Review: Dirty Computer (álbum e filme)

Janelle Monáe cria a obra de arte do ano com um álbum visual espetacular - e que desafia descrições.

Os 15 melhores álbuns de 2017

Drake, Lorde e Goldfrapp são apenas três dos artistas que chegaram arrasando na nossa lista.

Review: Me Chame Pelo Seu Nome

Luca Guadagnino cria o filme mais sensual (e importante) do ano.

Review: Lady Bird: A Hora de Voar

Mais uma obra-prima da roteirista mais talentosa da nossa década.

Review: Liga da Justiça

É verdade: o novo filme da DC seria melhor se não tivesse uma Warner (e um Joss Whedon) no caminho.

14 de out. de 2017

Review: O Ato de Matar e O Peso do Silêncio são os dois filmes mais importantes da nossa década

look of silence act of killing

por Caio Coletti

Nenhum outro filme despertou em mim exatamente o mesmo sentimento do que O Ato de Matar. Quando os créditos subiram no documentário de Joshua Oppenheimer, o feito monumental de cinema que eu tinha testemunhado parecia minúsculo, insignificante, perto da força humanitária e do testemunho de moralidade complicada da obra. O Ato de Matar é um grande filme, mas eu não quero sair gritando aos sete ventos que ele é um grande filme – eu não quero indicá-lo para os meus amigos, falar sobre ele na mesa do bar ou nos espaços on-line reservados para discutir cinema.

O que transpira quando Oppenheimer faz contato com líderes dos “esquadrões da morte” da Indonésia e pede para eles reencenarem o terrível genocídio que eles comandaram em forma de cinema é uma daquelas raras peças de arte que são maiores do que si mesmas, maiores até do que o nosso conceito mesquinho e arrogante de arte. O Ato de Matar é um filme que faz o espectador lamentar, de forma profunda e visceral, sua própria existência – é uma obra colossal, fundamental e indescritivelmente terrível.

Há de se colocar as reações físicas e emocionais a ele de lado, no entanto, para entender tudo de essencial que o filme discute. O Ato de Matar é sobre a história como construção dos vencedores, sobre a mentira como um mecanismo de autoproteção (por toda a sua eficiência e sua fragilidade), sobre o contraste espantoso entre ficção e realidade, e, ao mesmo tempo, sobre como uma tem poder de refletir na outra. Ao expor de forma inclemente a humanidade de figuras políticas monstruosas, O Ato de Matar os banaliza e os diminui tanto quanto os faz ainda mais aterrorizantes – porque, chocantemente, eles não são tão diferentes de nós.

E então temos O Peso do Silêncio, espécie de “continuação” do filme anterior produzida por Oppenheimer dois anos depois. Para o segundo filme, o diretor inverte a perspectiva e nos apresenta com uma obra que, embora não tenha o mesmo efeito de “soco no estômago para nunca mais se esquecer”, eleva a complexidade da discussão e coloca o panorama devastador que Oppenheimer fez dos massacres indonésios em um patamar no qual nenhuma obra cinematográfica pode alcançá-lo tão cedo.

Dessa vez, acompanhamos um sobrevivente dos massacres buscando conhecer a história de seu irmão, que foi morto na época. Em uma série de visitas tensas, ele confronta vários dos chefes locais que ajudaram a assassinar milhões de ditos “comunistas”, em busca talvez de um senso de reconciliação – Oppenheimer vê empatia aparecendo pelas frestas do mundo sombrio que retrata, mas vê também a toxicidade que contamina todas as interações em uma comunidade, um país (enfim, uma humanidade), que viveu tais horrores. A reflexão profunda e a história frágil contada por O Peso do Silêncio acaba sendo tão marcante quando a ânsia e a exaustão que O Ato de Matar causam no espectador.

Combinar um exercício intelectual com uma exposição de humanidade em seus impulsos mais monstruosos foi o que Oppenheimer buscou fazer aqui – no meio do caminho, encontrou uma experiência que é muito mais do que artística (embora também o seja, e tão, tão fundamentalmente). Em um díptico pintado em tons de cinza, o documentarista cria os filmes mais importantes da nossa década justamente ao nos lembrar que o cinema nunca será capaz de abraçar, consertar, mudar ou retratar a realidade e suas consequências mais profundas.

look of

O Ato de Matar (The Act of Killing, Inglaterra/Dinamarca/Noruega, 2012)
Direção: Joshua Oppenheimer, Christine Cynn, Anônimo
115 minutos

O Peso do Silêncio (The Look of Silence, Dinamarca/Indonésia/Finlândia/Noruega/Inglaterra/Israel/França/EUA/ Alemanha/Holanda/Taiwan, 2014)
Direção: Joshua Oppenheimer
103 minutos

7 de out. de 2017

Review: O que incomoda em Mãe! é o cruzamento herético entre deuses e humanos

mother

por Caio Coletti

Um dos meus melhores hábitos (os bons não são muitos, acredite) é não criar expectativas para obras artísticas. Via de regra, busco me manter calmamente afastado do furor pelo lançamento de qualquer peça de cinema, TV, música ou seja lá o que for, a fim não de manter a objetividade ou a frieza ao finalmente poder assisti-la (ou lê-la, ou ouvi-la, enfim), mas de me manter aberto à subjetividade que ela quer me passar, ao invés de julgá-la a partir daquilo que esperava dela. No entanto, ao entrar na minha sessão de Mãe!, era impossível não sentir aquela curiosidade no fundo da cabeça, reprimida pelas minhas melhores tentativas de não ceder ao hype: O que será que incomodou tanto nesse filme?

As reações ao longa de Darren Aronofsky não poderiam ser mais polêmicas: Houve quem o amou, saudando a coragem e intensidade do filme como dignas do pesadelo que se via em tela; e houve quem o odiou, cunhando as expressões de sempre (“exercício de ego vazio” e suas inúmeras variações) ou reclamando, do ponto de vista conservador, do uso de símbolos e metáforas sacras para contar uma história de violência.Tinha isso em mente quando o título rabiscado do filme apareceu em tela, seguido imediatamente de um ponto de exclamação grosseiro, quase como que zombando da controvérsia que Aronofsky sabia que seu filme ia causar. Por outro lado, quando “The End of the World” tocou enquanto os créditos subiam, no final do filme, a dúvida (“O que em Mãe! incomoda tanto?”) não existia mais.

A trama de Mãe! (não há spoilers aqui) acompanha o casal formado por Javier Bardem e Jennifer Lawrence, que vivem em uma casa ainda em construção. Ele, um escritor; ela, uma dona de casa. Subitamente, chega por lá um homem (Ed Harris), que cria uma ligação com o personagem de Bardem enquanto Lawrence protesta (educadamente, em particular, como a boa esposa suburbana) contra sua permanência na casa. Logo, junta-se a ele a esposa (Michelle Pfeiffer), e a partir daí o roteiro de Aronofsky dispara uma série tensa de acontecimentos que atingem um crescendo até a odisseia alucinante do final. Metade drama doméstico, metade filme de guerra, e inteiro alegoria, Mãe! é, como cinema, um bicho estranho, que não liga para equilíbrio tonal e não se acanha em usar truques sujos para pegar o espectador desprevenido.

No entanto, ainda não é isso que incomoda sobre Mãe!, visto que Aronofsky é um mestre em dançar na ponta dos pés ao redor da percepção do espectador. O filme não tem qualquer trilha sonora artificial perceptível (o compositor Jóhann Jóhannsson chegou a escrever temas que não foram usados no corte final), mas usa a edição e mixagem de som com maestria para inserir o espectador em um ambiente acústico à flor da pele. O diretor de fotografiaMatthew Libatique, velho parceiro de Aronofsky, mantem a iluminação natural e, sem dúvida sob instruções do cineasta, passa uma enorme parte da metragem filmando o rosto de Jennifer Lawrence em close-up, sua pele de boneca enchendo a tela. Percebendo o desafio, a estrela entrega uma atuação que não é só puramente reativa, buscando personalidade em meio ao desespero que o roteiro joga em sua direção.

Ainda melhores estão outros dois membros do elenco. Bardem parece se deliciar com a missão de retirar as camadas de seu personagem lentamente durante o filme, elaborando sem medo o egocentrismo que guia cada uma de suas decisões, e encarando cada momento em que o roteiro aumenta o volume da paródia/metáfora que representa com tanto senso de aventura quanto coerência. Extravagante na medida certa, Bardem acerta o tom difícil do filme de Aronofsky na mosca, como o grande ator que é. Enquanto isso, Mãe! pede que Michelle Pfeiffer faça justamente o contrário, colorindo ao redor de uma personagem que é em muitos sentidos unidimensional – ela encontra um tom de humor negro tão refinado que, quando ela está em cena, é difícil prestar atenção em qualquer outra coisa. 

Não é nada disso que incomoda em Mãe!, no entanto. Saindo da minha sessão, a impressão é que o que enerva e envolve tanto no filme é a forma como a história contada por Aronofsky desnuda a mitologia da sociedade ocidental de seu misticismo e encontra nela observações minutas e detalhes sórdidos do nosso egoísmo, da nossa prepotência, da nossa teimosia, do nosso equívoco ao tentar entender conceitos como amor, devoção e perdão. Mãe! olha para os deuses que criamos e acha neles a reflexão da nossa pior natureza, e da verdade que nenhum de nós quer encarar: a de que cada ato, consequência, equívoco e desastre que acontece conosco, e entre nós e o meio em que vivemos, é de nossa responsabilidade.

Por toda a sua carreira, Aronofsky transformou humanos em deuses e demônios tortos. Réquiem Para um Sonho, Fonte da Vida, O Lutador, Cisne Negro, Noé – são todos filmes sobre homens e mulheres cujas obsessões, confusões, perturbações e arrependimentos os transformam em seres saídos direto de tragédias gregas grandiosas em que reis e rainhas se digladiam em meio a temas de vingança, degradação e glória. Acontece quando Nina abre suas asas na apresentação final de Cisne Negro, ou Randy sobe nas cordas do ringue para dar seu último pulo em O Lutador, ou Noé decide se deve ou não ouvir as ordens de Deus e matar um membro de sua família, ou Sara descende à loucura com seus remédios para emagrecer enquanto delira sobre estar em um programa de auditório em Réquiem.

Há 17 anos, Darren Aronofsky transforma humanos patéticos, sujos e de caráter duvidoso em deuses e mitos. Em Mãe!, o script se inverteu, e os deuses desceram à Terra para nos mostrar que, veja só, eles são mesmo só humanos, tão gloriosamente perturbados quanto os outros do diretor. É isso que realmente incomoda em Mãe!. Ele faz acreditar, mesmo que por meras 2 horas, que não há uma história maior, mais ideal ou mais pura – que isso que temos aqui é tudo o que jamais teremos. É um filme urgente, totalmente idiossincrático, que precisa ser respeitado e ouvido mesmo que todos os nossos instintos digam que não.

✰✰✰✰✰ (5/5)

mother

Mãe! (Mother!, EUA, 2017)
Direção e roteiro: Darren Aronofsky
Elenco: Jennifer Lawrence, Javier Bardem, Ed Harris, Michelle Pfeiffer, Brian Gleeson, Domhnall Gleeson, Jovan Adepo, Kristen Wiig
121 minutos