Review: Dirty Computer (álbum e filme)

Janelle Monáe cria a obra de arte do ano com um álbum visual espetacular - e que desafia descrições.

Os 15 melhores álbuns de 2017

Drake, Lorde e Goldfrapp são apenas três dos artistas que chegaram arrasando na nossa lista.

Review: Me Chame Pelo Seu Nome

Luca Guadagnino cria o filme mais sensual (e importante) do ano.

Review: Lady Bird: A Hora de Voar

Mais uma obra-prima da roteirista mais talentosa da nossa década.

Review: Liga da Justiça

É verdade: o novo filme da DC seria melhor se não tivesse uma Warner (e um Joss Whedon) no caminho.

30 de mai. de 2011

Dez bons álbuns do primeiro semestre (Parte I)

lista musik I primeira

Se estivéssemos no ano passado, a essa altura do campeonato, no finalzinho dos cinco primeiros meses do ano, mal teríamos sobre o que falar por aqui na semana de música. Não que 2010 tenha sido ruim: tivemos alguns excelentes lançamentos, e as grandes marcas do pop continuaram fortes frente a concorrência. Mas que 2011 começou a todo vapor, isso começou. Teve volta de grandes medalhões do pop, retornos esperados, revelações que ainda vão dar o que falar. Mas não vamos nos perder em frivolidades mercadológicas e rótulos, embora elas sejam essenciais: todos os cinco primeiros (últimos na verdade) dessa lista de dez estão aqui não só por mérito comercial, como muito mais por mérito artístico. Porque 2011 tem se revelado um ano de, acima de qualquer coisa, muita música boa. Que assim seja e continue sendo.

lista albuns 2011 I

10ª posiçãoI Remember Me (Jennifer Hudson)

O segundo álbum da americana desclassificada do Idol da que virou o jogo, ganhou um Oscar e hoje é considerada umas das melhores vozes do showbusiness não passa nem perto do perfeito. Pelo contrário, é um ábum com poucas grandes canções, que tenta encaixar Jennifer em um nicho que não é dela (o do R&B contemporâneo) ao invés de colocá-la em seu ambiente natural (o soul, o blues, a música de raiz dos negros americanos), o que só a destacaria como a melhor do seu ramo em atividade. Ainda assim, uma voz como a de Hudson sabe nos fazer esquecer de tudo isso, e o primeiro single “Where You At” é exemplo de como ela não pode ser ignorada.

Os singles: Where You At - I Remember Me

Ouça também: I Got This - Don't Look DownBelieve

lista albuns 2011 II

9ª posição – Light After Dark (Clare Maguire)

Pense numa voz como a de Adele, com os trejeitos de interpretação de Duffy, mas uma produção mais descaradamente voltada para a cena pop, inclusive com toques de house music. Assim você tem uma ideia pálida do que é Light After Dark, álbum de estreia da inglesa Clare Maguire. Apesar de não ter emplacado nenhum hit, o grave profundo que é natural do timbre da cantora (embora ela alcance e sustente perfeitamente os agudos quando lhe é exigido) tem conquistado bastante gente por aí. Como álbum, Light After Dark é uma coisa tão nova, tão diferente, uma mistura de referências tão grandes, que pode não ser fácil de engolir. Mas tem seus momentos incontestáveis.

Os singles: Ain't Nobody - The Last Dance - The Shield and The Sword

Ouça também: Freedom - This is Not The End

lista albuns 2011 III

8ª posição – Charm School (Roxette)

Até os menos conhecedores da música oitentista vão se lembrar do Roxette ao ouvir “Listen to Your Heart”, o grande clássico do duo sueco que liberou no dia 11 de Fevereiro seu primeiro disco de inéditas em uma década. Isso devido a longa novela da vocalista Marie Fredriksson, que foi diagnosticada com câncer no cérebro em 2002.  O retorno tem sabor de vitória, com o duo mostrando versatilidade e, surpresa, uma vibe muito contemporânea dentro do mundo pop. Prezado por toda a crítica pelos ganchos geniais e pela temática variada, o Charm Shcool é um deleite produzido por quem já mostrou que entende do riscado.

Os singles: She's Got Nothing On (But The Radio) - Speak to Me

Ouça também: Only When I Dream - Dream On - Sitting on Top of The World

lista albuns 2011 IIII

7ª posiçãoWho You Are (Jessie J)

Para um álbum que carrega afirmação de identidade no título, o Who You Are, estreia da britânica Jessica Cornish sob o pseudônimo Jessie J, tem muitas facetas. E nem todas funcionam tão bem na voz da artista, talvez a grande revelação desse ano. Ainda assim, com todas as faixas assinadas pela própria, é um álbum que soa previsivelmente (no bom sentido) autêntico. Gosto pessoal é outra história, e é aí que entra o time de produção variado da cantora, entre os que preferem sufocar sua voz poderosa em arranjos exagerados (Warren Oak em “Rainbow” e “I Need This”) e os que realçam tanto sua interpretação quanto sua inegável habilidade de composição.

Os singles: Do It Like a Dude - Price Tag - Nobody's Perfect

Ouça também: Who's Laughing Now - L.O.V.E. - Stand Up

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6ª posição21 (Adele)

Há algo de muito especial em Adele que é dificil de colocar em um lugar específico. Talvez seja o fato de que o 21, ao contrário de seu álbum de estreia (o 19  foi uma celebração do amor), é um trabalho de separação. E é inegável que a melancolia casa brilhantemente com a voz forte, técnica perfeita e emoção pura da britânica. Não dá para dizer que é um álbum perfeito, mas a beleza de músicas como “Someone Like You”, o incrível cover do The Cure “Lovesong” e a mezzo-country “Don’t You Remember”, todas fortes no tom sombrio, fazem do trabalho uma das coisas mais dignas de nota, musicalmente, a saírem no mercado esse ano. 

Os singles: Rolling in The Deep - Someone Like You

Ouça também: Rumour Has It - Don't You RememberLovesong

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“So make your jokes/ Go for broke/ Blow your smoke/ You’re not alone/ But  who’s lauguing now?/ Who’s laughing now?/ So raise the bar/ Hit me hard/ Play your cards/ Be a star/ But who’s laughing now?/ Who’s laughing now?”

(Jessie J em “Who’s Laughing Now”)

Never mind, I’ll find someone like you/ I wish nothing but the best for you two/ Don’t forget me, I bet I’ll remember you say/ Sometimes it lasts on love, but sometimes it hurts instead!

(Adele em “Someone Like You”)

27 de mai. de 2011

05 eternos coadjuvantes

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O cinema tem dessas surpresas, e desses vícios. Quando um protagonista não é forte o bastante, quando uma linha narrativa não é sólida o bastante, e quando um ator bom o bastante é posto meio que de escanteio no papel, uma curiosa inversão pode acontecer, e o coadjuvante pode muito bem virar mais protagonista do que se esperava. Às vezes não é nem a qualidade do filme, nem a do ator principal: é só a notável pungência da interpretação desses coadjuvantes de garra que fazem, de uma hora para outra, um personagem secundário muito mais interessante do que se imaginava. Sim, mas que vícios são esses, me pergunta o leitor. Pois é: essas pequenas viradas de exepctativa hollywoodiana produziram toda uma classe de grandes atores que, quando vemos em cena, já identificamos imediatamente um “rouba-cenas” surgindo. É curioso pensar como esses talentos são menos reconhecidos, ao mesmo tempo que é estranho concebê-los protagonistas de uma história. Um paradoxo, enfim. Mas os cinco “melhores coadjuvantes” do cinema estão aí.

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5º lugarJohn Leguizamo

Colombiano e versátil, no mundo preconceituoso de Hollywood Leguizamo foi feito para ser o eterno coadjuvante. Desde que surgiu como um dos soldados de Pecados de Guerra em 1989, Leguizamo já embarcou em desastres como Mario Bros. (ele foi o Luigi) e Fim dos Tempos, o pior crédito na carreira de M. Night Shyamalan. Já contracenou com Al Pacino e Robert De Niro em As Duas Faces da Lei, e com o ex-governador da Califórnia em Efeito Colateral. Já dublou a preguiça Sid em A Era do Gelo, e marcou sua imagem como o boêmio anão Toulouse-Lautrec em um dos clássicos do nosso século, Moulin Rouge!, de Baz Luhrmann (que já o havia escalado em Romeu e Julieta). Enfim, você pode não saber seu nome, mas com certeza já viu um filme com ele.

Reconhecimento é? Deixe a indicação ao Globo de Ouro para lá. 1998 viu seu especial auto-biográfico de standup comedy para a TV, Freak, ganhar direção de Spike Lee e garantir para o nosso herói o Emmy Awards. Não fica muito melhor do que isso.

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4º lugar – Maggie Gyllenhaal

Não adianta esconder: em Hollywood, ter nome conta muito. E Maggie Gyllenhaal é prova disso, tendo estreado pelas mãos do pai Stephen em Terra D’Água (1992), aos quinze aninhos, e ganho projeção como coadjuvante do irmão Jake (ele mesmo) em Donnie Darko, meia década depois. Desde então, dá pra contar nos dedos seus papéis principais, o mais notável em Secretária, filme polêmico e elogiado de Steven Shainberg. Enquanto isso, ela esmprestou graça e talento em apoio a Julia Roberts no mediano O Sorriso de Monalisa, aquivou desempenho notável em As Torres Gêmeas, e ainda incrementou uma trinca de grandes filmes que não seriam tão grandes sem ela e sua incrível naturalidade: Mais Estranho que a Ficção, O Cavaleiro das Trevas e Coração Louco.

Reconhecimento é? Aí você escolhe: prestígio público (suceder Kim Bassinger, Nicole Kidman, Katie Holmes e outras como o interesse romântico de Bruce Wayne num dos filmes mais rentáveis da história) ou crítico (a indicação ao Oscar por Coração Louco).

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3º lugar – Geoffrey Rush

O caso de Geoffrey Roy Rush é um tanto estranho. Entrando tardiamente no cinema, o australiano foi se destacar, vejam só, com um protagonista: o de Shine, hit overseas do Oscar 1996 que o garantiu já na primeira tacada a estatueta de Melhor Ator. Mas calma, não reclamem da presença dele aqui: tirando Contos Proibidos do Marquês de Sade, o talento de Rush só se fez notar, depois disso, nos coadjuvantes. Vide as lembranças da Academia por Shakespeare Apaixonado e O Discurso do Rei. Mas nem só de Inglaterra vive esse australiano: não dá para não reconhecer que sua presença em Piratas do Caribe como o Capitão Barbossa se tornou tão indispensável quanto a do próprio ícone produzido pela série, o Jack Sparrow de Johnny Depp.

Reconhecimento é? Um Oscar (por Shine), três BAFTAs (Shine, Elizabeth e O Discurso do Rei), um Emmy (A Vida e Morte de Peter Sellers) e dois Globos de Ouro (Shine e A Vida e Morte de Peter Sellers). Quer mais? Tudo bem. Nos próximos anos a gente se vê.

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2º lugar – Helena Bonham-Carter

Da Dinamarca ao País das Maravilhas. Do Hamlet de 1990, que a projetou como a nova promessa britânica, até o Alice do marido Tim Burton, que praticamente leva a carreira da esposa nas costas desde O Planeta dos Macacos, de 2001, quando o casal de conheceu. Talvez o único papel notavelmente protagonista de Helena nesse tempo todo tenha sido o de Asas do Amor, que, não por coincidência, garantiu sua única indicação ao Oscar antes do fenômeno O Discurso do Rei no ano passado. Mas, como coadjuvante, Helena tem se mostrado formidável tanto sob o comando do marido (Sweeney Todd) quanto ostentanto o título de bruxa má tradicional na franquia Harry Potter. Sem contar o papel clássico em Clube da Luta.

Reconhecimento é? A verdade é que Helena não tem recebido muito. O Boston Film Festival a concedeu um prêmio de “Excelência Cinematográfica” já em 1997, mas o grande público custa a reconhecê-la fora da franquia Harry Potter. Uma pena.

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1º lugar – Paul Giamatti

É meio impossível pensar em outro ator, hoje, que roube de Giamatti o posto de coadjuvante mais caro a terra do cinema. Primeiro, porque ele está no ramo faz tempo: 1997 viu sua “estrela” subir ao lado da do polêmico Howard Stern em O Rei da Baixaria. E, desde então, ele não parou: antes da sorte começar a virar, coadjuvou em O Resgate do Soldado Ryan, O Poder Vai Dançar, O Planeta dos Macacos, e até em roubadas como Vovó… Zona e O Pagamento, além do clássico da Sessão da Tarde O Grande Mentiroso (não o do Jim Carrey). Foi o mini-fenômeno indie Sideways que o pôs em posição privilegiada entre os coadjuvantes. E, desde então, ele saiu incólume de A Luta Pela Esperança, O Ilusionista, A Dama Na Água, Mandando Bala e Duplicidade.

Reconhecimento é? Tanto talento depois, nem Hollywood pôde deixar de se render: o Oscar ainda não veio, mas o protagonista (sim, protagonista!) de A Minha Versão do Amor rendeu muitos elogios e um Globo de Ouro.

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Sabe, Blade, em algum momento você precisa pensar em se sentar e conversar com alguém. Ter um tempo para compartilhar as coisas. Retribuir. Entrar em contato com a sua criança interior e esse tipo de coisa? Além disso, eu estava pensando, você deveria pensar em piscar de vez em quando… Me desculpe, eu comi muito açúcar hoje”

(Ryan Reynolds em seus tempos de coajuvante, em “Blade:Trinity”)

“Um homem sábio uma vez me disse que só existe uma regra nesse mundo, uma pequena questão que rege todo o sucesso. Quanto mais um homem investe nessa questão, mais poderoso ele se tornará. Você consegue advinhar qual é essa questão, Sr. Green? ‘O que eu ganho com isso?’”

(Ray Liotta encarna Dorothy Macha no subestimado “Revolver”)

23 de mai. de 2011

JOGO RÁPIDO: “Amelia” + “Caçador de Recompensas”

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Amelia (Amelia, EUA/Canadá, 2009)

Uma produção da Fox Searchlight Pictures…

Dirigido por Mira Nair…

Escrito por Ronald Bass & Anna Hamilton Phelan…

Estrelando Hilary Swank, Richard Gere, Ewan McGregor, Christopher Eccleston, Joe Anderson, Cherry Jones, Mia Masikowksa…

111 minutos

Amelia Earhart foi uma mulher extrarodinária. Nascida no mesmo Kansas de Dorothy Gale, com o sotaque caipira americano típico soando forte na voz e o rosto pouco delicado para os padrões da época, Amelia assumiu as próprias estranhezas, compôs para si mesma uma persona naturalmente carismática e conquistou tudo o que almejava na vida. Era uma mulher sonhadora, que quebrou os preconceitos da sociedade em sua volta mais pelos próprios anseios do que pela importância “social” desse fato (sem menosprezar esta última, que fique bem claro). Acontece que Amelia não é só um símbolo: é um ser humano complexo e encantador. E Amelia, o filme, traz isso a tona, apoiando-se na personalidade cativante de personagem-título e no talento de Hilary Swank para prender o espectador por quase duas horas e ainda emocionar com um final nada convencional. Enfim, preços que se pagam por contar uma história real.

Ao contrário de sua personagem principal, no entanto, Amelia não é, como filme, nada de extraordinário. A diretora indiana Mira Nair (Casamento à Indiana) arranca belas paisagens e conta com a fotografia primorosa de Stuart Dryburgh para assistí-la nesse processo, mas não parece se esforçar muito para retirar o melhor de seus atores ou das situações que registra. É uma observadora fria, estética, que não chega a empolgar. O roteiro de Ron Bass (Amor Além da Vida) e Anna Hamilton Phelan (Garota Interrompida) faz um resumo um tanto inconstante dos anos de sucesso de Amelia, sem se aprofundar em sua infância ou formação, mas carece de um ritmo mais compassado, de um crescendo mais perceptível conforme o filme avança. Se há emoção fluindo de Amelia, a culpa é mesmo de Hilary Swank, em uma atuação detalhista e acertada, e de sua química com um inspirado (mas nem tanto) Richard Gere. Vale pela história real, e pela mensagem final: “qual é o valor de um sonho que conhece limites?”

Nota: 6,5

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Caçador de Recompensas (The Bounty Hunter, EUA, 2010)

Uma produção da Columbia Pictures…

Dirigido por Andy Tennant…

Escrito por Sarah Thorp…

Estrelando Gerard Butler, Jennifer Aniston, Jason Sudeikis, Christine Baranski…

110 minutos

Eu juro que não tenho nada contra Jennifer Aniston. Pelo contrári0, aliás. É até difícil descrever o quanto a moça me impressionou e surpreendeu no adocicado, mas profundo, Marley & Eu. Eu, que fui ao cinema esperando uma atuação matadora de Owen Wilson, algumas gracinhas e um final devastador, acabei absolutamente comovido pela personagem de Jen, em atuação brilhante. Mas, é fato: apesar de linda, talentosa e tudo o mais, a americana de 41 anos ainda não aprendeu a escolher seus papéis. Seus filmes são, quase sempre, daqueles “bonitinhos”, que todo mundo vê e acaba gostando, mas que não acrescentam nada a experiência (cinematográfica ou de vida) de ninguém. Caçador de Recompensas até tem uma premissa original: separado, o caçador de recompensas Milo (Gerard Butler) recebe a missão de prender a ex-mulher, a repórter Nicole (Jen), após esta faltar a uma audiência para conseguir pistas para uma matéria. Daí em diante, dá pra você imaginar (quase) tudo que ocorre no filme.

Como comédia, Caçador de Recompensas é até competente. Faz rir especialmente com a persona de Milo, encarnada com o carisma canastrão de sempre por Butler, um desbocado personagem que só posa de bem-sucedido. Para quase todos os efeitos, se o espectador pensar um pouco, Milo está longe disso. Jen, por sua vez, tem seus momentos cômicos, mas carrega quase toda a carga emocional do filme praticamente nas costas. Faz um bom trabalho, mas não é favorecida por um roteiro que se aprofunda na relação entre os personagens mas deixa as sutilezas de cada um quase de fora da mistura. Enfim, o Caçador escrito por Sarah Thorp (A Marca) é um bom filme de casal e uma boa comédia, mas não parece contar com personagens de verdade para se movimentar pela história que, aliás, pula de galho em galho sem saber o caminho certo a seguir. Ah, e como sempre nesses filmes “bonitinhos”, o diretor é mero acessório. Jen certamente merce algo melhor.

Nota: 6,0

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[Nicole]:A vida é sobre cometer erros”

[Milo]:E a morte é sobre querer ter cometido muitos mais”

(Jennifer Aniston e Gerard Butler em “Caçador de Recompensas”)

16 de mai. de 2011

Sobre… - “Judas”, os limites da arte e a liberdade de expressão.

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Ela sabe exatamente o que está fazendo. E ela o fez tão bem quanto poderia ser feito num video-clipe”. As palavras não sem nem minhas, nem de algum fã que compactue com a minha crescente noção de que Gaga é artisticamente excepcional. Pelo contrário, elas vêm justamente de quem mais tenderia a criticá-la na nova tour de force polêmica que foi o videoclipe de “Judas”, segundo single do vindouro álbum Born This Way, cujo lançamento está marcado para 23 de Maio: o nome é Steve Kellmeyer, um dos mais conhecidos escritores religiosos da ala conservadora nos Estados Unidos, e o post do qual foram retiradas as palavras originais, para que não me acusem de falta de contexto, pode ser visto em inglês aqui. Como Kellmeyer demonstra, servindo de exemplo, há uma grande diferença entre ser católico e ser mente-fechada. E são os segundos, não os primeiros, que vão teimar em engolir “Judas”. Vamos aos esclarecimentos.

Para começar, o único limite da arte está em seu próprio mundo: enquanto não interferir na liberdade de ninguém, o artista tem garantida a sua. Usar uma metáfora baseada em simbolismo religioso não deveria ser como mexer num vespeiro. Como ítalo-americana de família católica, Gaga já se declarou diversas vezes obcecada por arte e simbolismo sacro, e não é surpresa que use desse artifício, desse mote, para levar adiante sua mensagem e sua música. Num mundo que respeitasse e tentasse entender as particularidades de um artista, a religião em “Judas” seria vista como ela é: subterfúgio para uma piece de resistance corajosa, e não heresia (palavra usada aqui, justamente, para lembrar a inquisição). Porque, querendo ou não, a atitude é parecida. É como se nada que nos confrontasse e abrisse nossa mente tivesse garantido o direito de ser absorvido e filtrado pelo bom-senso (ou só “senso”, uma vez que ninguém pode julgar se ele é realmente “bom”). Clipe após clipe, Gaga nos dá uma ideia nova, sem no entanto dissonar da “Nona Sinfonia” que ela vem compondo com sua carreira.

Uma vez em tantas, não vou me estender por parágrafos a fio só pra explicar o que Gaga quis dizer com seu clipe. Vou tentar ser breve, e pra quem quiser aprofundamento indico a maravilhosa interpretação do clipe postada dias atrás no blog Haus of Abdala, uma visão realmente completa de como Gaga quis se expressar nesse vídeo. Resumidamente, há várias camadas de entendimento para “Judas”, e a mais superficial delas já mostra que todo o cenário religioso foi usado por Gaga para transmitir uma mensagem que é muito mais sociológica e cultural, como ela mesma disse. Só lendo a letra em profundidade já se descobre que “Judas” é uma canção agressiva, sim, mas que essencialmente toca na dualidade do amor. Então, quando Gaga canta que “Jesus é minha virtude, mas Judas é o demônio ao qual me agarro” (Jesus is my virtue, but Judas is the demon I cling to) ela está na verdade dizendo “eu sei o que me faz bem, mas não consigo e nem vou evitar o que me faz mal”. Ela explica: “Alguém um dia me disse ‘se você não tem sombras, é porque não está parado a plena luz’. Então a canção é sobre lavar os pés de ambos, o bem e o mal, e entender e perdoar os demônios do seu passado para seguir adiante em direção a grandiosidade do seu futuro”.

No entanto, como sempre, Gaga adicionou, com as imagens de sua obra, outra camada de coesão para “Judas”.  Uma que revela muito sobre a própria relação de Gaga com as críticas e com seu público. Sendo lavada pelas águas da purificação ao mesmo tempo que lava os pés do “bem e do mal” na seqüência sem música do clipe, Gaga abre os braços imitando o ato da crucificação e de certa forma martirizando sua entrega completa a essa nova experiência que é o álbum Born This Way. Como ela mesma disse em um dos Gagavision, a série de vídeos de backstage que ela faz para seus fãs, todo o processo de composição do álbum foi um esforço para se despir completamente das aparências, para se manter absolutamente autêntica em tudo o que ela fez, e ter a coragem de peitar o mundo com o que ela é. Então, com uma canção como “Judas”, sobre aceitar sua própria escuridão, Gaga aproveita a deixa e, em alguns versos e em uma única sutileza do seu clipe, inclui um sub-texto ainda mais corajoso. Com sua Maria Madalena sendo apedrejada ao invés de salva pela célebre frase “quem não tem pecado, que atire a primeira pedra” (e mais, sendo apedrejada justamente por agir de acordo com o que sente, não podendo matar Judas, o demônio interior que ela na verdade ama), Gaga alfineta quem a julga o Anti-Cristo ou simplesmente a dispensa por “mexer com religião” ou até por “ser pop demais”: “Se seu Deus perdoa e ama todo mundo, porque você me julga? Eu sou o que eu sou. Gostando ou não, respeite-me”.

Não sei se ainda vale a pena tentar esclarecer a relação Gaga-Madonna. Se “Born This Way” foi comparada sonoramente a “Express Yourself”, “Judas” precisou esperar o clipe para ganhar seu próprio paralelo com a carreira da rainha do pop. E o que surgiu da cartola dos críticos, de forma mais do que previsível, foi “Like a Prayer”. Mas, de novo, são recursos parecidos em serviço de mensagens diferentes. Como parte do imaginário popular, o simbolismo religioso sempre esteve e sempre vai estar presente no que se pode chamar de arte pop, porque o uso de recursos definidos e subvertidos do que se encontra no ideário cultural do público é justamente o que faz dessa forma particularíssima de expressão algo tão provocante e difícil de ignorar. Nos últimos tempos, temos nos acomodado a aquilo que não faz pensar, e é entendido sem esforço. E parece que, com a própria Madonna sumida do mundo pop, nos acostumamos a achar que ninguém tem direito a fazer arte pop depois dela.

E nada disso é exagero, ou pelo menos eu penso que não: poucas vezes desde que a arte pop ganhou os recursos e a configuração que tem hoje uma artista combinou talento excepcional para as trivialidades musicais do processo (porque, além de boa cantora, Gaga é uma compositora completa, extremamente criativa harmonicamente) com a coragem ainda mais admirável de soar completamente autêntica em todos os momentos. E mais rara ainda, talvez até sem precedentes, é a autenticidade desafiadora, bem-pensada e, porque não, revolucionária de Gaga. Eu, pelo menos, já aprendi muito com ela e, mesmo quando não aprendo, sei admirar uma artista que jamais mente para si mesma ou para quem a acompanha. Em “Judas”, Gaga canta que não consegue fugir dos seus demônios, e que é preciso aceitar-se por completo, com todas as suas trevas, para chegar a claridade. E, assim declara uma vez mais: “Essa sou eu, e nunca vou deixar de ser. Se for me amar, que seja por isso. Se não for, bom, você conhece a história do teto de vidro, não?”.

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In the most Biblical sense, I am beyond repentance: fame hooker, prostitute wench, vomits her mind. But in the cultural sense, I just speak in future tense: Judas kiss me, it offenced, or wear and ear condom next time.
I wanna love you, but something pulling me away from you. Jesus is my virtue, but Judas is the demon I cling to. I cling to!”

(Lady Gaga em “Judas”)

13 de mai. de 2011

BOT, por Vinícius Cortez (Parte II de II)

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O inspetor rodou pela sala por mais alguns minutos. Ora parava em frente à janelinha da porta como se quisesse chamar alguém a quem pedir ajuda, ora caminhava junto à parede com uma mão apoiando a testa. Se não fossem dois bots, Gabriel e Ian se assustariam com a aspereza da voz com que o inspetor ordenou ao último que saísse da sala. Houve uma breve hesitação, mas o bot acedeu e se retirou em silêncio.

— Gabriel, preciso que você desfaça sua ligação com a Central agora. — o tom imperativo que o inspetor usou não devia dar brecha alguma à desobediência, mas demorou algum tempo até que o bot respondesse que suas comunicações por ora estavam desligadas. O inspetor voltou a se sentar e juntou as mãos em frente aos rosto, com os cotovelos apoiados na mesa. Parecia estar prestes a implorar por algo. — Se te desativarem, sujando ou não o nome do Ministro, que diferença faz?

Pela segunda vez desde que entraram naquela sala, Gabriel pareceu esboçar alguma emoção, mais duradoura que a última. Aos olhos do inspetor, podia ser tanto surpresa quanto indignação, mas talvez fosse apenas uma emulação simples do movimento dos músculos de um rosto humano de verdade. O certo é que mais uma vez o bot alinhou sua cabeça ao resto do corpo, e só uma nota sutil como a de alguém que sentisse nojo de repente se revelou em sua voz:

— Você me pede que ignore as leis do seu próprio mundo.

— Eu não lhe peço nada. Só estou... sugerindo. Imagino que você se preocupe com o destino das nações, e acho que você sabe como o Presidente se preocupa em escolher homens bons para o ajudar. E o Figueira é um homem bom. — o inspetor deu um sorriso convidativo, esperando que suas palavras surtissem algum efeito positivo sobre a indiferença hostil de Gabriel. Dessa vez, porém, sem esperar um segundo para anunciar sua resposta, este disse:

— Um homem bom que eu encontrei estrangulando uma garota de vinte anos na cama do seu hotel. Será preciso que eu mostre meu vídeo mais uma vez? O Ministro teve sorte. Se eu soubesse do que ele era capaz, teria perdido mais do que um braço. — Sua voz ressoou no vazio da sala como um tinir metálico, completamente despido de piedade. — Eu acessei alguns dos registros policiais dos últimos períodos em que o Ministro estava viajando a trabalho, e tenho boas razões para acreditar que Helena nem sequer foi a primeira. É quase um esporte para ele, sempre antes das convenções em que discursa. Se eu o deixar ir, ele fará de novo...

A essa altura o Inspetor já segurava a cabeça nas mãos, como se estivesse quase desistindo. Não precisava que Gabriel lhe lembrasse de coisa alguma, porque da última vez fora ele mesmo que resolvera o problema. Era um outro bot secretário, um modelo bem mais antigo em cuja programação fora possível inserir uma linha de execução pela qual certos períodos de tempo bem específicos podiam ser apagados sem deixar vestígio. O inspetor ficara bem orgulhoso ao conseguir alterar o firmware original do bot, mas não podia prever o que estava por vir — um robô com crise de consciência. Se ela, a consciência, tivesse metade da força que tinha em humanos, não havia a menor esperança de que ele concordasse em apagar suas próprias memórias.

— ... e o problema de vocês humanos é tolerar demais. — Concluiu Gabriel, sem que ficasse muito claro porque chegara à última afirmação.

O inspetor se lançou para trás na cadeira, balançando gravemente a cabeça.

— E você achou que poderia consertar tudo?

— Aos poucos, sim. É muito menos do que vocês humanos imaginam, o quanto de atenção que precisam colocar para conseguir aquilo que realmente os faria felizes. Pelo aumento da sua frequência cerebral, vejo que não acredita em mim. Mas nós nos tornamos necessários para salvar o que ainda há de bom entre vocês. E o ministro é um homem mau.

O inspetor escutava sem dar muita atenção, seus olhos pousados em algum ponto debaixo da mesa, provavelmente sobre os seus pés. Quando Gabriel parou de falar, grunhiu baixinho da mesma forma que tinha grunhido quando ele mencionou sua frequência cerebral de novo. Finalmente, decidiu responder alguma coisa. Os olhos de Gabriel faiscavam atenção enquanto os lábios do inspetor se moviam devagar.

— Bem, Gabriel, você venceu: agora sei que tudo é possível. Até as calculadoras podem ter um senso de justiça de que nós não precisamos. — Lamentou. E aos poucos foi levantando os olhos até encarar o bot que o observava sem deixar escapar um movimento sequer. — O único problema de vocês, idealistas de carne ou de lata, é que são sinceros demais. Demais.

Dizendo isso, voltou a se endireitar na cadeira e sorriu como uma criança que acaba de ganhar um jogo. Levantou-se rapidamente e, dando passagem aos três bots escuros que marcharam porta adentro, segurava numa das mãos um pequeno quadrado preto, menor do que a sua palma. De repente, Gabriel também se ergueu, batendo com as duas mãos na mesa ao perceber a minúscula luz de rede do celular do inspetor acesa.

— O sinal não está tão forte, mas serve. — comentou em tom brincalhão — Já viu o seu?

v 2 v 3

Trevize franziu as sobrancelhas. ‘Como se decide o que é prejudicial ou não para toda a humanidade?’
’Precisamente, senhor’, disse Daniel, ‘Na teoria, a lei zero era a resposta para todos os nossos problemas. Na prática, nós nunca poderemos decidir Um ser humano é um objeto concreto. Dano a um ser humano pode ser medido e julgado. A humanidade, por outro lado, é só uma abstração’”

(Isaac Asimov, em “Foundation and Earth”)

11 de mai. de 2011

BOT, por Vinícius Cortez (Parte I de II)

Conto (nunk excl)v 2

A parede foi aos poucos voltando à sua cor original, acompanhando o desvanecer das imagens que há pouco estavam nela com um suave som quase como o de um folhear de páginas. O inspetor estava parado na cadeira, seus olhos arregalados e sua mão direita, a que não tamborilava nervosamente na mesa, coçando o queixo que já se cobria dos pêlos de uma noite insone.

— Então é isso, hum... — ele pigarreou — Era isso que estava nos seus arquivos de memória?

— Certamente, senhor.

A sala recaiu em silêncio enquanto o inspetor encarava o bot diante de si, tão rígido que era como se duvidasse da sua existência real. Tentava empregar toda a atenção em colher algum rastro de expressividade, alguma coisa em que pudesse fincar uma reprimenda e partir dali. Mas era inútil. Na sua mudez assepticamente impassiva, o bot parecia exatamente como um daqueles que não tinham sido ainda tirados da loja e ficavam exibindo sorrisos amáveis do outro lado das vitrines, esperando por novos compradores. Suspirou e tentou colocar nas suas palavras o tom paternalista que nunca teria usado com um criminoso comum.

— Você não parece entender toda a implicação dessas imagens, Gabriel. Você quase matou um homem. Um homem, entende? E está tudo gravado!

— Compreendo perfeitamente, senhor, mas sei que há de concordar comigo quando digo que o Doutor perpetrava atos contra os quais se dispõe em lei. Se o senhor deseja, posso lhe mostrar.

Dizendo isso, Gabriel mais uma vez se virou para a parede em branco. Emitiu um breve clique metálico e logo letras começaram a surgir onde antes nada havia. Eram linhas completas, numeradas por incisos, no que parecia claramente ser um código legal. Passou a ler em voz alta:

— Homicídio. Dolo qualificado em a), d), f): crime cruel, violento, vítima privada de defesa. — Então parou para observar por um momento o rosto consternado do inspetor. — Talvez deseje que exiba mais uma vez a passagem dos meus arquivos.

As linhas do código foram espremidas a um canto da parede e novamente o quarto do Professor apareceu em detalhe. A mesma porta se abriu deixando entrar o olhar despreocupado de Gabriel. Como há pouco, os braços de uma mulher pendiam para fora da cama, amarrados por fio encapado, e o Ministro, ajoelhado sobre ela, erguia as mãos como se as tivesse mergulhado em algo imundo. Demorava um segundo antes de perceber que não estava mais sozinho no quarto. Assim que via Gabriel, porém, se lançava em sua direção a princípio em silêncio, logo gritando furiosamente e...

— Basta, Gabriel! — exclamou o inspetor. — Já entendi da primeira vez que vi. Vocês bots acham que nós somos estúpidos, só porque não viemos de fábricas, como vocês. E pare já com esse zumbido, está me deixando louco.

— Desculpe, senhor. As orientações do Ministério da Saúde indicam que eu devo escalonar sua frequência cerebral sempre que for necessário. Tenho certeza de que sabe como mesmo os loopings desse quadro interativo podem interferir com esse padrão. Acredite que é para o seu próprio bem. Por favor, acalme-se.

O inspetor se levantou da cadeira de um salto tão repentino que até mesmo o bot atrás dele soltou um bipe de alarme, retesando quase que imperceptivelmente as fibras dos seus braços mecânicos. Já do outro lado da sala, girou nos calcanhares e parou de frente a Gabriel, sua expressão severa incapaz de disfarçar seu cansaço. Sem dúvida, esforçava-se para penetrar naquela máscara de gelo que era o rosto do bot, atrás de cujos olhos um pequeno kernel mental não parava de mensurar reações e sinais vitais, sem que no entanto qualquer dessas operações transparecesse no seu rosto. Não era a primeira vez que apreendiam um bot criminoso. Esse tipo de detenção sempre fora corriqueira desde a sua popularização anos atrás, e havia geralmente habilidade que bastasse para que os consumidores não se privassem de comprar seu novo modelo cozinheiro, ou renovar os encarregados pela faxina. Mas desta vez era diferente. Desta vez, tinha diante de si não um bot de inteligência ranqueada em baixos níveis operacionais: esses mal podiam responder perguntas usando mais de uma frase e seria ainda mais improvável que pudessem causar problemas para quem quer que fosse, senão para si mesmos. Na imensa maioria das vezes, os crimes cometidos por bots eram decorrências infelizes de falhas de programação, linhas de código que davam brecha a uma violência que não tinha razão de ser e que escapava a qualquer tipo de previsão. Aqui, porém, havia um modelo atualizado de I.A.A., Inteligência Artificial Assistencial, certamente moldado tendo como base os mais altos padrões de construção lógico-linguística, e portanto seria muito improvável que ele não soubesse o que fazia ou que fosse incapaz de se justificar em frente ao Comitê de Ética que certamente se formaria ao redor do caso. Sentado na sua cadeira e aparentando a calma de uma lagoa à noite, Gabriel escutou o inspetor pensar em voz alta:

— Mas foi logo a porra do Ministro da Educação...

Em casos normais, não seria preciso mais que um pedido para a avaliação dos arquivos de memória, e uma vez que fossem transferidos para qualquer chip físico, era muito mais fácil fazê-los desaparecer. Bots do governo, porém, estavam o tempo todo online, de modo que mesmo que o inspetor pedisse os arquivos para avaliação forense,

não podia estar seguro de que não havia cópias engatilhadas em servidores externos. Mas, bem, não custava muito ter certeza.

— Ian, quero os registros dele agora. — Disse afinal o inspetor, embora obviamente se dirigisse ao bot cinzento que ladeava a porta de saída. A ordem foi recebida com um bipe e logo o DEL-11 retornou resposta.

— Lamento, senhor, mas a conexão foi interrompida. Por razões de segurança, apenas um ID pode operar neste espaço da delegacia.

O inspetor, frustrado, virou-se novamente para Gabriel e voltou a coçar o queixo. O pequeno truque dera errado, e agora era evidente que o bot estava ligado ao mainframe do Governo, provavelmente dedicando uma parte da sua CPU a preparar um relatório detalhado do que corria naquela sala, palavra por palavra. Por um instante os traços finos da sua pele sintética se curvaram num sorriso de auto-admiração, um orgulho completamente impossível caso se tratasse de um bot mais barato — mas foi só isso, um só instante.

CONTINUA

v 1 v 3

0. A robot may not harm humanity, or, by inaction, allow humanity to come to harm.
1. A robot may not injure a human being, or, through inaction, allow a human being to come to harm.
2. A robot must obey any orders given to it by human beings, except where such orders would conflict the First Law.
3. A robot must protect its own existence as long as such protection doest not conflict with the First and the Second Law.

(As Quatro Leis da Robótica de Isaac Asimov)

9 de mai. de 2011

Delírio Noturno, por Caio Coletti

reflexão (nunk excruir)delirio 2

Que tipo de escritor eu sou? Não tenho insights, não faço comparações, não tenho desses momentos súbitos de inspiração. Talvez eu não seja um escritor, no final das contas. Talvez Rilke estivesse errado, e aqueles que realmente precisam escrever, aqueles que fazem de cada linha uma forma de descobrir a si mesmo, talvez esses sejam os destinados a serem qualquer outra coisa, que não escritores de verdade. Para se entregar por inteiro a ficção, é preciso não se entregar por inteiro a ficção. É, é uma contradição. Mas diga algo nesse mundo que não é, e eu retiro o que eu acabei de dizer. É preciso certa dose de distanciamento, um apego as idéias para além dos sentimentos, que eu acho simplesmente impossível de ter. O que eu escrevo não é o que eu penso, é o que eu sou.

Talvez eu esteja simplesmente fazendo do jeito errado. Talvez eu deva simplesmente parar por aqui, de enganar a mim mesmo e a você, caro leitor, mas a verdade é que eu não posso. Das imensuráveis vezes em que fiz essa mesma declaração, talvez essa seja a mais verdadeira. Eu não sei se faço o que estou fazendo direito. Mas, mesmo que não esteja, preciso fazer. De que outra forma eu viveria, que não pelas palavras? Dói escrever isso, e é perceber uma vida vazia de atos e vazia de sentimentos. Pode ser que eu esteja chegando ao fundo de mim mesmo agora, e pode ser que eu nunca mais volte. As palavras fazem minha vida. Minha vida culmina em mais palavras. E enquanto elas saem de mim em profusão, não consigo viver e dizer, viver e escrever, viver e sentir, tudo ao mesmo tempo.

Talvez (e quantos talvezes!) eu precise parar, pensar e desligar a música que enche meus ouvidos. Talvez eu deva simplesmente escurecer a tela do computador, jogá-lo pela janela, porque talvez sejam as palavras que estejam me destruindo por dentro. E quando o que eu faço de melhor me faz sentir como se fosse a pior pessoa do planeta? Ao mesmo tempo, escrever me dá um Norte. Um Norte que eu nunca poderei ter de outra forma. Viver é assim? Sem Norte, sem rumo, sem motivo, sem razão? Ou é simplesmente uma playlist em aleatório, uma mistura de sentimentos e motivações, raciocínios e métodos, que não levam a nenhum lugar, nunca, a não ser a um novo começo? Que labirinto! Que jornada finita mais infinita que nós nos arranjamos!

Talvez eu pense tanto que esqueça de viver. Também isso eu já disse várias vezes, e não sinto tanta verdade agora nessa sentença. Talvez tudo o que eu crie aqui seja uma enorme ilusão, e eu viva permanentemente nela. Talvez me faça bem viver nesse sonho-pesadelo constante e sem fim. Talvez seja melhor viver de cabeça para baixo, vendo tudo de uma forma diferente, sonhando o viver e vivendo o sonhar. Que diferença faz? Logo vou parar, e tudo vai voltar ao normal. No fim, é só um espetáculo tragicômico, em que a última risada, ou a última lágrima, é sempre a minha. Quem é alguém para me dizer o contrário?

delirio 1 delirio 3

Na hora mais escura da noite, confesse a si mesmo que morreria se fosse proibido de escrever. E olhe profundamente na sua alma, onde ela espalhas suas raízes, a verdade, e pergunte a si mesmo: eu preciso escrever?”

(Rainer Maria Rilke)

6 de mai. de 2011

Quem um dia irá dizer que não existe razão?, por Renan Barreto

reflexão (nunk excruir)renan 2

Certa vez estava eu caminhando sem uma direção a ser seguida, caminhando por caminhar. Ouvia uma bela canção, pensava no que escrever: um conto, uma poesia, um capítulo novo do mangá ou do livro que estava trabalhando. Mesmo que o mundo estivesse em plena ebulição, minha mente parecia mais conturbada e caótica do que quaisquer influências externas. O mundo para mim estava cinza e parado. Sem notar eu estava próximo à faculdade. Já se passaram alguns anos desde então. Foi quando a vi: belos cabelos, olhos brilhantes e o melhor de tudo, seu gosto por poesia a transformava na melhor das pessoas, quase lhe conferia poderes divinos. Não sei o que senti, mas sei que não era a primeira vez que sentia. Era amor, a matéria-prima de todas as relações humanas baseadas na cordialidade.

Meus desenhos cismavam em criar traços sozinhos como se eu não tivesse controle sobre eles. Sempre desenhava o mesmo rosto. Minhas poesias tornavam-se felizes subitamente e com a mesma velocidade só conseguia escrever de saudade. Ah! A saudade da pele macia e das deliciosas risadas daquela mulher que me encantava só por existir. Aquele incenso natural, um perfume sem igual... E lá vou eu escrever poesia novamente. A saudade dela era tão forte que qualquer piscar de olhos, mesmo que ao seu lado, se tornava no maior mergulho nas profundezas da escuridão eterna que poderia cair. Evitava até de piscar. Não queria perder um segundo ao seu lado. Como era boa a sensação de... Amar.

Os cadernos caíram junto com o lápis, a caneta vermelha e uma foto minha. Sim, ela tinha uma foto minha. Eu tinha um álbum dela todo decorado na minha mente. Afinal, fotos estragam com o tempo, envelhecem... Memórias não. As memórias são muito melhores do que os fatos realmente foram. Só por ter visto a minha fotografia fazendo parte do material dela, foi o bastante para me alegrar por um mês inteiro. Sorria sem necessidade, como o gato risonho de Lewis Caroll. Sim, eu possuía aquele sorriso inconfundível dos apaixonados, que viam em seu amor a fonte de todas as suas esperanças e resolução de seus problemas. Era a minha musa para todo trabalho. Não havia texto que ela não estivesse presente de alguma forma.

Não sei bem o porquê, mas dedicando-me tanto a ela, fui a aprisionando aos poucos nos meus pobres escritos. Percebi estar fragmentando sua imagem e transpondo-a nas minhas linhas, transportando também sua importância. Fragmentava então o meu amor. Ela estava por toda parte, mas não era ELA completamente. Eram ideias , pedaços virtuais de uma pessoa que sumia do meu coração para o papel.

Um dia estava ela por todo meu quarto. Estava presente em páginas e mais páginas. Enfim, ao meu lado com a forma que dei e com o conteúdo visto por mim. Era ela e não era. E para a saudade doer menos a recriei em mim e a coloquei no papel. Quando chegou o momento de ter matado a saudade, percebi que não havia mais amor. Ela também sabia disso. Éramos apenas duas almas que se conheciam. “’Talvez por medo de perdê-la de vez, que resolvi perdê-la aos pouquinhos. Não conseguiria viver com o fardo de perdê-la numa tacada só’, disse a mulher do padeiro” no Auto da Compadecida de Ariano Suassuna. Tenho certeza que foi o mesmo que senti.

Certo dia não a vi mais. Era só lembrança, uma bela memória que nunca se amarelará. Hoje ela possui outra foto no seu material e eu outra pessoa sobre quem gosto de escrever e que me mata de saudade.

A pergunta do título prefiro responder apenas no final do post: “Quem um dia irá dizer que não existe razão...?” perguntou Renato Russo em “Eduardo e Mônica”. Eu digo que não há. Não há razão no amor. Podem dizer que a procura pelo melhor parceiro seja seleção natural, mas não há razão num sentimento tão nobre (e talvez até inventado) que nos faça suspirar e nos dá força para mudar o mundo.

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http://renanbarretoonline.blogspot.com/

“…I’m not looking for us, and neither should you/ Absolutely gorgeous/ Then nothing I say it’s true/ You won’t find yourself in these guilty eyes…

Cause I love anybody who’s fool enough to believe/ And you’re just one of many who broke their heart on me/ And so I say I don’t love you/ Though it kills me…”

(James Blunt em “Love Love Love”)

2 de mai. de 2011

Incompleto, por Caio Coletti

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O que você me diz? Milhares de sub-tons me dizem para me acalmar, tomar um pouco de ar e sentir como se nada pudesse me segurar se eu caísse. Sozinho. Só assim eu consigo criar. Como se fosse a última pessoa do mundo, e como se tudo se resumisse ao que encerra meu corpo, tão pequeno e frágil perto da imensidão de um mundo capaz de esmagar cada um de nós com a mera pressão do ar a nossa volta. E nada é feito para fazer sentido. Nada. Nenhum acorde, nenhum número, nenhum objetivo, nenhum sentimento. É como se nos jogássemos de cabeça em um imenso e profundo oceano, um que jamais poderemos conhecer por inteiro. A não ser pelo fato de esse oceano estar dentro de nós mesmos.

Eu posso ter acabado de rir, de me atirar a cada oportunidade de amor que encontrei pelo caminho. Eu posso ter sido pouco cuidadoso comigo mesmo. Mas agora, aqui, com uma voz ecoando em meus ouvidos que “você ainda tem tudo de mim”, nada disso me vem a mente. Sozinho, calmo, o sono aos poucos tomando conta da minha mente, basta eu fechar os olhos para poder ver os seus. E que mais eu veria? Eu nunca me iludi achando que tinha te esquecido. Minha única mentira para mim mesmo é que eu poderia ser completo sem você do meu lado, e que eu posso aceitar, sem problemas, o fato de isso não estar acontecendo, como deveria estar, agora. Porque não há mais tempo. Não há mais chance.

Um dia eu posso te encontrar de novo, e será o momento certo, a conjunção certa, a percepção certa, o amor certo. Agora? Agora somos apenas um desencontrado e uma bem-resolvida. Um louco e a própria encarnação da sanidade. E enquanto eu me vejo chorando aqui, mais uma vez, posso imaginar seu sorriso, a alguns quilômetros de distância. E eu insisto, assim, em me perguntar: porque tão longe? Sim, um dia podemos nos encontrar. Mas será que eu poderei esperar até lá? O tempo tiquetaqueia sem piedade, é verdade, não poderia ser nem um pingo mais verdade, mas na minha cabeça, no meu sentimento, parece que cada segundo é o instante infinito e incompreensível de uma vida.

Mais uma vez sozinho. Mais uma vez entre não poder te deixar para trás e não poder viver se não puder ser ao seu lado, da forma como eu quero. Sei qual parte de mim vai sair vencendo. Certas necessidades são maiores do que qualquer vontade racional. E a luz que você deixa a cada passo me prenderá a você. Que tolo sou eu, sugerindo que não posso mais te esperar, quando cada vez que seus olhos brilham para mim e sua boca forma um sorriso, eu tenho a maior certeza do mundo: a que eu seria capaz de morrer esperando, eterna e finitamente incompleto.

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And I wanna walk with you on a cloudy day/ In fields where the yellow grass grows knee high/ So won’t you try to come?

Come away with me and we’ll kiss on a mountain top/ Come away with me and I’ll never stop loving you…”

(Norah Jones em “Come Away With Me”)