nuclear que irá reativar a nave através do rádio. Pelo caminho, no entanto, o Cabo descobre que uma parte de tripulação se transformou em monstros canibais, enquanto outra se refugia em lugares seguros, como selvagens. E o Tenente luta contra os sintomas da Pandorum, uma doença psicológica que tende a atacar tripulantes de uma espaçonave isolada de qualquer contato com a Terra destruída. Na intrincada trama, quase nada é o que parece e a sensação de desorientação que o hiper-sono prolongado causou nos protagonistas é estendida de forma habilidosa ao espectador.

Enfim, a verdade é que Milloy mostra-se habilidoso ao carregar uma narrativa coesa e interativa entre suas partes. É uma charada intrigante que vai se desenrolando vagarosamente, quase como uma trama de mistério literária moldada por mãos habilidosas como as de Agatha Christie ou Sir Arthur Conan Doyle. Uma pena que a sutileza não seja a mesma ao tratar a parte mais, digamos assim, entretida da narrativa. Lançando mão de convenções e sem a delicadeza de criar um clima de suspense decente antes de nos apresentar os monstos, Milloy e o diretor Christian Alvart juntam-se para matar todo o impacto e a atmosfera que Pandorum poderia e deveria ter. De um potencial novo Alien, Alvart tira um relaxado terror gore com pitadas do tribalismo do recente Juizo Final que deve agradar aos fãs de Jogos Mortais, e a mais ninguém. Nem um elenco afinado consegue salvar tanto descaminho na direção.

O destaque aqui é Ben Foster, que vem entregando atuações concentradas e impressionantes desde Refém, ao lado de Bruce Willis, mas começou a ser reconhecido com a performance no recente O Mensageiro, em que contracena com Woody Harrelson e Steve Buscemi. Na pele do Cabo Bower, ele empresta credibilidade a um papel destoante, que varia entre pólos quase opostos de personalidade (em uma rara inconsistência da parte do roteiro de Milloy), e quase consegue unir esses dois extremos em um protagonista cativante e digno do próprio mistério da trama. Ao lado de um Dennis Quaid ligeiramente menos canastrão que o normal e um Cam Gigandet (o Cabo Gallo aqui e o James de Crepúsculo) que encarna seu personagem nas cores fortes de sempre, Ben se destaca ainda mais do que o normal. Isso sem contar que é raro vê-lo em um papel de tamanho espaço na narrativa.

Ainda assim, Pandorum é um filme de premissa interessante que, da forma desafortunada que é usual das peças mal-conduzidas, termina sem o refinamento que seria necessário para a questão que levanta ecoar na sensibilidade do espectador.

Nota: 6,5

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Pandorum (Pandorum, EUA/Alemanha, 2009)

Uma produção da Constantin Film/Impact Pictures…

Dirigido por Christian Alvart…

Escritor por Travis Milloy…

Estrelando Dennis Quaid, Ben Foster, Cam Gigandet, Antje Traue, Cung Lee…

108 minutos

26 de mai. de 2010

Cannes 2010 – Polêmicas, protestos e a participação brasileira na Riviére Francesa

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A premiação estava cada vez mais próxima e Mike Leigh despontava cada vez mais favorito com seu sensível Another Year (favoritismo que, hoje, sabemos frustrado) mas, antes que o “melhor do cinema mundial” fosse celebrado em Cannes, muita conversa séria ainda haveria de rolar. Afinal, cinema, engajamento e arte (e Cannes, quase sinônimo para tudo isso) não são feitos só de festa.

O caso Jafar Panahi

Iraniano, vencedor da Camera D’Or em 1995 por O Balão Branco e do prêmio da seleção alternativa Un Certain Regard em 2003 por Crimson Gold, Jafar Panahi era um dos selecionados do Festival 2010 para compor o júri encabeçado por Tim Burton. Acontece que, em 2 de Março último, dois meses antes do começo da festa, Panahi foi preso pelo governo Mahmoud Ahmadinejad, acusado de estar preparando um filme contra o regime do presidente, e não havia qualquer indicação de sua soltura até o início do festival. O resultado: o caso do cineasta virou assunto recorrente nas entrevistas e mobilizações de Cannes.

Também iraniano, Abbas Kiarostami iniciou a entrevista coletiva dedicada ao divisor de opiniões Copie Conforme, estrelado por Juliette Binoche, protestando contra a repressão artística em seu país natal. Outros cineastas do país assinaram uma carta aberta que pedia pela libertação de Panahi, e um petição online inciada por brasileiros pedia o cancelamento das premiações de Cannes enquanto o cineasta não fosse solto. Na carta para a família que mandou no último dia 19, Panahi declarou: “Não tenho comido nem bebido nada desde domingo de manhã, e declaro que, se minhas vontades não forem respeitadas, continuarei com essa postura. Não quero ser um rato de laboratório, vítima de jogos doentios, ameaçado e torturado psicologicamente”.

Benfeitorias e polêmicas

Já é tradição a maior concentração de celebridades por metro quadrado em Cannes ser na festa da amfAR, a Fundação de Pesquisas sobre a Aids. Com a responsabilidade de seguir Sharon Stone como a apresentadora principal do evento, Marion Cotillard (Nine) contou com a ajuda de Alan Cumming, conhecido por aqui como o Floop de Pequenos Espiões, para levar a arrecadação a impressionantes 6,7 milhões de dólares, que ajudarão nas pesquisas em busca da cura da síndrome. De novidade mesmo, só o desfile paralelo de beldades pela passarela, cedendo roupas usadas para um leilão destinado a ajudar o Haiti. Jennifer Lopez, Salma Hayek, Penélope Cruz, Charlize Theron, Diane Kruger, Demi Moore e Gwyneth Paltrow foram algumas que leiloaram roupas usadas em premiações passadas.

Enquanto o clima luxuoso ainda pairava sobre a reunião de estrelas por uma boa causa, no entanto, a exibição de Hors la Loi, obra sobre a independência da Argélia realizada pelo cineasta francês Rachid Bouchareb, foi responsável pelos momentos mais tensos do Festival. Os aplausos após a sessão para a imprensa não abafaram o protesto do lado de fora da sala de projeção, e um forte esquema de segurança precisou ser montado na entrada da sessão. A relação tensa da França com suas ex-colônias e especialmente com a Argélia, independente apenas 1962, fez o diretor emitir uma carta aberta dizendo que sua intenção era começar uma “serena discussão de ideias” em relação ao assunto.

O Brasil em Cannes

Espremido em um tempo entre as estréias do dia 18 e as coletivas de imprensa dos filmes exibidos, 5X Favela – Agora Por Nós Mesmos, não fez tanto barulho quanto prometeu, mas deu espaço aos diretores dos cindo curtas-metragens que compõe o filme de se expressarem sobre as intenções de suas realizações. Estruturado e entitulado em referência a um dos filmes seminais do Cinema Novo, a coleção de curtas Cinco Vezes Favela, em que realizadores jovens de classe média davam sua visão sobre a pobreza dessas comunidades, a nova obra é uma visão mais otimista e alternativa do que se sabe sobre as favelas brasileiras. Escrita, dirigida e atuada por membros da comunidade, a coletânea de visões de diferentes comunidades cariocas conta com histórias consideras perdoavelmente ingênuas, mas infalivelmente eficientes em mostrar um lado das favelas pouco conhecido tanto fora quando dentro do Brasil.

Em vertente oposta do nosso cinema, a Quinzena dos Realizadores acolheu A Alegria, longa-metragem dos jovens Marina Meliande e Felipe Bragança, uma mistura de drama com fantasia, centrado no mundo imaginário da adolescente Luiza. Usando linguagem subjetiva, sensibilidade a flor da pele e se conectando com produções como Os Famosos e os Duendes da Morte e As Melhores Coisas do Mundo, o filme recebeu aplausos tímidos, graças a falta de ritmo e preparação de elenco. Mas o destaque mesmo veio da seleção oficial de curtas-metragens disputando a Palma de Ouro, com Márcia Faria e sua estreia em Estação sendo calorosamente recebido pelo público do Festival. A história mostra uma garota que chega em São Paulo e Brasília e acaba se instalando na Rodoviária do Tietê.

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Entre aquele Cinco Vezes Favela e este, há quase cinqüenta anos. Muita coisa mudou: o mundo, o Brasil, o cinema e a própria favela. Nosso primeiro filme era um projeto generoso, antenado, mas feito por jovens de classe média. Este novo é uma visão por dentro, em que esses diretores tentam construir sua identidade”

(Cacá Diegues, coordenador do projeto, compara os dois “5X Favela”)

Como todo mundo está cansado de ver favela no cinema, eu quis humanizar os estereótipos que ainda existem sobre os moradores. Há um conflito entre amigos, mas não um conflito de classes, não é uma história de ódio. Já vivi situações como ser obrigado a dar calote no ônibus, mas meu personagem não podia ser depreciativo. Não é um cara de baixa auto-estima, é um rapaz inteligente que não perde sua originalidade”

(Wagner Novais, ator do segmento “Fonte de Renda”, discute estereótipos)

24 de mai. de 2010

Cannes 2010 – Os premiados, en fin!

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Palma de Ouro – Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives (Tailândia)

Quando meio mundo virava os olhos para Mike Leigh, que poderia ter levado sua segunda Palma por Another Year e alguns outros apostavam em Alejandro Iñárritu e Biutiful, Cannes jogou uma carta inesperada. Premiado na mostra Un Certain Regard em 2002 e vencedor do prêmio do júri em 2004, com seu Tropical Malady, o tailandês Apichatpong Weerasethakul subiu ao palco para receber a Palma de Ouro de Cannes 2010 ao mesmo tempo como uma zebra e uma escolha mais do que merecida. Apaludido entusiasticamente em sua exibição no dia 20, Uncle Boonmee retrata um homem que se cerca das pessoas que ama, em uma cabana isolada no meio da selva, quando descobre que seus rins pararam de funcionar, acelerando sua morte. Comparecem a essa última “confraternização” a esposa, morta há anos, e o filho, desaparecido, que é simbolizado por um macaco de olhos brilhantes.

Com a trama budista-espiritista e as texturas fortes do cinema sensorial de Weerasethakul, o filme parece ter agradado em cheio ao presidente do júri Tim Burton, confirmando que os prêmios de Cannes, quase sempre, saem a semelhança de quem comanda o julgamento. Ainda bem que o diretor foi sagaz o bastante para reconhecer isso em seu discurso, com um final um tanto quanto lisongeiro em relação a Burton. “Este é como outro mundo para mim, é meio surreal. Acho que é um momento importante para o cinema tailandês. O prêmio é para vocês. Gostaria de beijar todos vocês do júri, principalmente Tim Burton, porque gosto de seu corte de cabelo”.

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Prêmio de Atuação FemininaJuliette Binoche, por Copie Conforme (França)

Prêmio de Atuação MasculinaJavier Bardem, por Biutiful (Espanha)

Uma francesa e um estrangeiro. A disposição do ano passado, em que Charlotte Gainsbourg levou por Anticristo fazendo companhia ao unânime (e austríaco) Christoph Waltz pelo Coronel nazista de Bastardos Inglórios, prevaleceu também nessa edição 2010 de Cannes. Estampada no cartaz oficial do evento, a sempre encantadora Juliette Binoche surgiu como uma surpresa faturando a Palma de Melhor Atuação Feminina por sua participação na produção multi-nacional Copie Conforme. Rodado em Florença, co-estrelado pelo britânico William Shimell e dirigido por Abbas Kiarostami, o nome mais conhecido do apreciado cinema iraniano, o filme sobre um escritor e uma fã que discutem filosofias de vida e a validez de”uma cópia bem-feita” (ou certificada, como o título sugere) se reveza entre três línguas e Binoche na pele de uma adorável francesinha. Papel que cai bem ao seu talento e carisma e que lhe rende o primeiro e merecido prêmio em Cannes.

Se não bastasse só um reconhecimento um tanto tardio para Cannes 2010, o outro premiado nas categorias de atuação foi Javier Bardem, já detentor de um Oscar por seu psicótico no filme dos irmãos Coen, Onde os Fracos Não Têm Vez. Dessa vez ele impressionou até os franceses, que não puderam deixar de reconhecer a intensidade de sua atuação como o desafortunado Uxbal de Biutiful, dirigido pelo mexicano Alejandro Gonzáles Iñárritu. Sua atuação é o centro nervoso do filme e o coração que bate por trás das histórias quase sempre mecânicas do diretor. Mas nada de unanimidade para ele, no entanto. O prêmio (e um pouco dos holofotes) teve de ser dividido com o italiano Elio Germano, que emocionou a platéia com sua composição do capataz que vê sua vida mudar em La Nostra Vita, de Danniele Luchetti. Em seu país, Germano é até comparado ao Robert DeNiro dos anos 1970, época de Taxi Driver e Touro Indomável.

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Grand Prix  do Júri Ecumênico – Des Hommes et des Dieux (França)

Prêmio do Júri – Um Homme qui Crie (Bélgica)

Historicamente, em Cannes, os prêmios dos dois Júris (o ecumênico e o principal) são distribuídos a produções que teriam pouca chance no mercado regular, seja por sua origem, temática ou estilo alternativo, dando a essas produções uma chance de se revelarem, senão ao grande público, ao menos a uma platéia maior do que teriam naturalmente. Às vezes, como no ano passado, em que o drama de prisão Un Prophéte levou o certificado, o prêmio fica com gosto de consolação para os que ficam a margem do vencedor da Palma de Ouro. No caso de Cannes 2010, o resultado foi uma mistura dessas duas coisas. O Júri Ecumênico favoreceu o time da casa, dando ao burocrátivo Des Hommes et des Dieux, do francês Xavier Beauvois, um prêmio que, apesar de diplomático, acaba se mostrando, em última instântica, óbvio.

Uma vez que o Grand Prix é feito para premiar filmes com fundos humanitários e denúncia social, nada mais natural do que laurear uma obra contundente (apesar de nunca ousada) sobre um grupo de frades católicos que se dá bem com a população mçulmana de uma região belga e luta pelos direitos dessa população até a morte. Muito mais condizente, no entanto, teria sido ceder a dupla glória a Mahamat-Saleh Haroun, cineasta de origem africana que fez um filme sobre o conflito bélico em Chade, seu país natal, à beira de uma Guerra Civil. Financiado pela Bélgica, o drama impressionou boa parte dos críticos e levou o prêmio concedido pelo júri principal, em mais uma demonstração de sagacidade e isenção de preconceitos de Tim Burton e seus asseclas.

Prêmio de DireçãoMathieu Almaric, por Tournée (França)

Prêmio da Crítica (FIPRESCI) – Tournée (França)

No final das contas, quem saiu mesmo com dois prêmios na mão foi Mathieu Almaric, conhecido por aqui como o vilão de 007 – Quantum of Solace, que atacou de diretor pela terceira vez em longas de ficção com um retrato do novo burlesco em Tournée, considerado por muitos o filme mais divertido (e mais bem-estruturado) do festival. Estrelado por  verdadeiros artistas dessa espécie de espetáculo e contando a história de uma trupe comandada por um ex-trambiqueiro que pretente realizar um tour por toda a França, Tournée aposta em uma obra sem mensagens, feita para apresentar um mundo de arte, deslumbramento e diversão a um público acostumado com dramas sisudos e pesados. A ousadia de quebrar os padrões de Cannes rendeu a Almaric o prêmio de direção do festival, que não ia para um cineasta francês desde (pasmem), 1995, quando outro ator-diretor de nome parecido, Mathieu Kassovitz, levou a Palma por O Ódio. O curioso é observar que Kassovitz e Almaric, além do primeiro nome, tem em comum o crédito em Munique, obra de 2005 de Steven Spielberg, como coadjuvantes de Daniel Craig e Eric Bana.

Quem também apreciou a visão de Almaric sobre o burlesco foi a crítica, que laureou Tournée como seu preferido de Cannes 2010. Os prêmios da FIPRESCI, formada por críticos de diferentes países que mudam a cada edição, ainda louvaram o hispano-marroquino Todos Vós Sodes Capitáns, documentário do jovem e estreante diretor espanhol Oliver Laxe. Para completar a lista de prêmios da seleção principal, o coreano Poetry, apesar das críticas que recebeu a ocasião de sua exibição para a crítica, acabou levando o troféu de melhor roteiro para o também diretor Lee Chang-Dong, mais conhecido por seu anterior, Secret Sunshine.

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Prêmio Un Certain Regard – Ha-Ha-Ha (Coréia do Sul)

Prêmio do Júri Un Certain Regard – Octubre (Peru)

Prêmio de Elenco Un Certain Regard – Los Labios (Argentina)

Em uma edição em que o cinema asiático, depois de anos relegado a exibições recebidas com frieza, acabou saindo como o maior vitorioso, nada mais contundente do que fazer de um filme coreano o grande ganhador da sempre alternativa mostra Un Certain Regard. Para quem gosta de cinema de arte, a seleção paralela é um prato cheio, e ao que tudo indica a seleção de HaHaHa, comédia coreana do diretor e roteirista Sang-soo Hong, mereceu a vitória cedida pelo júri chefiado pela diretora Claire Denis. O filme sobre dois amigos que descobrem ter passado um verão muito parecido em uma cidade turística pouco conhecida da Coréia em sua reunião de despedida (um deles vai partir ao Canadá) dividiu as atenções com a produção latino-americana de Octubre, premiado com o troféu do júri, e Los Labios, que levou pelo espetacular elenco feminino, condutor da trama sobre três mulheres que viajam a um lugar distante na procura de trabalho, ainda que ilegal. Estreantes, os diretores Santigao Loza e Ivan Fund representam uma nova geração do cinema argentino que vem fazendo sucesso no cirtuito de festivais internacionais.

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P.S.: Na França, Cannes acabou. Mas, aqui no Anagrama, ele tem mais uma semana inteira para brilhar. Tudo, ou quase tudo que rolou por lá, vai acabar aparecendo por aqui. Aguardem!

Eu não cheguei a ver outros filmes de Apichatpong Weerasethakul, mas vários outros membros do júri conheciam o seu trabalho. O que eu realmente gosto em Cannes é ter acesso a filmes que não são fáceis de se ver em nenhum outro lugar. Esse é um filme de fantasia, mas tem algumas coisas que eu nunca vi antes” – Tim Burton

A lista de vencedores desse ano é muito ampla. Juntos, nós conseguimos encontrar um tipo de balanço entre filmes mais radicais e trabalhos de grande escala. A lista incui todo tipo de filme de todos os lugares do mundo” – Alexandre Desplat

Um prêmio é como um consenso, como na política. Mas o verdadeiro juiz é o tempo. Ideias vem e vão, e os filmes ficam. É possível que no futuro apenas um filme desses premiados seja lembrado. E se esse for o caso, nós nos deculpamos” – Victor Erice

Nós tentamos inventar novos prêmios, mas não foi possível! Os filmes que acabaram não ganhando nada também tiveram defensores no júri” – Kate Beckinsale

Para um escritor, é tentador contar tudo o que aconteceu em detalhes nesses dez dias. A única coisa que estava faltando, de um ponto de vista dramatúrgico, era um cara mau” – Emmanuel Carrère

(Em clima de paz, o Júri fecha os trabalhos em Cannes 2010)

22 de mai. de 2010

Galeria – Todos pela Palma: os destaques da seleção principal de Cannes 2010

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Another Year (Mike Leigh, Inglaterra)

A foto: Os atores Jim Broadbent, Ruth Sheen e Oliver Matlman, esse último um coadjuvante usual do diretor/autor britânico Mike Leigh, fazem pose em uma das passagens de Another Year, drama familiar divido em “estações do ano”.

O hype: Sem um filme em Cannes desde 2002 e vendo sua Palma de Ouro por Segredos e Mentiras quase uma década e maia no passado, Mike Leigh enfrentou a expectativa alta de ser um dos nomes mais conhecidos da selação oficial desse ano, e não decepcionou quem foi conferir Another Year no último dia 15. A performance do elenco é tão boa que a coadjuvante Lesley Manville, pouquíssimo conhecida por aqui e parceira do diretor desde High Hopes, de 1988, despontou como a primeira grade favorita ao prêmio de Melhor Atriz. O conhecido método do diretor, que constrói os personagens como em uma trupe de teatro, com a participação constante dos atores, parece ter funcionado bem dessa vez. Como todo seu conjunto, aliás: Another Year foi apontado por muitos como o primeiro grande favorito ao prêmio principal do ano.

A trama: O centro da história é o casal Tom (Jim Broadbent) e Gerri (Ruth Sheen), com quatro décadas de casamento, conhecendo-se e respeitando-se mútua e plenamente. O roteiro segue essa dupla pelas quatro estações de “mais um ano” (another year, em inglês) enquanto eles têm que se acertar com os amigos, a secretária (Lesley Manville) e o filho boa-praça (Oliver Maltman).

O filme, segundo o diretor: “O filme é sobre como nós nos acertamos com a vida, como nós encaramos a nós mesmos e aos outros, como aceitamos o que somos e essa luta. Eu não acho que é um filme que apresenta soluções fáceis, e sim um filme que nos passa emoções e pensamentos sobre como lidamos com a vida” – Mike Leigh

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Biutiful (Alejandro González Iñárritu, México/Espanha)

A foto: Orientação no set de Biutiful, drama espanhol que marca a primeira direção de Alejandro González Iñárritu (a direita) sem o apoio do roteirista Guillermo Arriaga e com o peso da indicação ao Oscar por Babel. Desta vez, porém, ele tem a ajuda de niguém menos que Javier Bardem.

O hype: É fato que Cannes sempre gostou muito do cinema de cores fortes de Iñárritu. O filme que o revelou, Amores Brutos, ganhou o prêmio da crítica em 2000. Seis anos depois, o furacão Babel o garantiu o troféu do júri e a certificação de melhor direção. Agora, ele vem com um filme que quebra com o esperado de uma obra com sua assinatura: em vez das histórias múltiplas conectadas e do multiculturalismo de suas peças anteriores, em Biutiful vemos uma história simples, que engloba os temas pelos quais Iñárritu já se confessou “obcecado” (leia-se imigração ilegal, problemas sociais e a “desumanização” da nossa sociedade) em apenas um personagem e em seus arredores. Javier Bardem despontou como o favorito para o prêmio de Melhor Ator na pele do protagonista, isso se o filme não for para metas maiores (na regra de Cannes, o vencedor da Palma de Júri não pode ganhar prêmios secundários). Munição para isso Iñárritu tem de sobra.

A trama: O protagonista Uxbal (Javier Bardem) é um contrabandista de pequenos produtos e um sensitivo, que vê pessoas mortas e cuida sozinho de dois filhos em um apartamento minúsculo em Barcelona. Ele vê sua vida vir a terra quando reencontra com um amigo de infância que se tornou policial e descobre um câncer em estado avançado, com poucas opções de tratamento.

O filme, segundo o diretor:Biutiful é o primeiro filme com o qual eu fiquei totalemnte satisfeito. Antes, eu fazia histórias complicadas para dizer algo simples sobre a vida. Desta vez, tenho uma história simples que quer dizer algo complexo sobre a existência. É um desafio diferente de tudo o que já fiz, mas que traz de volta os mesmos elementos. É como se eu fosse uma árvore que dá maçãs, ou seja, nunca vou poder fabricar algo que não seja maçãs” – Alejandro G. Iñárritu

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Fair Game (Doug Liman, EUA)

A foto: A dupla em cena já é explosiva por natureza, mas a trama extremamente política de Fair Game, baseado em um caso real da administração Bush, ajuda Sean Penn e Naomi Watts a entregar suas performances perfeitas de sempre sob a vigilância da câmera inquieta da Doug Liman.

O hype: Houve quem disesse que Fair Game estava na lista da competição principal do ano apenas para representar a produção americana em Cannes. De fato, o thriller do diretor Doug Liman (mais conhecido por filmes de ação como A Identidade Bourne e Jumper) passou como pouco mais do que bom entretenimento interpretado por dois bons atores. Naomi Watts, num ano de poucas estrelas em Cannes, foi o furor dos fotógrafos na ausência de Sean Penn (dedicando todo o seu tempo a campanha pela reconstrução do Haiti), mas o centro das atenções depois dos contidos aplausos ao fim da sessão foram mesmo sobre o diretor Liman. Afirmando que dirigiu o filme pela importância do ultrajante caso real em que se baseia, mas que o via mais como um drama de casal do que como um filme que quer discutir política. A afirmação foi reiterada pela crítica, muito frequentemente como ponto negativo.

A trama: Na paranóia pós-11/09, Valerie Plame (Naomi Watts) é uma agente da CIA sob disfarce no Oriente Médio, que tem sua posição comprometida supostamente por alguém de dentro da Casa Branca depois de seu marido, o diplomata Joe Wilson (Sean Penn) escrever um editorial para o The New York Times desmentindo a existência de armas de destruição em massa no Iraque.

O filme, segundo o diretor:É um filme de mentiras e verdades. Contra uma história verdadeira, que considero importante contar. Mas o filme não é um manifesto político. Não aproximamos esse filme da política, mas da história de dois personagens que se viram no centro de uma incrível história política. Plame era uma espiã fascinante e Wilson é um personagem forte. O casal se viu no meio de um furacão político, e penso que a história deles é incrível” – Doug Liman

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Outrage (Takeshi Kitano, Japão)

A foto: Um dos cineastas mais pop do Oriente, Kitano (à esquerda), tradicionalmente um ator-diretor encara sua própria câmera ao lado de Ryo Kase, conhecido por aqui como um dos combatentes de Clint Eastwood em Cartas de Iwo Jima.

O hype: Espécie de Clint Eastwood de seu país, Kitano tem um estilo que está muito mais para Tarantino do que para o recém-completado octagenário diretor-ator. Ao mesmo tempo que quase sempre aparece na frente das câmeras de suas obras, Kitano impõe muita violência, um humor um tanto cruel e uma caricatura ao mesmo tempo incômoda e prazeroza no novo Outrage, sua volta ao universo da máfia japonesa. Se Brother é, até hoje, sou filme mais reconhecido no Ocidente ao lado do premiado Fogos de Artifício e do subseqüente Verão Feliz, esse último marca sua única seleção para Cannes antes da edição 2010. Acontece que muita gente achou que Kitano realizou um filme preguiçoso que foi selecionado apenas por seu glorioso currículo, sempre festejado entre a crítica, enquanto uma outra parcela da platéia viu no filme uma sátira ao filme de máfia clássico, feito por alguém que entende do riscado. De qualquer forma, não deve ir para as pontas.

A trama: O roteiro de Kitano pula de personagem em personagem, mas se é para apontar um único protagonista, que seja Otomo (o próprio diretor), veterano da Yakuza que é assistido por um súdito bem mais jovem (Ryo Kase) em sua escalada de vingança, violência e traição para ficar no topo da hierarquia de famílias da Yakuza.

O filme, segundo o diretor:Me sinto confiante em filmar violência, é um prato que estou sempre pronto para preparar. Quando faço isso, é com a intenção de fazer a platéia sofrer de verdade. Nunca filmei e jamais irei filmar a violência como em um videogame” – Takeshi Kitano

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Tudo partiu de um livro da escritora francesa Collette. Nele, ela relata sua experiência nas viagens pelo país com seu espetáculo. Então, como Bob Fosse (diretor do clássico All That Jazz), quis falar da dureza da vida nesses bastidores, mas também, em geral, com muita festa contagiante. E houve esse artigo no jornal Liberation sobre o novo burlesco. Me fascinei pelos produtores, por sua coragem. Juntou tudo isso e achei que valia um filme. Não acho que deveria haver uma mensagem. E só há 17 minutos de shows no filme. Eles são atores de verdade. Exibi para o pessoal da Comédie Française para mostrar o que é atuação de verdade”

(Mathieu Almaric, protagonista e diretor, fala de “Tournée”)

17 de mai. de 2010

Sobre… – As redes sociais

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orkut.com.br

Uma das primeiras grandes manias da geração das redes sociais, o Orkut vem com fôlego desde 2004, provando que sites de relacionamento não precisam ser apenas modinhas passageiras. Criado pelo engenheiro turco Orkut Büyükkökten, todo o projeto do site, segundo o próprio, teve base na famosa teoria dos “seis graus de separação”, que diz que qualquer pessoa pode ser ligada a qualquer outra no mundo através de, no máximo, outras cinco. Desde processos envolvendo racismo e pirataria até problemas de segurança, muita gente já classificou o Orkut como uma rede social ultrapassada. O sucesso do novo layout do site, lançado em 2009 pela Google, por outro lado, mostra que, mesmo com o surgimento de alternativas para a conexão social na internet, o Orkut ainda é a morada primária da grande maioria dos navegadores virtuais.

Perfis do Anagrama: Perfil Particular - Caio Coletti  - Perfil do Blog – Caio Coletti

Perfis amigos: Renan Barreto - Vinícius Cortez - Bruno Dias - Aninha Menezes (Bones) - Nat Valarini - Rubens Medeyros - Marcelo Antunes - Babi Leão

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Certas coisas começam banais e terminam essenciais. O Twitter, hoje rotina de boa parte dos mais ligados virtualmente, começou carreira na rede como um site de proposta um tanto quanto, assim digamos, fútil: em 140 caracteres, cada um “twittaria” o que está fazendo. Se o criador do site, o americano Jack Dorsey, acreditava que essa simples proposta um dia chegaria ao modo mais fácil de circular informação (importante ou não) pela internet, não sabemos, mas é fato que o Twitter é hoje essencial para quem quer estar por dentro do que acontece na rede e, muito freqüentemente, no mundo. Talvez o site de relacionamentos com o maior número de celebridades (do ator Ashton Kutcher, lotado de seguidores, até o piloto brasileiro Rubens Barrichello, passando por ex-BBBs, apresentadores de TV e ídolos adolescentes), o Twitter é uma oportunidade e tanto para divulgar blogs e trabalhos em geral colocados na internet e, hoje, é o ponto de encontro primário de todo mundo que faz barulho no mundo virtual. E, porque não, no real também.

Perfil do Anagrama: @caiocoletti

Perfis amigos: @fabio2c - @luesadl - @babileao_7 - @nataliavalarini - @jaimeguimaraess - @brunobaxter - @vinyseven - @aninhapsm - @rubensmedeyros - @marceloantunes - @Renan_Barreto - @rubensrodrigues

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formspring.me

Lançado no final de 2009, a rede social que se conecta com o Facebook e com o Twitter se tornou um sucesso instantâneo entre os twitteiros, que enxergaram no novo site uma forma mais simples de se comunicar através de perguntas e respostas. Com menos celebridades que o Twitter e uma movimentação mais lenta de informação, porém, o popular “forms” acabou ficando um pouco de lado para a maioria dos internautas, ainda que continue sendo uma forma bastante interessante de saber mais e conhecer melhor amigos (sejam eles virtuais ou “concretos”, dos que vemos todos os dias e, ainda assim, sobre os quais não sabemos tanto quanto pensamos). Diversas polêmicas já atingiram a relativamente recente rede social: uma briga marcada pelo site, uma garota que se suicidou após várias perguntas humilhantes dos colegas e até um boato de que a rede era apenas fachada para a obtenção de informação por parte de hackers. Boato logo desmentido, é claro.

Perfil do Anagrama: Caio Coletti

Perfis amigos: Renan Barreto - Nat Valarini - Jaime Guimarães - Rubens Rodrigues - Vinícius Neves - Babi LeãoLuEsMarcelo Antunes

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skoob.com.br // blip.fm

A mania das redes sociais está indo tão longe que recentemente a moda é lançá-las com orientação não mais geral, e sim temática. Caso do Skoob, uma rede social legitimamente brasileira, criada pelo desenvolvedor Lindenberg Moreira com a inteligente proposta de reunir leitores do país inteiro em uma rede de conexões completamente dedicada a literatura. Na troca de gostos, resenhas, diários de leitura ou trocando livros, é uma oportunidade e tanto pra quem gosta desse mundo. O Blip.fm, por outro lado, é um espaço completamente dedicado a música. Tratando cada usuário como um DJ e desenvolvendo modos engenhosos de conectá-lo a outros cadastrados com gosto semelhante (ou não), o site é inteligente e funciona perfeitamente para quem quer conhecer bandas e músicas novas, para quem está aberto a novas visões ou simplesmente para quem quer um lugar para compartilhar informações musicais.

Perfis do Anagrama: Caio Coletti (blip.fm) - Caio Coletti (skoob)

Perfis amigos: Marcelo Antunes (blip.fm) - Marcelo Antunes (skoob) - LuEs (skoob)

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Acabando de passar uma manhã inteira de minha vida lendo todos os mínimos detalhes das manhãs de outras pessoas, eu me dei conta de como coisinhas pequenas como o Twitter, o Facebook ou mesmo o FriendFeed de fato contribuem para a vida de uma pessoa: é como se sentar em uma sala cheia de pessoas com síndrome de Tourette e déficit de atenção, narcisistas e entupidas de cafeína, que tentam te entreter. E, convenhamos, o que há de tão social em um monólogo?”

(Katherine Berry, do pajamasmedia.com, faz seu próprio monólogo)

P.S.: O Anagrama teve a honra de receber do Mateus Souza, do brilhante blog Cinema Para Desocupados esse selo, o Prêmio Dardos, que tem a pretensão de lourear blogs “que se preocupam em transmitir valores culturais éticos, literários, pessoais, etc, etc…”. A missão do Anagrama é repassá-lo para alguns outros blogs. Protanto, desde já me desculpo pelos esquecimentos, mas esse vai para:

 Cinecabeça, o blog da Cíntia Carvalho, recém-reativado, que continua falando brilhantemente de cinema, sempre minha arte maior e meu oxigênio. Continue nos dando suas doses de talento!

 bones-cinema-tv, da amiga Aninha Menezes, a Bones, que fala também sobre cinema, com alguma ênfase em séries de TV, tudo escrito no estilo personalíssimo de sua autora.

 Revista Sunshine, o blog da publicação online para a qual venho colaborando desde ano passado, agora sob a batuta habilidosa do Rubens Medeyros e com uma super-equipe de escritores, da qual tenho orgulho de fazer parte.

14 de mai. de 2010

A Verdade, por Caio Coletti

Conto (nunk excl)a verdade 1

Então, essa era a verdade. Eu a via a minha frente tão clara quanto o nascer do Sol, e mesmo que soubesse que amanhã, talvez, ela fosse diferente, aproveitava cada minuto em que podia caminhar com um destino um pouco mais do que certo. Ia a frente apenas, ainda sem saber o que esperar, mas agora, mais do que em qualquer tempo ou lugar, sem nada a temer.

Eram os olhos dela que me guiavam, aqueles caramelos brilhantes incrustados em uma expressão ora severa, ora doce. Mas eu sabia que, não importa o quanto as palavras que saíam daquela boca pudessem machucar, aquele coração batia querendo meu bem. O nosso bem. Eu me alegrava em me entristecer, ao menos enquanto corria a caneta pelo papel tentando descrever o indescritível e decifrar o indecifrável, porque os caminhos tortuosos levam aos lugares melhores.

Sim, essa era a verdade, e quem me contava era sua voz melodiosa, que entoava cantigas de outros tempos e fazia promessas que, eu sabia, não poderia cumprir. Ainda assim, não podia fazer nada além de sorrir e prometer também, embriagado pela plácida beleza do seu sorriso ambíguo, entre zombeteiro e sonhador. E eu acompanhava as linhas angulosas do seu rosto pequeno, o andar lânguido e elegante de quem não se importava com os perigos que vinham a frente, e sabia que olhava para o espelho do meu ideal.

A verdade era ela. Uma garota de olhos castanhos, boca pequena, eterna e belamente contemplado as sutis estranhezas da vida, que me sorria e prometia sem pensar. Seu nome pouco importava. Mesmo porque, para mim, e só para mim, ela sempre se chamaria destino.

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A denúncia de José Dias alvoroçara-me, a lição do velho coqueiro também, a vista dos nossos nomes abertos por ela no muro do quintal deu-me grande abalo, como vistes; nada disso valeu a sensação do beijo. Podiam ser mentira ou ilusão. Sendo verdade, eram os ossos da verdade, não eram a carne e o sangue dela. As próprias mãos tocadas, apertadas, como que fundidas, não podiam dizer tudo:

- Sou homem!”

(Machado de Assis em “Dom Casmurro”)

10 de mai. de 2010

Além da Janela, por Babi Leão

Conto (nunk excl)janela 1

É aos domingos que algumas famílias costumam se reunir e almoçar juntas. E foi em um domingo desses que eu fui almoçar com a minha. Entramos no restaurante, nos sentamos, rimos e nos fartamos como uns mortos de fome.

Foi quando eu olher pela janela: na calçada estavam um homem, uma mulher e dois menininhos nos olhando. Era uma família. Uma família aparentemente pobre: estavam sujos, magros e tinham o olhar triste de quem contempla o que não pode ter.

Passaram por eles uns magrelos, de skate e calça caída, cochichando: “vixi, vieram do Haiti?”. Quem eram eles para falar alguma coisa, eu pensei. Parecia que eles é que tinham vindo de Marte, com todas aquelas calças coloridas “da moda” e uma nave nos pés.

De repente, pensei como todos pareciam animais.

A família animal, indigente. Sim, palavras duras, mas são os animais que são excluídos da sociedade, cachorros que ficam em portas de churrascarias esperando por um pedaço de carne qualquer.

E os “bad boys”? Animais! Mas animais em um novo sentido. No sentido de excluir e não serem excluídos. Animais, animais e animais! E eu? Mais animal ainda por não fazer nada. Eu, totalmente sem ação vendo uma situação como essa. Um animal passivo.

Acho que foi isso que Aluísio de Azevedo quis dizer com sua zoomorfização, sua forma de comparar os personagens com animais, em O Cortiço. A degração do seu humano, reduzido a condição de animal, casa perfeitamente com a intenção do autor em revelar a miséria social do proletariado urbano.

Cheguei a conclusão de que o livro me mostrou muito mais do que eu tinha imaginado. Me levou além do almoço de domingo em família. Me mostrou além da janela.

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P.S.: A partir desse mês, a semana de ficção vai vir sempre antes da semana livre. Essa inversão foi planejada mesmo no começo do blog, para que eu pudesse falar do Oscar da forma como eu queria. Agora as coisas voltam a ser como deveriam.

Se padeceram moléstias, não sei, como não sei se tiveram desgostos: era criança e comecei por não ser nascido. Depois da morte dele, lembra-me que ela chorou muito; mas aqui estão os retratos de ambos, sem que o encardido do tempo lhes tirasse a primeira impressão. São como fotografias instantâneas da felicidade”

(Machado de Assis em “Dom Casmurro”)

3 de mai. de 2010

Gaga – Um guia de amor a primeira audição

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Notas: The Fame *** (3/5)  ---  The Fame Monster **** (4/5)

Há alguns meses atrás, eu podia jurar que o pop estava perdido. Entre a voz anasalada de Britney e o analogismo cada vez mais evidente de Madonna, pouco sobrava para quem curtia música pop de verdade, daquelas que conseguiam ser empolgantes dentro e fora de uma pista de dança, com ou sem o “calor do momento” envolvido na equação. Há tempos que a originalidade saiu de moda, e os sons eletrônicos se tornaram, de recursos úteis para gente criativa, meras desculpas para emplacar em uma parada pretensamente “dance” por aí. O porém: fora das boates, quase nada do que se denominava “dance” fazia mesmo querer dançar. Ouvir o que estava no topo das vendas era garantia certa de tédio mortal. Isso, é claro, até Gaga.

Não é exagero já começar a dividir a música pop contemporânea entre pré-Gaga e pós-Gaga. Antes dela surgir com seus figurinos, penteados e comportamentos aberrantes, as grandes divas pop eram aquelas que se faziam etéreas e procuravam se ajustar ao ideal de way of life do público jovem sem realmente entendê-lo. Com letras e sons agressivos, uma pegada rocker para um som pop e dos dos álbuns mais vendidos do nosso século no currículo, Gaga fez em dois anos o que Britney não conseguiu fazer em um decênio de carreira: tirou dos eixos, e das convenções, o pop. Goste ou não do que ela faça, não dá para negar a Gaga o mérito de desafiar preconceitos e se fazer notar, por si mesma, com todas as suas bizarrices, como o grande símbolo da nova geração.

Porque estranheza também pode ser bonito, e não custa nada dar uma chance as neuroses dessa ítalo-americana fã de glam rock, com influências da disco e do techno, que faz música pop de primeira qualidade. Pois eis aqui um guia fácil para conhecer e se apaixonar por sua forma peculiar de fazer música. E, já que a regra é fugir do clichê, nada de números redondos: com vocês, em  passos simples e rápidos, Stefani Joanne Angelina Germanotta, ou melhor, Lady Gaga.

Fase 01: entrando no clima…

Papparazzi – (The Fame – Faixa 03) – Letra Gaga. Música Gaga, Fusari.

A alquimia pop de ritmos e sons encontra outra definição no mega-hit da cantora, brincando com o som mais sombrio de seu primeiro disco e cantando uma letra essencialmente romântica com personalidade e desenvoltura. O instrumental surpreendente mostra que Gaga e sua equipe tem gabarito para brincar com timbres e criar um pop que, em meio a salada de referências, soa original e empolgante. Isso sem contar que ainda é divertido a beça.

Beautiful Dirty Rich – (The Fame – Faixa 04) – Letra Gaga. Música Gaga, Fusari.

Rápida, rasteira e incrivelmente contagiante, a quarta entrada do The Fame oferece um som com características de rock para quem ouve com cuidado, mas ganha verniz de pop para emplacar na memória de quem ouve. A equação funciona a perfeição, com Gaga mostrando uma interpretação segura nos vocais, ainda que essa canção em particular não lhe exija muita coisa e a batida levada por bateria “à la Def Leppard” carregando uma melodia criativa e fragmentada.

Fase 02: animando a festa…

Bad Romance – (The Fame Monster – Faixa 01) – Letra Gaga. Música Gaga, RedOne.

A explosão de sintetizadores que abre a canção (e o segundo disco de Gaga, o sombrio The Fame Monster) é para colocar qualquer um pronto para uma festa, enquanto a cantora entrega o melhor de seu estilo vocal para uma letra bem construída e cheia de significados e interpretações. Gaga nunca foi tão empolgante, original, agressiva, carismática e musicalmente criativa quanto na levada incansável e apoteótica desse que é seu maior (e melhor) hit.

Just Dance – (The Fame – Faixa 01) – Letra Gaga. Música Gaga, RedOne, Akon.

A canção que fez Gaga estourar em todas as paradas, essa bomba dance é levada por uma melodia inteligente e marcante, apesar de repetitiva. O que se vê aqui é uma calculada introdução ao estilo e a voz de Gaga, ainda não utilizada em todo o seu potencial. Mas é o bastante para mostrar a atitude agressiva e a personalidade forte de uma artista de verdade, que não nega suas influências rockers mas sabe fazer pop e dance como poucas cantoras no mercado atual.

Fase 03: dançando sem parar…

Dance in The Dark – (The Fame Monster – Faixa 05) – Letra Gaga. Música Gaga, Garibay.

A investida é rara, mas quando Gaga aproxima seu som do techno, não é a toa. Com uma de suas melhores letras e uma interpretação quase melancólica nos vocais, Gaga conta com a ajuda do produtor Fernando Garibay para criar um instrumental bem próximo da maioria das músicas do estilo, e ainda conseguir colocar uma melodia original e criativa por cima dela. Funciona e remete mais a pista de dança do que as pretensas investidas recentes de Madonna.

Money Honey – (The Fame – Faixa 08) – Letra Gaga. Música Gaga, RedOne, Hajji.

Talvez a mais incisiva das músicas do The Fame na missão de saudar e apresentar um estilo de vida completamente novo para o público, essa oitava faixa mostra uma batida que constante que carrega com facilidade uma melodia criativa levada por sintetizadores e a alquimia digital usual do produtor RedOne. Como bônus, aqui a voz de Gaga se destaca pelo alcance e por conseguir sair vitoriosa em meio a um instrumental, literalmente, barulhento (no melhor sentido, é claro).

Fase 04: Gaga, uma caixinha de surpresas…

Brown Eyes – (The Fame – Faixa 11) – Letra Gaga. Música Gaga, Fusari.

Uma balada que surpreende quem espera apenas pop fútil de Gaga, não há prova mais cabal da influência do glam rock sobre Gaga do que essa faixa, a melhor do The Fame e, talvez, da carreira da cantora até agora. Um piano belamente melódico, corais no backing vocal e toques de guitarra hipnotizantes em meio aos versos mais vulneráveis de Gaga garantes uma paixão fulminante pela interpretação afetada na medida certa da ítalo-americana. Belíssimo, belíssimo.

Apaixonado? Bem-vindo ao clube! Speechless (The Fame Monter – Faixa 04)                                -                                                                                   Summerboy (The Fame – Faixa 12)                                              -                                                                                   Boys Boys Boys (The Fame – Faixa 10)                                       -                                                                                   Alejandro (The Fame Monster – Faixa 02)                               -                                                                                   LoveGame (The Fame – Faixa 02)                                                -                                                                                   Telephone (The Fame Monster – Faixa 06)                              -                                                                                   The Fame (The Fame – Faixa 07)                                                  -                                                                                   Again Again (The Fame – Faixa 09)                                             -

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“…I want your ugly/ I want your disease/ I want your everything as long as it’s free/ (…)/I want your drama/ The touch of your hand/ I want your leather-studded kiss in the sand/ And I wan your love…

… Love, love, love/ I want your love…”

(Lady Gaga em “Bad Romance”)