Review: Dirty Computer (álbum e filme)

Janelle Monáe cria a obra de arte do ano com um álbum visual espetacular - e que desafia descrições.

Os 15 melhores álbuns de 2017

Drake, Lorde e Goldfrapp são apenas três dos artistas que chegaram arrasando na nossa lista.

Review: Me Chame Pelo Seu Nome

Luca Guadagnino cria o filme mais sensual (e importante) do ano.

Review: Lady Bird: A Hora de Voar

Mais uma obra-prima da roteirista mais talentosa da nossa década.

Review: Liga da Justiça

É verdade: o novo filme da DC seria melhor se não tivesse uma Warner (e um Joss Whedon) no caminho.

23 de dez. de 2016

As 15 melhores séries de 2016

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por Caio Coletti

Peak TV é o termo usado pelos críticos americanos para definir o momento em que vivemos na produção de televisão. Com um número sem precedentes de produções originais no ar, as emissoras, serviços de streaming e produtoras independentes de TV pelo mundo inteiro oferecem uma abundância de séries de qualidade, que nenhum ser humano conseguiria acompanhar. Eu sou só um, e por isso, a lista que você vai encontrar abaixo e indiscutivelmente incompleta, mas também esforçadamente compreensiva. Aqui vão as 15 melhores séries de 2016, de acordo com este humilde seriador.

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15. Bates Motel (4ª temporada) – A&E

A evolução de Bates Motel foi uma das trajetórias mais incríveis que já tive o prazer de acompanhar nos meus anos de TV. De um suspense bobo com tramas secundárias sem sentido na primeira temporada, a série cresceu para se tornar uma tragédia grega cruel e psicologicamente enredada nos anos seguintes, atingindo seu ápice na 4ª (e penúltima) temporada, onde a construção de personagem de Norman e Norma Bates chegou a uma quase-conclusão lógica do arco desenhado para ambos. Vera Farmiga continuou maior-que-a-vida como Norma, mas a temporada foi mesmo de Freddie Highmore, que equilibrou a frieza calculada de um Norman amadurecido com seus ainda juvenis atos impulsivos para compor o mais brilhante e trágico retrato do amadurecimento humano na TV no momento.

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14. The Path (1ª temporada) – Hulu

O trabalho de um contador de histórias é, essencialmente, “recortar as pontas” de um universo ficcional de possibilidades ilimitadas e encontrar uma linha narrativa que revele e provoque o espectador de maneiras instigantes, tocantes ou inesperadas. Sob essa métrica, Jessica Goldberg, a criadora e showrunner de The Path, da Hulu, é uma mestre de seu ofício – a série aborda um tema cheio de potencial, investigando as entranhas de um culto religioso que está em um momento crucial de sua história, mas não cai em todos os chavões que já esperamos de uma obra “crítica” à religião organizada. Pelo contrário, se torna um excepcionalmente escrito e atuado, além de incrivelmente sutil, estudo de personagem. Uma série que, no fundo, só quer entender o que faz sentido para cada um dos seres humanos que coloca na tela.

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13. This is Us (1ª temporada) – NBC

Nossa primeira (de apenas duas) séries de TV aberta americana, This is Us surpreendeu todo mundo com um piloto que reestabelecia o recurso do plot twist como essencialmente emocional, e estabelecia personagens exemplarmente diversos e completamente envolventes. Com um elenco espetacular de atores que precisavam de uma oportunidade para se provar (e conseguiram), This is Us reestabelece o prazer de uma história bem contada e expõe as rachaduras e prazeres da vida em família, dos erros e modulações, ressentimentos e paixões, que vão se cristalizando com o tempo. Ainda em seu 10º episódio, a série ainda tem muito a mostrar – e, com certeza, muitas posições a subir nessa lista.

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12. Person of Interest (5ª temporada) – CBS 

Os episódios finais de Person of Interest definitivamente deixaram o legado da série, um conto inteligente não só sobre o estado de vigilância e suas ambiguidades, mas também sobre a importância da conexão humana em pleno século XXI. Com uma leva final acima da média de episódios e a ajuda de performances incríveis de Michael Emerson, Sarah Shahi e Amy Acker, a série chegou a um final ainda prematuro da forma como só ela conseguiria: personalíssima, agridoce e muito mais relevante do que sua audiência poderia denotar.

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11. House of Cards (4ª temporada) – Netflix

A 4ª temporada de House of Cards é também a sua mais aterrorizantemente premonitória. Nas mãos de Claire e Frank Underwood, os EUA estão tão seguros quanto nas mãos de Donald Trump – mesmo com lançamento no comecinho do ano, quando a eleição americana ainda parecia distante, a temporada encontra uma reflexão política fascinante nas estratégias de governo e popularidade dos dois protagonistas, enquanto nos empurra mais fundo ainda para suas psiques, expandindo seu relacionamento complicado e os jogos de poder que fazem um com o outro. Spacey e Wright estão excepcionais como sempre, e a série parece finalmente ter se elevado ao nível deles.

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10. Girls (5ª temporada) – HBO

Girls é uma obra-prima. É falha, cheia de vícios e idiossincrasias irritantes, personagens que não seguem um padrão dramático de evolução convencional, e infundida dos mesmos preconceitos involuntários de sua criadora e estrela, Lena Dunham. Por ser corajosamente tudo isso, e encontrar uma espécie de realidade fantástica onde pode expressar coisas como a prisão da personalidade e o árduo trabalho do amadurecimento, Girls continua ficando melhor a cada temporada e se encontrando em um ligar especial e único na TV americana no momento – o tempo será mais gentil com a série do que os críticos hoje em dia, e esse é o maior certificado de qualidade que alguém pode receber.

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9. Masters of Sex (4ª temporada) – Showtime

Naquela que acabou sendo a última temporada de Masters of Sex, drama de época da Showtime sobre dois pesquisadores pioneiros da sexualidade, personagens foram explorados de maneira mais objetiva do que a sempre oblíqua showrunner Michelle Aahford permitiu nos três anos anteriores. Pudemos observar Bill (Michael Sheen) passar por uma transformação que, por causa dos 36 episódios anteriores de teimosia, pareceu bem merecida, e Libby (Caitlin Fitzgerald) finalmente se liberar das pressões e descobrir quem verdadeiramente é. Com seu final em 2016, Masters se consagra como um tratado arguto sobre as relações de gênero através da história e um delicado conto moral sobre identidade.

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8. Orphan Black (4ª temporada) – BBC America/Space

Em seu penúltimo ano no ar, Orphan Black finalmente ganhou coragem para se tornar mais que a soma de suas partes. Sim, Tatiana Maslany continuou superlativa em seus múltiplos papeis, talvez ainda mais que nas três temporadas anteriores, e sim, a mitologia envolvendo a série ainda é tremendamente divertida e derivativa de chavões clássicos da ficção científica. No entanto, na 4ª temporada, Orphan Black é também um conto urgente sobre a natureza da opressão, e as muitas reações a elas, usando a variedade entre as personagens para criar um retrato inteligente e multifacetado dos efeitos da prisão social em que essas mulheres foram colocadas. Quem diria que Orphan Black se tornaria uma pièce de resistance.

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7. Dirk Gently’s Holistic Detective Agency (1ª temporada) – BBC America/Netflix 

Essa pérola da BBC America/Netflix surgiu no finalzinho do ano. Inspirada por uma obra de Douglas Adams (O Guia do Mochileiro das Galáxias), Dirk Gently mostrou logo em seu espetacular piloto que seria uma agridoce e deliciosamente absurda viagem por temas grandiosos como destino e redenção. Com personagens vívidos que são tão relacionáveis quanto completamente surreais e uma trama que trouxe mais reviravoltas do que qualquer um poderia prever, Gently trouxe Elijah Wood e Mpho Koaho como comoventes “caras normais” para seus parceiros de cena doidinhos, os brilhantes Samuel Barlett e Fiona Dourif. O resultado é um caldeirão de narrativa de gênero viciante.

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6. American Crime Story (1ª temporada) – FX

Um ano em que American Crime Story: The People v. O.J. Simpson fica na sexta posição nessa lista é um ano excepcional. Graças à escola de Ryan Murphy de assumir apenas produção e direção da nova série, deixando o trabalho de roteiro para Lary Karaszewski e Scott Alexander, o que assistimos foi um equilíbrio perfeito entre entretenimento de primeira e retrato social astuto, corrigindo as más concepções da época retratada ao mesmo tempo em que expunha como elas continuavam até hoje. Descontando os sublimes Sarah Paulson e Sterling K. Brown, há de se argumentar que o restante do elenco realizou caricaturas de personagens reais, mas poucas vezes caricaturas foram tão envolventes quanto as de Cuba Gooding Jr. ou John Travolta, por exemplo. American Crime Story pode ser nossa 6ª melhor série do ano, mas é talvez a mais importante.

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5. Westworld (1ª temporada) – HBO

Todas as análises rasas que clamavam que Westworld é uma série sobre a natureza de ser humano são um detrimento da obra de Jonathan Nolan e Lisa Joy. De forma paciente e inteligente, os dois showrunners nos conduziram por uma história que é sobre muito mais que isso – é sobre nossos medos e anseios como sociedade, sobre os sistemas que nos prendem em loops eternos, modorrentos, violentos e/ou deprimentes nas nossas vidas, sobre como o mundo é construído para o desfrute de poucos sob o sofrimento de muitos. É uma história de libertação encarnada em cada atuação dos androides do parque, e sutilmente refletida nos humanos – ao final de sua temporada, Westworld, mais uma produção de qualidade refinadíssima da HBO, parece se render aos próprios desejos. E esses prazeres violentos tem fins violentos, como você bem sabe.

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4. The Night Of (1ª temporada) – HBO

Em um ano no qual a mídia em geral começou a pensar nas falhas do sistema presidiário e judiciário com mais intensidade, The Night Of chegou para ser a obra definidora dessa reflexão. A trama de Richard Price é menos sobre o mistério em seu centro e mais sobre o que acontece depois dele, e como os vários sistemas da sociedade oprimem, moldam e acomodam os personagens ao redor de Nasir Khan (Riz Ahmed). Com um elenco infalível e um olhar agudo para as hipocrisias da sociedade que cerca suas criações, Price e o diretor Steven Zaililan criaram uma fábula deprimentemente real que assombrou e fascinou todo mundo que lhe deu uma chance por 9 penosas e fundamentais horas.

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3. Game of Thrones (6ª temporada) – HBO

Em seu sexto ano, Game of Thrones continuou provando por que é a narrativa definidora da nossa era de televisão – nos bons e nos maus sentidos. A dupla D.B. Weiss e David Benioff trabalhou nas reclamações dos fãs e definiu uma data de término para a série: sem a prisão dos livros de George R.R. Martin, a dupla de talentosos roteiristas conseguiu direcionar sua história de verdade e refletir com mais inteligência sobre seus temas: crença, opressão, a passagem do tempo e o amadurecimento. No caminho, a jornada dos personagens se tornou mais clara e mais envolvente, abrindo espaço para grandes atuações de todos os cantos, especialmente, é claro, de Lena Headey (Cersei). “Battle of the Bastards” (6x09) pode ser a menina dos olhos da HBO nesse sexto ano de Thrones, mas a excelência da série, finalmente, foi muito além de seus momentos mais épicos.

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2. Penny Dreadful (3ª temporada) – Showtime

O “final-surpresa” de Penny Dreadful (que não avisou a ninguém que a 3ª temporada seria a última) deixou fãs revoltados, mas em perspectiva é impossível negar que tenha sido a conclusão perfeita para a saga escrita por John Logan. Em seus 27 episódios, Dreadful foi uma análise de como a sociedade “repulsa” e “deixa de lado” os diferentes, e como para estes talvez seja mais catártico ser tocado pelas trevas e pelo mal do que não ser tocado por nada. Essa reflexão chegou ao ápice natural no terceiro ano, abrindo espaço para o episódio mais devastadoramente bem-escrito do ano, “A Blade of Grass” (3x04), uma simples peça de diálogo com mais repercussões e complexidades do que qualquer grande batalha. Fosse ou não o final, Penny Dreadful mereceria seu lugar aqui.

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1. The Americans (4ª temporada) – FX

Há 4 anos que The Americans é a melhor série no ar na TV americana. Essa 4ª temporada, no entanto, adicionou mais e mais camadas de complexidade na história do casal Jennings, e especialmente do amadurecimento de seus dois filhos, Henry e Paige. O fato de que The Americans cresceu para se tornar uma série sobre amadurecimento e foi capaz de identificar que o forte temático de sua história estava na forma como o trabalho de espiões de Philip e Elizabeth reflete as complicações da vida adulta que Henry e Paige só começarão a sentir com o tempo é excepcional em si próprio. A forma como a 4ª temporada explorou e expandiu os cantos mais escuros desse mundo adulto, e a forma como a Guerra Fria é intimamente ligada ao momento que vivemos hoje, politicamente, no mundo, é o que a faz acima de qualquer expectativa. Se continuar superando a si mesma dessa forma, é quase impossível prever o que The Americans vai entregar em sua 6ª (e última) temporada em 2018.

12 de dez. de 2016

As 10 melhores canções de 2016

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por Caio Coletti

O ano está acabando, e preparamos uma pequena surpresa: além da completíssima lista de 30 (30!) melhores discos do ano que deve aparecer por aqui no mês que vem, resolvemos marcar o reveillon com um ranking das melhores faixas individuais de 2016! Na nossa seleção entraram singles e não-singles, entrou soul, entrou pop, entrou indie e entrou R&B. Como sempre, o lema é quanto mais eclético melhor! A listinha provavelmente deve ter algumas surpresas e preciosidades para todo mundo descobrir. Vamos lá?

10) Desperado – Rihanna

Quando Rihanna finalmente quebrou o silêncio de quatro anos sem lançar álbuns com o Anti, no finalzinho de janeiro, a sensação foi que o ano musical tinha finalmente começado. A espera valeu a pena para ouvir um álbum genuíno e à flor da pele como todos os anteriores de Rihanna, mas com um espírito experimental e aventureiro que era inédito. “Desperado” é uma canção machucada que conjuga o conflito entre querer estar sozinho, mas não querer estar solitário – levada com segurança por Rihanna nos vocais, a faixa coloca uma batida simples sobre versos quebrados, criando um ambiente melódico que é único do Anti, uma das obras pop mais singulares que vimos em muito tempo.

9) John Wayne – Lady Gaga

“John Wayne” é a faixa que prova de uma vez por todas: se você achou o Joanne uma mudança muito radical da Lady Gaga que conhecíamos anteriormente, você não está ouvindo com atenção. Com guitarras country rock espremidas em uma melodia e uma letra que só Gaga poderia escrever, a canção fala de um amor urgente que poderia muito bem figurar nos temas “na beira do precipício” do Born This Way – com ganchos geniais e uma química pop cosmopolita em cima de suas raízes na música tradicional americana, “John Wayne” é exatamente o que foi concebida para ser: um prazer culpado incrustado no meio do ambíguo e corajoso Joanne.

8) The Sound – The 1975

Há sarcasmo pingando da letra de “The Sound”, segundo single do gloriosamente intitulado disco do The 1975, I Like it When You Sleep For You Are so Beautiful Yet so Unaware of It. Uma alegoria romântica sobre teclados disco, sintetizadores agudos e uma guitarra deliciosa, “The Sound” é na verdade um recado afiado aos fãs da primeira fase da banda que se desligaram da estética mais “colorida” e francamente pop do segundo álbum: “Não me diga que você ‘simplesmente não entende’/ Porque eu sei que sim”, canta Matty Healy, entregando uma perfeitamente irônica resposta que consegue não subestimar a inteligência dos fãs e cutucá-los ao mesmo tempo. Música pop raramente fica melhor que isso.

7) Moth to the Flame – Chairlift

Se você perguntasse para mim, “Moth to the Flame” deveria ser o clímax de todas as baladas de 2016 ao redor do mundo. A canção do Chairlift tem aquela qualidade icônica da grande música de pista de dança, na qual a repetição deliciosamente culpada serve a um propósito: realçar a situação lírica da música, em que o sujeito se vê inesperadamente atraído por algo que ele nunca consegue alcançar. “A esperança se esconde dentro de um clichê”, canta a angelical voz de Caroline Polachek em um dos versos, sob uma batida viciante e a produção sutil e acertada que aprendemos a esperar da banda. Clichês são clichês por um motivo: eles funcionam.

6) Operator (He Doesn’t Call Me) – Lapsley

Se você excluir todos os singles espetaculares que ela havia lançado antes do álbum, o destaque óbvio do álbum de estreia da Lapsley, um dos grandes talentos que encontrei esse ano, é “Operator”. Com um clima disco que passa pelo pacote de cordas aliado à batida e chega até a linha melódica dos versos, a canção é minimalista como Lapsley costuma ser, mas contagiante como poucas outras em sua discografia. Um conto simples e genioso de um amor à longa distância, “Operator” esconde um sentimento de quebrar o coração em cima de uma produção dançante, no melhor estilo da música pop dos anos 70 e 80.

5) Cool Girl – Tove Lo

Qualquer artista que seja capaz de acessar o inconsciente popular da forma como Tove Lo fez com “Habits” merece atenção, mas “Cool Girl” traz um outro nível de sofisticação ao discurso dessa sueca. Terrivelmente irônica e venenosa, a faixa que abriu os trabalhos do álbum Lady Wood ganha pontos pelo refrão em monotom contrastado com os versos mais “abertos”, uma combinação sempre exótica e difícil de fazer funcionar, mas ganha ainda mais pela forma como encapsula o ridículo e o delicioso da aversão da nossa geração ao compromisso romântico.

4) Death of a Bachelor – Panic! At the Disco

Se as palavras “Brendon Urie brincando de Frank Sinatra” não são o bastante para te convencer do porquê “Death of a Bachelor” está nessa lista, você não é meu tipo de pessoa. Brincadeiras à parte, o vocalista (e único membro) do Panic! At the Disco arrasa nos vocais da faixa, que expressa um sentimento meio-amargo de envelhecimento embebido na teatralidade e na ironia honesta (se é que isso é possível) que aprendemos a esperar do Panic. Guitarras sintetizadas se misturam com sopros no instrumental que traz o swing para o século XXI sem fazer muito barulho por isso.

3) She Lays Down – The 1975

A lista de melhores canções d’O Anagrama sempre chega no finalzinho com pelo menos uma composição simples e linda exatamente por sua simplicidade. Minha canção preferida de todos os tempos é “Moon River”, então vocês devem entender minha fraqueza por faixas como “She Lays Down”, que no álbum do The 1975 é executada apenas pelo vocalista Matty Healy e a guitarra. Com versos machucados que abordam a depressão pós-parto e o abuso de drogas da mãe de Healy, “She Lays Down” é uma daquelas composições que colocam uma melancolia universal em música e falam direto à sensibilidade mais profunda do ouvinte. Não há muito o que analisar – é arte.

2) Perfect Illusion – Lady Gaga

Por outro lado, uma elaboração complexa e fascinante como “Pefect Illusion” é também extremamente sedutora. Nenhuma outra faixa de música pop chegou com mais camadas, significados, compreensões e dimensões musicais quanto o primeiro single do Joanne, de Lady Gaga – há algo do pop rock de Cyndi Lauper, influenciado na melodia pelo blues do começo da carreira da cantora; há algo de “Total Eclipse of the Heart” na mudança de tom para o último refrão; há a batida constante do tecno europeu e as guitarras francamente americanas que permeiam o restante do álbum, tornadas “cosmopolitas” pelo produtor Mark Ronson.  É uma música sobre a separação entre verdade e mentira, arte e artista, história e realidade – sobre tudo de complicado com o que Gaga sempre foi fascinada, mas em uma roupagem enganosamente simples.

1) Love on the Brain – Rihanna

Me dê emoção à flor da pele com arte pop, no entanto, e você me ganhou. “Love on the Brain” é soul com seus corais e órgão, mas, ainda, tremendamente moderna em suas linha melódica e produção, das guitarras elétricas à batida sintetizada. É genuína em seu amor desesperado, e desesperada em seu amor genuíno. Tem a marca indelével de Rihanna nos vocais, esticando seu alcance sem se preocupar com a elegância da interpretação – é mais importante passar a mensagem do que torna-la digerível para um público que não vai entendê-la de qualquer forma. No Anti, o status de artista supera em muito o status de diva da cantora barbadiana, e as sofisticações são deixadas de lado de vez para um álbum cru e genial do qual “Love on the Brain” é a melhor representação.

3 de dez. de 2016

Review: Animais Fantásticos demora para se encontrar, mas é mágico quando consegue

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por Caio Coletti

Às vezes, nós críticos nos perdemos tanto em análises e análises sobre como a saga Harry Potter marcou uma geração (e de fato é fascinante pensar e falar sobre isso) que esquecemos do fato de que J.K. Rowling é uma das melhores contadoras de histórias em atividade na literatura popular. É um caso clássico de se concentrar no impacto de uma obra ao invés de seu conteúdo ou sua técnica, mas assistir Animais Fantásticos e Onde Habitam é simultaneamente uma lembrança da absurda habilidade de Rowling em tecer histórias e um aviso de que ela também é capaz de falhar. Essa expansão/prelúdio da saga Harry Potter explora terrenos desconhecidos para a autora, e isso fica claro na primeira meia hora de filme, quando Rowling parece estar procurando pela história que quer contar.

O filme começa com Newt Scamander (Eddie Redmayne) chegando à Nova York dos anos 20 com uma maleta mágica cheia dos animais fantásticos do título, espécies que só existem no mundo bruxo. A tranca mais que frouxa da mala é o dispositivo de plot que Rowling usa para colocar em movimento uma trama que se conecta profundamente com o passado da saga, e também com seus temas. Quando finalmente se encontra, após fazer a introdução de personagens e situações, Animais Fantásticos é cheio daquela magia típica da escrita de Rowling, um prazer que mistura a intimidade com os personagens e a sensação de assistir enquanto todas as peças aparentemente desconectadas se juntam em uma exploração de tema e trama perfeita.

Animais Fantásticos tem questões sérias para discutir sobre opressão e as formas insuspeitas que ela muitas vezes toma, além dos nada belos resultados dela nos indivíduos. Rowling sabe que, ao viajar para o passado (muito mais do que viajar para o outro lado do Atlântico), uma adaptação social precisaria ser feita no mundo bruxo, e se aproveita da localização nos anos 20 para inverter a situação do preconceito que vimos na saga Harry Potter – aqui, a “caça aos bruxos” é muito mais literal que metafórica, e Rowling é mais uma vez esperta em sua construção de universo ao retratar a perseguição social que levaria ao preconceito no universo que conhecemos, de décadas mais tarde. É um círculo vicioso de ódio que a autora revela aqui, uma observação aguda da forma como a nossa sociedade funciona.

Ajuda que Rowling continue colocando os outsiders como seus campeões e heróis – o perpetuamente constrangido Scamander, interpretado com os maneirismos adoráveis usuais por Redmayne, é apenas um condutor para o público se conectar a personagens como a subestimada ex-Aurora Tina (Katherine Waterston), a excêntrica leitora de mentes Queenie (Alison Sudol), o caloroso e fracassado Kowalski (Dan Fogler), e até o terrivelmente reprimido Credence (Ezra Miller). Cada um desses atores traz um elemento diferente que contribuí para a forte miscelânea de estilos do filme, que só não parece mais vibrante porque o diretor David Yates, que comandou as quatro derradeiras aventuras de Harry Potter, insiste em um visual e mise-en-scene de poucas intervenções estilísticas.

Não significa, é claro, que o trabalho de figurino da sempre espetacular Colleen Atwood não brilhe, assim como o esforço da equipe de efeitos especiais ao criar criaturas críveis inseridas em visuais de encher os olhos. Animais Fantásticos é um caldeirão de criatividade conduzido por uma força unificadora (Yates) talvez centrada demais para seu próprio bem, mas funciona como filme, entretenimento e pedaço de narrativa pop assim que encontra seu rumo como história. A expectativa de outros quatro capítulos dessa nova saga é excitante especialmente para ver o que a mente de Rowling pode tramar tendo tirado as introduções e caracterizações do caminho.

Deixamos esse último parágrafo pra endereçar o “elefante na sala”, que atende pelo nome de Johnny Depp – o ator, recentemente acusado de violência doméstica pela agora ex-esposa Amber Heard, aparece por poucos minutos no final do filme (não se preocupe, não vamos “estragar” a surpresa aqui), mas deve ter papel maior nas continuações. E sim, a escalação dele diz algo sobre o quanto produtores, estúdios e até criadores que amamos em Hollywood realmente se importam com questões sociais, mas a verdade é que histórias transcendem aqueles que as contam. Animais Fantásticos é sobre a unidade superando o medo, mesmo em um mundo mais adulto e cruel do que o de Harry Potter, e o tempo vai transformar Johnny Depp, assim como transformou a cruel vilã Mary Lou (Samantha Morton), em uma nota de rodapé nessa história.

✰✰✰✰ (4/5)

FANTASTIC BEASTS AND WHERE TO FIND THEM

Animais Fantásticos e Onde Habitam (Fantastic Beasts and Where to Find Them, Inglaterra/EUA, 2016)
Direção: David Yates
Roteiro: J.K. Rowling
Elenco: Eddie Redmayne, Katherine Waterston, Alison Sudol, Dan Fogler, Colin Farrell, Ezra Miller, Samantha Morton, Carmen Ejogo, Jon Voight, Johnny Depp
133 minutos

27 de nov. de 2016

Diário de filmes do mês: Novembro/2016

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por Caio Coletti

Nem todos os filmes merecem (ou pedem) uma análise complexa como a que fazemos com alguns dos lançamentos mais “quentes” ou filmes que descobrimos e nos surpreendem positivamente. É levando em consideração a função da crítica e da resenha como uma orientação do público em relação ao que vai ser visto em determinado filme que eu resolvi criar essa coluna, que visa falar brevemente dos filmes que não ganharam review completo no site. Vamos lá:

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Complicações do Amor (The One I Love, EUA, 2014)
Direção: Charlie McDowell
Roteiro: Justin Lader
Elenco: Mark Duplass, Elizabeth Moss, Ted Danson, Mary Steenburgen
91 minutos

Poucos thrillers do cinema independente (e, se você tem me acompanhado aqui n’O Anagrama, tenho visto muitos) são mais cristalinamente ácidos do que The One I Love – o roteiro de Justin Lader não esconde a ambição de analisar as hipocrisias de seus personagens nem a vontade de desconstruir a noção romântica de aceitar o outro por todos os seus defeitos e problemas. O casal Ethan (Mark Duplass) e Sophie (Elizabeth Moss) passa por problemas no casamento mesmo anos depois de Ethan admitir que teve um caso extraconjugal – por sugestão de seu terapeuta (Ted Danson), os dois vão para um retiro de casal juntos, mas algo de muito estranho começa a acontecer na casa de hóspedes do local: sempre que Sophie entra lá, vê uma versão “consertada” de Mark, que atende todas as expectativas que o Mark real não consegue atender, e vice versa. A premissa engenhosa é executada com simplicidade pelo diretor Charlie McDowell, que não é dado a arroubos visuais, mas faz um trabalho exemplar na direção de atores, conduzindo-os por construções e desconstruções de personagem fascinantes.

Elizabeth Moss está especialmente brilhante como Sophie e sua “gêmea ideal”, que Mark vê (em uma sacada bacana do roteiro) como uma mulher complacente e sempre disposta a aceitar as sugestões do marido. A ex-estrela de Mad Men constrói duas Sophie’s marcadamente diferentes tanto na superfície quanto na profundidade – ao contrário do que acontece com o charmoso e superficial Ethan “duplo” de Duplass, as duas Sophie’s são personagens completamente realizadas, que preenchem a tela. Assim como sua protagonista, The One I Love é inteligente, vivaz e importante, mas não parece ter noção de tudo isso, o que talvez o previna de fazer mais com os elementos que tem. Satisfatório como pode ser, o filme parece ter algo o restringindo o tempo todo – o que só torna mais interessante observar o que McDowell e Lader vão fazer a seguir, quando começarem a se soltar.

✰✰✰✰ (3,5/5)

beyond

Star Trek: Sem Fronteiras (Star Trek Beyond, EUA, 2016)
Direção: Justin Lin
Roteiro: Simon Pegg & Doug Jung
Elenco: Chris Pine, Zachary Quinto, Karl Urban, Zoe Saldana, Simon Pegg, John Cho, Anton Yelchin, Idris Elba, Sofia Boutella
122 minutos

Os dois últimos filmes da franquia Star Trek são obras irremediavelmente moldadas por seu diretor, J.J. Abrams. Assim como todos os projetos de Abrams, Star Trek e Além da Escuridão são filmes sobre laços entre personagens e as responsabilidades que vem com eles – e são bons filmes sobre tudo isso, não me levem a mal. No entanto, o mais bacana de Sem Fronteiras, terceiro filme da nova saga e primeiro sem Abrams na direção, é que ele retorna para uma temática que sempre foi muito mais querida à franquia que data cinco décadas de existência: unidade. Em seu coração, a galáxia criada por Gene Roddenberry existe para nos lembrar que, como humanos, funcionamos melhor juntos do que separados – e a camaradagem dos tripulantes da Enterprise é só uma pequena parte desse aspecto do universo Star Trek. Ao olhar mais para o todo da Federação, introduzindo uma enorme base interplanetária, por exemplo, Sem Fronteiras resgata essa noção de expansividade e quase utopia da criação de Roddbenberry. É ficção científica como material inspiracional, e funciona às mil maravilhas.

Parte dessa mudança é que o roteiro também trocou de mãos, passando para Simon Pegg (o Scotty) e seu frequente parceiro Doug Jung – o resultado são diálogos mais soltos, sacadas cômicas mais inteligentes que ajudam a sofisticar o universo de Star Trek novamente. É um respiro de ar fresco, em suma. Na trama, a Enterprise é atacada pelos seguidores de Krall (Idris Elba, enterrado em maquiagem), que derrubam a nave e planejam usar os tripulantes para desferir um golpe mortal na Federação. Sem Fronteiras cria um vilão com mentalidade de guerra que vê como uma afronta a civilização pacífica construída, ainda que de forma falha, pela Federação, criando um contraste que pode ser simplista, mas é também eficiente. O elenco continua afinado em seus personagens, e Sofia Boutella é uma adição e tanto como Jaylah – na sua fisicalidade, Sem Fronteiras encontra o ritmo narrativo que ainda precisava.

O único porém nessa coisa toda é que a direção de Justin Lin não parece particularmente inspirada, emprestando um senso bacana de movimento para as cenas de ação, mas parecendo marcadamente entediado nos outros momentos. Não é exatamente surpresa para quem vem de Velozes e Furiosos – faltou uma escolha mais arrojada para substituir Abrams.

✰✰✰✰ (4/5)

dory

Procurando Dory (Finding Dory, EUA, 2016)
Direção: Andrew Stanton, Angus MacLane
Roteiro: Andrew Stanton, Victoria Strouse
Elenco: Ellen DeGeneres, Albert Brooks, Ed O’Neill, Kaitlin Olson, Hayden Rolence, Ty Burrell, Diane Keaton, Eugene Levy, Idris Elba, Dominic West, Kate McKinnon, Bill Hader, Sigourney Weaver
97 minutos

Só a Pixar poderia criar uma obra-prima da animação como Procurando Nemo, esperar 13 anos para fazer uma continuação, e mesmo assim não decepcionar. Procurando Dory não é uma reedição do filme que o originou, e talvez por isso lhe falte alguns dos elementos que o público esperava encontrar – ao invés disso, é uma produção que em seus temas, personagens e elaborações procura existir sem se apoiar no que veio antes dele. A trama dessa vez, como adianta o título, diz respeito à Dory (Ellen DeGeneres), que subitamente começa a se lembrar da família que havia esquecido graças a sua doença. A peixinha se junta a Marlin e Nemo e sai em busca dos pais em um aquário na costa dos EUA, onde se lembra de vê-los pela última vez. O que se segue é uma aventura mais excêntrica que a original, especialmente graças ao novo cenário – o diretor Andrew Stanton e os animadores da Pixar se deliciam com designs e situações absurdas, e o roteiro desenha os novos personagens com a mesma habilidade que aprendemos a esperar do estúdio. O mais bacana, no entanto, é que Procurando Dory parece ter um propósito para existir.

No fundo, o novo filme da Pixar é um conto profundamente tocante sobre doenças mentais, sobre o sentimento de desconexão com o mundo que elas podem trazer para aqueles que sofrem delas. Da forma mais delicada possível, o filme explora o valor de Dory como indivíduo e as formas como aquilo que a “aleijou” cognitivamente a vida inteira moldou sua vida e suas relações. É um filme de quebrar o coração, mas também muito esperançoso, e a performance de DeGeneres retornando ao personagem não é só adorável e engraçada como de costume, mas também cheia de uma profundidade que estava escondida sob a superfície no primeiro filme. Talvez falte à Procurando Dory os elementos que fizeram de Nemo um filme tão icônico, mas Stanton e companhia criaram uma continuação que tem propósito, emoção e é espetacularmente realizada. Não dá para pedir mais que isso.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

caça

Caça-Fantasmas (Ghostbusters, EUA/Austrália, 2016)
Direção: Paul Feig
Roteiro: Kate Dippold, Paul Feig
Elenco: Kristen Wiig, Melissa McCarthy, Kate McKinnon, Leslie Jones, Chris Hemsworth, Andy Garcia, Ed Begley Jr, Charles Dance, Steve Higgins, Bill Murray, Ernie Hudson
116 minutos

É difícil falar do novo Caça-Fantasmas sem tocar em questões políticas, e sinceramente, não acho que deveríamos. É significante sim que o filme seja um grande blockbuster de comédia protagonizado por quatro mulheres, e é especialmente significante que ele seja a refilmagem de um filme originalmente masculino (em público e elenco). Mais do que isso, é impossível negar o talento dessas quatro mulheres em especial, que contam juntas quase 20 indicações ao Emmy (e duas vitórias), e o quão bacana é que um filme que fale com o público jovem tenha-as nos papeis principais. Dito isso, Caça-Fantasmas não é o melhor que elas (ou o diretor Paul Feig) sabem fazer – talvez pelas exigências do estúdio, o resultado aqui é mais restrito e “chapa branca” do que o normal para essa turma, que criou filmes espetaculares como Missão Madrinha de Casamento e A Espiã que Sabia de Menos. As brincadeiras de gênero viram deferência ao original, o que é uma pena, porque o potencial de um Caça-Fantasmas feito por essa equipe, caso fosse deixada livre para criar, seria enorme.

Na trama, uma professora de faculdade certinha (Wiig) se reencontra com a ex-colega de escola maluca (McCarthy), com quem passou a juventude estudando fantasmas – coloque na mistura uma engenheira doida e brilhante (McKinnon, a grande estrela do filme) e uma funcionária do metrô que conhece Nova York de trás para frente (Jones), e você tem um time pronto para salvar o mundo de espectros invasores. As cenas de ação no final funcionam surpreendentemente bem, mostrando mais uma vez que Feig pode dirigir qualquer coisa quando tem suas performers de confiança em tela, mas a estrada até lá é um pouco atribulada, com poucas piadas que funcionam apesar do esforço das atrizes. Caça-Fantasmas é um filme importante de qualquer forma, mas teria mais impacto se fosse a grande comédia que prometia ser.

✰✰✰ (3/5)

20 de nov. de 2016

Review: Em Doutor Estranho, a Marvel deixa claro que nada mais será simples em seu universo

doctor

por Caio Coletti

Oito anos e quatorze filmes depois de Homem de Ferro, a sensação que 2016 passou para aqueles que acompanham o universo cinematográfico Marvel desde o começo é que ele finalmente atingiu a maioridade. Talvez seja a influência dos Irmãos Russo, diretores do espetacular Capitão América: Guerra Civil, lançado no meio deste ano – segundo o produtor Kevin Feige, foram os Russo que o convenceram de que a Marvel precisava começar a “desconstruir” seus heróis e seus conceitos após tantos anos e filmes construindo-os. O resultado foi um universo Marvel que é uma contestação de si mesmo, das ideias de heroísmo e poder que a editora/estúdio estabeleceu desde 2008 – essa corrente subversiva sempre esteve ali, para quem prestasse atenção, mas agora a Marvel não vê mais sentido em escondê-la.

Doutor Estranho é certamente parte desse movimento da franquia em direção de um conceito mais complicado de heroísmo, e que apropriado que seja. Criado em 1963 por Stan Lee e Steve Ditko, Doutor Estranho abraçava a filosofia mística da década dos hippies (e os visuais psicodélicos, é claro) com muito mais fervor do que qualquer outro personagem de quadrinhos de sua época. Com seus vilões cósmicos de outras dimensões prontos para “devorar” a Terra, o Doutor Estranho era um homem que foi mudado para sempre por ensinamentos muito baseados no budismo, com uma pitada de mitologia celta. Ele era tanto um homem da ciência quanto um homem da fé, um herói pregando a convivência pacífica em um mundo militarista sem abrir mão de suas qualidades menos tradicionalmente admiráveis.

É isso que o filme lançado neste novembro acerta em cheio – aqui, como nos quadrinhos, o Dr. Stephen Strange (Benedict Cumberbatch) é um cirurgião famoso e convencido que, após um terrível acidente de carro, perde o uso de suas preciosas mãos. Após buscar curas em todos os cantos do mundo, ele finalmente recorre ao Kamar-Taj, um templo comandado pela Anciã (Tilda Swinton) que promete lhe ensinar magia para que ele alcance uma “cura espiritual”. A forma como o roteiro de Scott Derrickson, Jon Spaiths e C. Robert Cargill vende a incredulidade de Strange é um truque fácil para fazer o espectador se sentir tão maravilhado quanto ele quando os segredos do multiverso (a multiplicidade de realidades alternativas que o universo Marvel dos quadrinhos já adota a tempos) são aos poucos revelados.

No entanto, como Doutor Estranho revela, essas descobertas e esse poder tem um preço. O vilão Kaecilius (Mads Mikkelsen) encara esse preço como um comprometimento moral inaceitável, e sua firmeza ideológica o torna “um radical”, como é constantemente descrito. Durante a tour promocional do filme, Mikkelsen sempre dizia que Kaecilius era um vilão diferente porque “tinha um ponto válido” em suas crenças – de forma muito parecida com o Barão Zemo de Daniel Brühl em Guerra Civil, aliás, Kaecilius é um vilão porque transforma suas frustrações com a imperfeição humana em um impulso destrutivo. Enquanto isso, os heróis de ambas as tramas são pessoas que aceitam que nem sempre o caminho para um futuro melhor é formado por decisões fáceis e dualidades simples. Em Doutor Estranho, a Marvel continua a montar um caso a favor de líderes (e heróis) pragmáticos e humanos.

Com seu passado no cinema de terror, Scott Derrickson é uma escolha interessante para comandar o filme do Doutor Estranho. O cineasta se mostra hábil com efeitos especiais e capaz de mexer com a percepção do espectador, resultado nos visuais mais espetaculares da Marvel até hoje – nada do que o estúdio fez até aqui se compara com a extensa sequência em que Dr. Strange viaja pela primeira vez pelos universos alternativos. É uma mistura do estilo psicodélico dos quadrinhos clássicos com um quê moderno, especialmente no sentido de tornar mais viscerais e físicos os confrontos mágicos entre heróis e vilões. Não seria nem um pouco de se estranhar se Doutor Estranho finalmente rendesse o Oscar de Melhores Efeitos Especiais para a Marvel.

Talvez por causa desse tom impresso por Derrickson, algumas tentativas de humor do roteiro parecem mais “obrigatoriedades Marvel” aqui do que em outros filmes da editora. Muitas delas funcionam pelo timing dos atores e do diretor, mas não são exatamente adequadas ao filme. Por falar em atores, Benedict Cumberbatch é uma bela adição ao espectro de intérpretes da Marvel, trazendo uma austeridade e um humor cáustico que só é marcantemente diferente do de Tony Stark, por exemplo, graças a sua interpretação. Tilda Swinton não impressiona como a Anciã, acostumada com roteiros que servem melhor à sua excentricidade, abrindo espaço para Mikkelsen e Chiwetel Ejiofor brilharem mais, enquanto Rachel McAdams infelizmente passa um pouco mal-aproveitada pelo roteiro.

O mais bacana de Doutor Estranho é que, assim como Guerra Civil, ele não parece ter saído da “linha de produção” padronizada que a Marvel usava nas fases anteriores de seu universo. É único em sua abordagem e seu visual, e funciona melhor por isso, mostrando que a editora deixou para trás os tempos em que suas histórias de heroísmo eram enganosamente simples – agora, na superfície ou não, tudo na Marvel é, e deve continuar sendo, um espelho mágico da nossa complicada realidade.

✰✰✰✰ (4/5)

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Doutor Estranho (Doctor Strange, EUA, 2016)
Direção: Scott Derrickson
Roteiro: Jon Spaiths, Scott Derrickson, C. Robert Cargill
Elenco: Benedict Cumberbatch, Chiwetel Ejiofor, Rachel McAdams, Benedict Wong, Mads Mikkelsen, Tilda Swinton, Michael Stuhlbarg, Benjamin Bratt, Scott Adkins
115 minutos

12 de out. de 2016

Diário de filmes do mês: Setembro/2016

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por Caio Coletti

Nem todos os filmes merecem (ou pedem) uma análise complexa como a que fazemos com alguns dos lançamentos mais “quentes” ou filmes que descobrimos e nos surpreendem positivamente. É levando em consideração a função da crítica e da resenha como uma orientação do público em relação ao que vai ser visto em determinado filme que eu resolvi criar essa coluna, que visa falar brevemente dos filmes que não ganharam review completo no site. Vamos lá:

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O Homem nas Trevas (Don’t Breathe, EUA, 2016)
Direção: Fede Alvarez
Roteiro: Fede Alvarez, Rodo Sayagues
Elenco: Stephen Lang, Jane Levy, Dylan Minnette, Daniel Zovatto
88 minutos

A maioria das críticas de O Homem nas Trevas vai te fazer pensar que o filme de Fede Alvarez (A Morte do Demônio) é uma viagem de montanha-russa tremendamente criativa em que o espectador tem pouco tempo para pensar, muitas reações viscerais e passa o tempo todo na ponta da cadeira. E sim, O Homem nas Trevas é mesmo tudo isso – o que a maioria das críticas não vai creditar é o quão subversivo é o seu tratamento da moralidade e especialmente seu retrato dos três jovens que protagonizam a trama. Um trio de jovens ladrões que resolve entrar na casa de um veterano de guerra cego, mas não esperam a brutalidade e habilidade de seu dono, esses protagonistas são vistos por uma luz que pode não ser exatamente simpática, mas é compreensiva. O Homem nas Trevas triunfa por seu clima claustrofóbico por sua aparentemente infindável criatividade, sim, mas também pela forma como nos engaja na narrativa ao mostrar os vícios e moralidades tortas não da geração mais jovem, que realiza o ato condenável de roubar, mas da geração mais velha, que toma posse do corpo alheio pelas injustiças cometidas contra si.

Teorizações filosóficas à parte, no entanto, O Homem nas Trevas é muito o show de três atores: os jovens Dylan Minnette (Goosebumps) e Jane Levy (Suburgatory) e o veterando Stephen Lang (Avatar). O equilíbrio entre as performances de cada um deles, da insegurança raciocinada de Minnette à brutalidade sofrida de Lang, é o que mantem O Homem nas Trevas funcionando como uma jornada angustiante e cheia de recursos. Os 88 minutos do filme parecem se arrastar por horas graças às múltiplas formas que Alvarez encontra para explorar novos cantos da casa que serve de cenário para sua história, novos elementos da trama e dos personagens. Com edição ágil, mas não afobada, e sem medo de se arriscar por caminhos tabu, o filme de Alvarez é um terror pulsantemente moderno e tremendamente bem executado.

✰✰✰✰ (4/5)

maria

Maria Cheia de Graça (Maria Full of Grace, Colômbia/EUA/Equador, 2004)
Direção e roteiro: Joshua Marston
Elenco: Catalina Sandina Moreno, Yenny Paola Vega, Guilied Lopez
101 minutos

As virtudes mais especiais de Maria Cheia de Graça, filme de estreia do celebrado diretor e roteirista indie Joshua Marston, não se mostram facilmente. Lançado em 2004, o filme não tem fotografia sofisticada ou valores de produção altos, nem faz considerações filosóficas óbvias. É uma verdadeira produção independente porque encontra beleza e significado naquilo que reside nas entrelinhas de uma história simples e, infelizmente, muito crível. A trama gira em torno de Maria (Catalina Sandino Moreno), uma jovem colombiana que, de temperamento forte, se demite do local onde trabalhava e era tratada de forma revoltante. Para conseguir prover para a família, ela aceita outro emprego: o de “mula” de drogas entre a Colômbia e os EUA, carregando pacotes de cocaína embrulhados em grossos envelopes de látex – dentro do estômago. A perigosa operação culmina na tragédia que se anunciava desde o princípio, mas conforme os 101 minutos de filme vão passando, fica claro que Maria Cheia de Graça não é um filme que vai aceitar perder, de certa forma, a esperança.

Catalina Sandino Moreno, indicada ao Oscar pelo papel e infelizmente mal-aproveitada por Hollywood desde então, apresenta um espetáculo para os olhos do espectador atento. Ela domina e se comunica com a câmera de forma excepcional, preenchendo os espaços do filme com uma energia que é radiantemente inteligente, mas sem esquecer das pequenas tragédias e tristezas de sua personagem. Ambição, desespero, saudosismo, esperança e determinação passam por seus olhos daquela forma quieta, sutil e tremendamente eficiente que marca qualquer excelente atriz. Nas mãos de Catalina, Maria Cheia de Graça se transforma em mais que um filme sensível sobre uma questão importante – por causa dela, é uma parábola inesquecível que destrói e fortalece o sonho americano ao mesmo tempo, uma reinvenção completa que passa pela tela como um respiro de ar fresco da metrópole: venenoso, mas cheio de promessas.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

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As Tartarugas Ninja: Fora das Sombras (EUA/Hong Kong/China/Canadá, 2016)
Direção: Dave Green
Roteiro: Josh Appelbaum, André Nemec
Elenco: Megan Fox, Will Arnett, Laura Linney, Stephen Amell, Noel Fisher, Jeremy Howard, Pete Ploszek, Alan Ritchson, Tyler Perry, Tony Shalhoub, Brad Garrett
112 minutos

Vamos deixar uma coisa bem clara: ninguém espera um grande filme quando o título é Tartarugas Ninja. O reboot de 2014, que trouxe os personagens famosos nos anos 90 de volta à vida, tirou um bom dinheiro de um público nostálgico pela diversão de sua infância, e a continuação era inevitável. Assim como seu predecessor, Fora das Sombras é um espetáculo de CGI dos mais entediantes que Hollywood pode produzir, com personagens desenhados da forma mais caricata possível, apoiado em algumas cenas de ação eficientemente conduzidas por um diretor mais ou menos competente, e no puro saudosismo que os personagens podem oferecer. Nestes limites, ele com certeza poderia ser pior – Fora das Sombras abraça os impulsos mais bizarros da mitologia original, trazendo vilões como Rocksteady, Bebop e Krang à vida em concepções apropriadamente ridículas e colocando Tyler Perry (?) para interpretar um cientista (??) que tem as linhas de diálogo expositivas mais absurdas que você já ouviu em blockbuster hollywoodiano. Nesse ponto, alguns de vocês devem estar pensando: bom, parece divertido. E é, mais ou menos.

Divertido, na realidade, é um conceito estranho na Hollywood de hoje. Tartarugas Ninja tem piadas previsíveis e às vezes até irritantes, uma mensagem boboca e batida (mas ainda assim positiva) sobre trabalho de equipe, e a casual objetificação femininas que nos acostumamos a ver, infelizmente, sempre que Megan Fox ou qualquer jovem estrela de Hollywood aceita fazer um filme de ação. Em suma, Fora das Sombras é um dos produtos mais francos e desavergonhados de Hollywood em um bom tempo, e acontece que atualmente os impulsos básicos da terra do cinema são tão condenáveis que não podemos nem mesmo usar essa frase como uma virtude. Por todo o seu “valor nostálgico” e sua ação bem conduzida, Tartarugas Ninja 2 ainda é um produto do seu sistema, e isso é um grande problema.

✰✰✰ (2,5/5)

16 de set. de 2016

Review: Orphan Black revela novas profundidades na quarta (e penúltima) temporada

orphan black

por Caio Coletti

Vamos deixar claro: Orphan Black já é ótima há quatro anos, e não é só por causa de Tatiana Maslany. Se os muitos elogios para a interpretação da canadense em múltiplos papeis são mais do que merecidos, a série merece aplausos também por usar com sabedoria imensa seu limitado elenco coadjuvante (Jordan Gavaris é uma preciosidade, vamos ser sinceros), servir e ouvir aos fãs sem exageros e, especialmente, contar com habilidade tremenda uma história que se apoia na construção e nos detalhes da vida de cada um dos membros do “clone club”, fazendo de cada microcosmo um castelinho de cartas que desmorona e se reergue com facilidade impressionante, mas nunca perde a essência. No entanto, os 10 episódios da 4ª (e penúltima) temporada trazem algo de especial, e é flagrante que tenham anunciado logo depois dela que a série deve terminar em 2017.

À parte de sua dimensão pessoal e de seu passeio pelas vidas, políticas e sentimentais, dessas personagens, Orphan Black sempre manteve seu discurso de ficção científica colado nos clichês do gênero de uma forma que agradasse ao espectador acostumado com essas convenções. Em palavras mais simples, Orphan Black sempre foi um delicioso pastiche de ficção científica que se tornava realmente especial por outros motivos – no quarto ano, no entanto, essa trama principal finalmente se abre e floresce em um discurso mais complexo, que analisa não só a dimensão de “vida humana como propriedade”, que é inerente de quase toda narrativa desse tipo, como também uma consideração mais complexa dos efeitos que essa opressão tem sobre os oprimidos.

Ditas repetidamente que são “menos que pessoas” por serem clonadas, as protagonistas de Orphan Black se ramificam em uma série de situações – a procura pela humanização é um passo importante na vida de Cosima, a mais generosa do grupo; a afirmação da segurança e aprovação social é fundamental para Alison; o entendimento do motivo pelo qual continua viva é essencial para Sarah; o eterno conflito entre independência e conexão humana é o que conduz as jornadas de Helena e MK, essa última apresentada na 4ª temporada… e por aí vai. Quando chegamos à vilanesca Rachel, no entanto, a história é outra, porque sua forma de reagir à opressão é buscar mais poder para que vire o jogo e se torne a opressora. Na jornada da personagem mais improvável, Orphan Black nos quer dizer mais do que jamais ambicionou.

O mais bacana, no entanto, é que Orphan Black condena essa atitude de Rachel sem deixar de mostrá-la como vítima de um sistema que a obrigou a ser assim. Criada por uma “mãe” que, no fundo, nunca lhe viu como nada a não ser uma experiência genética, Rachel é uma mulher assustada com o que acha ser a verdade sobre si, e que só conheceu poder através da violência. Não é uma situação muito longe da nossa realidade, em suma, assim como Orphan Black sempre procurou ser com a sua construção de personagem – a diferença é que só agora ela encontrou uma ressonância social mais óbvia e urgente, que a posicione como uma série tendo algo poderoso a dizer.

E que espetacular que isso tenha acontecido justamente quando a série se prepara para fechar trabalhos dentro de mais 10 episódios. Dessa forma, os showrunners John Fawcett e Graeme Manson não arriscam se perder pelo caminho, e tem a rara oportunidade de entregar uma conclusão potente para essa aula de narrativa de cinco anos. Por mais triste que seja ver Orphan Black ir embora, é espetacular vê-la chegando ao fim de maneira tão certeira e eficiente quanto pode – especialmente com uma Tatiana Maslany que mais uma vez impressiona por todas as sutilezas e obviedades que coloca em suas personagens, equilibrando com maestria as diferenças gráficas e notáveis entre elas e a jornada particular de cada uma. Emocionalmente gigantesca quando tem que ser (“The Antisocialism of Sex”, episódio 4x07, sendo provavelmente o exemplo mais óbvio), Maslany é confiável e confiavelmente humana a cada passo do caminho.

Com uma temporada espetacular, Orphan Black segue seu caminho para se tornar uma das séries de ficção científica mais notáveis do nosso tempo. Quando terminar aos 50 episódios no ano que vem, vale apostar que a produção canadense terá mudado o nosso cenário televisivo de muitas formas – tecnicamente, com seus truques para trazer clones à vida; praticamente, com a forma como trouxe a ótima televisão canadense para o resto do mundo; e narrativamente, visto que ajudou a renovar o fôlego da ficção científica na televisão e a provar que a força dos fãs em era de redes sociais pode fazer ou quebrar a trajetória de um produto. Além de tudo isso, na 4ª temporada, Orphan Black encontra uma razão para existir no mundo além do microcosmo televisivo e de gênero – e é isso que a faz verdadeiramente excepcional.

✰✰✰✰✰ (5/5)

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Orphan Black – 4ª temporada (Canadá, 2016)
Direção: John Fawcett, Ken Girotti, Peter Stebbings, David Wellington, Grant Harvey, David Frazee, etc.
Roteiro: Graeme Manson, Russ Cochrane, Aubrey Nealon, Alex Levine, Kate Melville, Chris Roberts, Nikolijne Troubetzkoy, Peter Mohan, etc,
Elenco: Tatiana Maslany, Jorgan Gavaris, Kevin Hanchard, Kristian Bruun, Ari Millen, Josh Vokey, Maria Doyle Kennedy, James Frain, Evelyne Brochu, Rosemary Dunsmore, Skyler Wexler, Jessalyn Wanlim
10 episódios

13 de set. de 2016

Review: Em Billions, a linha entre dinheiro e moralidade é mais borrada do que pode parecer

billions

por Caio Coletti

A primeira cena do primeiro episódio de Billions deixa uma impressão e tanto. Amarrado, Paul Giamatti recebe ordens de uma mulher vestida de couro – a brincadeira sadomasoquista dos dois continua por um tempo antes da moça começar a, literalmente, urinar em cima de Giamatti. Nas mãos dos showrunners Brian Koppelman e David Levien, a cena representa um jogo de poder e moralidade que se estende por todos os 12 episódios da primeira temporada de Billions, uma fascinante exploração dos princípios, ou falta deles, de vários personagens de lados diferentes da lei. A peça de centro dessa metáfora moral é a disputa entre os protagonistas Chuck (Giamatti) e Axe (Damian Lewis), mas todo mundo entra na dança eventualmente.

A trama acompanha o esforço de Chuck, que quer aumentar seu perfil midiático para um dia se tornar chefe da promotoria americana, para desmascarar atitudes ilegais que acontecem por trás dos panos na bilionária empresa financeira tocada por Axe. Em meio a essa disputa, a esposa de Chuck, Wendy (Maggie Siff) trabalha como psicóloga dentro da empresa de Axe, e serve tanto como terceira protagonista da trama quanto como os olhos do espectador sobre a psique desses personagens complexos e ambíguos. Com um senso de justiça aguçado, mas sempre pronto para fazer vista-grossa acerca de suas próprias infrações legais no processo de investigação, Chuck aparece como uma figura talvez tão deturpada e corrupta quanto Axe – a diferença é que a corrupção de Axe é celebrada, porque ela faz (muito) dinheiro.

Damian Lewis e Paul Giamatti são o coração dessa narrativa, obviamente. Lewis entrega uma interpretação que não cai na besteira de tentar ser carismática demais – seu Axe é um bilionário magnético e excêntrico, sim, mas é também um animal calculista, certeiro e perpetuamente misterioso. O meio sorriso esconde a eterna mágoa e desconfiança das instituições que Axe parece guardar, sua trajetória vitoriosa esconde uma personalidade impulsiva, raivosa, hiper-masculina. Enquanto isso, Giamatti confia em seus truques e trejeitos de costume para construir Chuck, mas leva o entendimento e a profundidade para outra dimensão ao retratar a complicada moralidade do personagem e mesmo seu gosto sexual pelo sadomasoquismo. Espetacularmente fascinante de se assistir, a performance de Giamatti dá voltas e voltas ao redor do roteiro, e toma vida própria para além dele.

Isso porque nem sempre Koppelman e Levien, ao lado de seus parceiros roteiristas, sabem exatamente o que estão fazendo. O segundo episódio da série, “Naming Rights”, por exemplo, pesa a mão nas alegorias e na exploração do caráter vingativo da personalidade de Axe, e demora um pouco para Billions achar o território confortável onde pode movimentar todas as camadas de sua história e de seus personagens. Isso acontece mais notavelmente nos três últimos episódios do ano, e especialmente no espetacular “Magical Thinking” (1x11), que destrincha as profundezas da alma de Axe e Chuck de formas bem diferentes, e encontra o momentum para o confronto dos dois no episódio final da temporada, um diálogo excepcionalmente escrito e atuado.

Quietamente, Billions constrói também uma pletora de personagens interessantes que aparecem nas beiradas da narrativa. Toby Leonard Moore e Condola Rashad, como advogados parceiros de Chuck no caso, encontram uma dualidade interessante entre si, uma química que solta faíscas e uma oportunidade de refletir sobre o lugar da ambição em uma carreira de serviço público. A equipe de analistas financeiros de Axe é perfeitamente colorida e excêntrica, vide a performance explosiva de David Costabile como o braço direito do personagem de Damian Lewis. E por fim, é claro, Maggie Siff encontra um espaço notável entre os dois protagonistas para crescer e construir uma Wendy Rhoades tão fascinante, senão mais, que ambos – analítica, honesta e minimalista, a atuação de Siff é o que mais marca emocionalmente o espectador.

Em seus 12 episódios, Billions se esforça para nos embrenhar em um mundo mais fundamental para a nossa sociedade do que imaginamos, e ao mesmo tempo manter tudo mais ou menos acessível. A fascinação vem dos personagens e das situações, não dos milhões ou bilhões em jogo, e a série da Showtime se posiciona, inteligentemente, tanto como uma aula de economia e direito que busca alertar e informar o público, quanto como uma análise do estado mental e dos privilégios sociais que fazem determinados membros da sociedade se permitirem atos que desafiam seu próprio senso de moralidade, e prezem sua própria colocação social acima de vidas e sentimentos alheios. Não há respostas fáceis em Billions, mas há uma certeza: ninguém é tão bonito, ou tão limpo, quanto quer aparentar.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

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Billions – 1ª temporada (EUA, 2016)
Direção: Neil Burger, Scott Hornbacher, James Foley, Neil LaBute, Stephen Gyllenhaal, John Dahl, Susanna White, Karyn Kusama, Anna Boden, Ryan Fleck, Michael Cuesta
Roteiro: Brian Koppelman, David Levien, Andrew Ross Sorkin, Willie Reale, Young Il Kim, Heidi Schreck, Wes Jones, Peter Blake
Elenco: Paul Giamatti, Damien Lewis, Maggie Siff, Malin Akerman, Toby Leonard Moore, David Costabile, Condola Rashad, Glenn Fleschler, Kelly AuCoin, Susan Misner, Nathan Darrow
12 episódios

9 de set. de 2016

Review: Por todo seu encanto visual, o novo “Mogli” triunfa mesmo é na narrativa

jungle

por Caio Coletti

A trajetória de Mogli: O Menino Lobo é talvez a mais conturbada da rica história da Disney. Nascida como um clássico literário instantâneo, intitulado O Livro da Selva, de Rudyard Kipling, a história de Mogli foi criticada como um apoio descarado ao colonialismo, uma alegoria que trocava indianos e britânicos por animais e humanos, e insistia na superioridade dos últimos. Quase 70 anos depois de seu lançamento, Mogli virou uma animação pelas mãos de Walt Disney – de fato, o filme de 1967 foi o último da companhia a ser supervisionado por seu criador, visto que Disney morreu durante a produção do longa. Mudando radicalmente o plot do livro, o Mogli da Disney incluía canções e performers inesquecíveis para criar um hit de bilheteria certo e uma encantadora história sobre amadurecimento.

Uma continuação para o mercado de vídeo (em 2003) e algumas outras tentativas de adaptação da história original depois, a Disney voltou a investir na trama em Mogli – O Menino Lobo, e o resultado, talvez não surpreendentemente, acabou sendo uma mistura interessante de todos esses elementos da origem da história, e ao mesmo tempo uma evolução natural dela. O homem no comando é Jon Favreau, que ganhou a confiança do público, dos críticos e dos estúdios ao dirigir os dois primeiros Homem de Ferro – certificadamente, Favreau é um cineasta deslumbrado com as possibilidades do cinema contemporâneo, e ao mesmo tempo centrado o bastante em narrativa para fazer com que um filme funcione para além de seu visual ou de seus efeitos.

Em suma, ele é o homem certo para refazer Mogli – O Menino Lobo, na reimaginação esperta do roteirista Justin Marks (Street Fighter: A Lenda de Chun-Li), que consegue juntar o carisma dos personagens e uma série de referências respeitosas ao filme da Disney com o espírito alegórico e metafórico do livro de Kipling, tudo enquanto subverte a própria mensagem que Mogli sempre representou. De uma fábula sobre colonização mal-disfarçada, a história do menino que se perde dos pais, é criado por uma matilha de lobos na selva e caçado pelo maligno tigre Shere Khan se transforma em uma encantadora lição de convivência e adaptação às diferenças. Marks não tenta equalizar Mogli a seus co-habitantes animais na selva, mas permite que um aprenda com o outro para se tornarem, coletivamente, melhores.

É um princípio interessante para se manter em tempos que vemos tanta retórica anti-imigração por aí – a frente de um mundo notadamente xenofóbico e amedrontado, Mogli quer nos dizer que trazer alguém diferente para dentro de nossa casa contribui para a evolução natural de uma sociedade. Tudo enquanto Favreau passeia luxuriosamente por paisagens deslumbrantes criadas por efeitos especiais. Não há momento do filme que pareça artificial, mas o truque não é nem mesmo esse – ao lado de seus técnicos de efeitos especiais, Favreau cria um mundo que é ativamente deslumbrante, trabalhando ângulos de câmera que favoreçam o visual concebido e insiram o personagem humano (e estreante Neel Sethi) com cuidado, realismo e beleza plástica em um mundo digital.

Ajuda que o elenco de vozes reunido também seja perfeito, embora de forma óbvia, para os personagens. Quando o assunto é Baloo, Baghera, Rei Louie e Kaa, no entanto, é claro que o público quer percebê-los da forma como se lembra deles de sua infância, e Favreau acerta em cheio ao escalar seus dubladores de acordo com a personalidade dos personagens, sem correr riscos. É claro que Bill Murray dá um ótimo urso bonachão, corajoso e despreocupado; é óbvio que Ben Kingsley traz um quê de respeitabilidade para o admirável Baghera; e é mais do que evidente que o estilo inconfundível e excêntrico de Christopher Walken se presta admiravelmente ao Rei Louie. Idris Elba (Shere Khan), Scarlett Johansson (Kaa) e Lupita Nyong’o (Raksha) completam o elenco com trabalhos igualmente bacanas.

Se alinhando a outros dois filmes excelentes adaptados de propriedades intelectuais exploradas anteriormente em animação pela Disney (Malévola e Cinderela), Mogli – O Menino Lobo toma os riscos calculados que são próprios do estúdio do Mickey, e não é um pedaço de cinema essencial para entender o estado da cinematografia americana (ou da cultura pop) em 2016. No entanto, segue como um entretenimento bem-realizado que supera as deficiências de discurso de um filme anterior da Disney e o transforma em uma mensagem verdadeiramente positiva para qualquer público que venha a apreciá-lo. Mogli – O Menino Lobo corrige os defeitos de ambas as suas versões anteriores (em livro e filme) e encontra espaço para encantar, desafiar e ensinar o espectador. Não dá para pedir muito mais do que isso.

✰✰✰✰ (4/5)

jungle 2

Mogli – O Menino Lobo (The Jungle Book, Inglaterra/EUA, 2016)
Direção: Jon Favreau
Roteiro: Justin Marks, baseado no livro de Rudyard Kipling
Elenco: Neel Sethi, Bill Murray, Ben Kingsley, Idris Elba, Lupita Nyong’o, Scarlett Johansson, Giancarlo Esposito, Christopher Walken, Garry Shandling, Emjay Anthony
106 minutos

7 de set. de 2016

Review: “Mãe Só Há Uma” é uma delicada obra sobre um (des)encontro de gerações

mãe só há uma

por Caio Coletti

Por ser o novo filme da diretora Anna Muylaert, Mãe Só Há Uma chegou aos cinemas com a pressão adicional de seguir uma obra-prima como Que Horas Ela Volta?, que transformou a diretora em uma das mais proeminentes do cenário nacional. Para “piorar”, o filme vem com uma trama e um tema que, superficialmente, tem muito a ver com as mesmas questões abordadas pela diretora no filme anterior: em Mae Só Há Uma, acompanhamos a história de Pierre (o estreante Naomi Nero), um jovem que descobre, da mesma forma que no famoso caso real do menino Pedrinho, que a mulher que acha ser sua mãe (Dani Nefussi) na verdade roubou-o da maternidade. Com a mãe “adotiva” presa, ele é obrigado a conviver com uma família que passou quase duas décadas lhe procurando, mas que é composta por estranhos para ele.

O tema da familiaridade (no sentido mais profundo da palavra), a questão social em torno das classes diferentes às quais as “duas famílias” de Pierre pertencem, as complexas relações entre personagens que dividem um vínculo nem sempre racionalmente compreensível… De muitas formas, Mãe Só Há Uma é distintamente similar a Que Horas Ela Volta?, mas da forma como duas obras de um mesmo cineasta sempre serão similares. Explorar temas e idiossincrasias (no melhor sentido) de Muylaert, no entanto, não significa que Mãe Só Há Uma não é um filme também muito distinto de seu predecessor. No final das contas, a história de Pierre é muito mais uma história sobre o sequestro (e descoberta) de identidade que seu protagonista sofre ao descobrir o crime da mãe, do que sobre o sequestro de um recém-nascido.

A fascinação do roteiro de Muylaert com essa construção de identidade pela qual Pierre passa poderia soar como voyeurismo barato nas mãos de outra cineasta, mas a paulistana se alia a sempre competentíssima diretora de fotografia Barbara Alvarez para criar um filme que mergulha nas profundidades desse período conturbado da adolescência sem cair em chavões ou gratuidades. A ideia é retratar uma juventude que experimenta e explora para além dos limites arbitrários definidos por uma geração anterior a deles, que mistura significações de gênero e não se prende em uma sexualidade restrita a dois polos opostos, e nem por isso é confusa ou rebelde. No contraste entre os personagens de Naomi Nero e Daniel Botelho (o talentoso ator mirim que interpreta o irmão biológico de Pierre, Joca) existe uma compreensão e uma diversidade que em muitos sentidos não é compreendida por quem os vê de fora.

Abusando dos close-ups e das tomadas de detalhes da casa e dos ambientes frequentados por Pierre e sua família, a diretora de fotografia cria uma sensação de proximidade e nunca nos deixa perder as expressões e sensações mais sutis do desenrolar da história. Mãe Só Há Uma é um filme mais sensitivo e sinestésico que Que Horas Ela Volta?, que tomava seu tempo para deixar o espectador ruminar e entender as muitas mensagens e sutilezas de sua trama e seus personagens. Com menos de 1h30, o novo filme de Muylaert é urgente, caloroso, até repentino – e a cineasta sabe disso, e sabe como fazê-lo funcionar. A complexidade e excelência desse trabalho confirma a paulistana como um dos grandes nomes do cinema nacional moderno.

Se Regina Casé era o corpo e alma de Que Horas Ela Volta?, apoiada por uma Camila Márdila excepcional, em Mãe Só Há Uma vemos uma Daniela Nefussi gigantesca em tela, ganhando a atenção e a sensibilidade do espectador em uma atuação dupla (ela faz ambas as “mães” do protagonista, a sequestradora e a biológica) que impressiona tanto pela distinção das duas personagens quanto pela tremenda sensibilidade que demonstra ao retratá-las. Nero estreia com uma performance claramente esforçada, mas que não encontra todas as entrelinhas da jornada de Pierre – não é uma estreia estelar, mas mostra a promessa de um ator disposto a aprender com a experiência. Em papeis menores, atores como Matheus Nachtergaele e Luciana Paes abrilhantam as beiradas desse testemunho de humanidade com personagens coloridos e intensos.

Com um discurso cheio de camadas e um respeito pela identidade construída por Pierre e por seus arredores que ultrapassa a óbvia curiosidade de Muylaert sobre as experimentações de gênero do personagem, Mãe Só Há Uma é muito mais uma pérola independente do que Que Horas Ela Volta?, que se inseriu em uma discussão política e social muito maior, afetou um público mais amplo e teve impacto cultural naturalmente mais intenso. Não por isso ele é menos importante, no entanto, ou menos fascinante – em seu retrato honesto de um (des)encontro de gerações, Mãe Só Há Uma confirma um dos talentos mais delicados e espetaculares do nosso cinema, e encontra formas inteligentes de trazer para o cinema experiências e questões que raramente são vistas nele.

✰✰✰✰ (4/5)

mãe só há uma 2

Mãe Só Há Uma (Brasil, 2016)
Direção e roteiro: Anna Muylaert
Elenco: Naomi Nero, Daniel Botelho, Daniela Nefussi, Matheus Nachtergaele, Laís Dias, Luciana Paes, Helena Albergaria
82 minutos