Review: Dirty Computer (álbum e filme)

Janelle Monáe cria a obra de arte do ano com um álbum visual espetacular - e que desafia descrições.

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29 de abr. de 2018

Review: Janelle Monáe lança a obra de arte do ano com Dirty Computer [Álbum e Filme]

dirty computer

por Caio Coletti

Em anos escrevendo sobre arte, é só uma a sensação que este humilde repórter que vos fala se vê perseguindo, consciente ou inconscientemente, o tempo todo – a de ver uma obra de arte e perceber que escrever sobre ela não vai ser o bastante. Talvez seja um grande paradoxo, querer tanto que meu próprio ofício seja descartável, mas há algo de especial na arte que desafia as palavras, embora tenha essencialmente vindo delas. Essa arte provem desafio, porque eu também sei assim que ela acaba que vou tentar escrever sobre ela, e provem o que os americanos chamam de reality check, um momento de realização da nossa pequenez frente aos outros e/ou ao mundo – nesse caso, à enormidade da expressão humana e dos dispositivos que inventamos para concretizar nossos pontos de vista em ficção.

Dirty Computer, tanto o disco quanto o média-metragem (ou emotion picture, um trocadilho com motion picture) de Janelle Monáe, é uma dessas obras desafiadoras que me confrontaram com a realidade do meu ego inflado de metido a crítico de arte. Assistindo aos 48 minutos postados no Youtube (assista mais abaixo), a complexidade das partes envolvidas em expressar essa visão específica de futurismo, sexualidade, opressão, política e círculo vicioso bateu tão forte na minha mente quanto a própria mensagem de rebeldia de Monáe, sem dúvida uma das (poucas) verdadeiras artistas pop de seu tempo.

Como música, Dirty Computer tem sido excessivamente creditado como uma grande homenagem a Prince, o recentemente falecido ícone oitentista. É claro que o disco tem referências à musicalidade do americano obcecado pela cor roxa, das guitarras riffadas e falsete esganiçado no refrão de “Make Me Feel” ao baixo funkeado de “Take a Byte”, mas Monáe vai além em seus sonhos futuristas - adiciona sintetizadores luxuosos em faixas como “Crazy, Classic, Life” e “Americans” e compressores de voz delicados em “Pynk”, pesa em influências roqueiras (“Screwed”)  e de hip hop (“Django Jane”), calca com muito mais força nas letras os seus pontos políticos do que Prince faria.

As letras, aliás – esse é o manifesto de juventude e liberdade de Monáe, o disco em que ela se liberta de suas metáforas e alter-egos para contar uma história mais autêntica que revela de sua sexualidade a seu ativismo. Ao mesmo tempo, milagrosamente, é um universo tão bem construído e bizarro quanto o de The ArchAndroid e Electric Lady, onde a cantora encarnou personagens diferentes para endereçar seus pontos de vista por cima de fantasias elaboradas. Mais do que isso ainda, Dirty Computer cria esse improvável universo de detalhes em um contexto distópico e pessimista que é casado sem esforço com a libertação das letras mais pessoais.

É aqui que Monáe canta sua pansexualidade recém-assumida, em que declara que “não precisamos de outro governante/ todos os meus amigos são reis” (em “Crazy, Classic, Life”), em que exorciza a rejeição de uma parte da indústria e da sociedade ao seu estilo (“Lembra quando disseram que eu era masculina demais?/ Magia de garota negra, vocês não aguentam”, na explosiva “Django Jane”). Também é aqui que ela insere sem medo (ou melhor, sem esconder o medo) suas opiniões políticas, riffando de forma esperta na agridoce e insanamente divertida “Screwed” que “nós vamos colocar água nas suas armas/ fazer tudo por diversão/ vamos ser f*didos”.

No filme que acompanha Dirty Computer, Monáe é uma mulher em um futuro distópico que é sequestrada pelo governo totalitário e tem a mente lentamente apagada para esquecer seu caso de amor com Zen (Tessa Thompson) e se tornar mais uma engrenagem na máquina bem azeitada do regime. Esteticamente impressionante, o filme se alimenta de influências de pop art muito mais do que das convenções simples da ficção científica distópica, tomando caminhos inesperados ao introduzir as “memórias” que são apagadas da mente da protagonista, mais recordações sensoriais do que reais. Podendo passear por expressões estéticas tão ousadas, Monáe e sua equipe criativa dão à luz um trabalho que só é “essencial” ou “importante” porque é, antes disso, personalíssimo.

Dirty Computer, como obra, se alimenta de muito do que veio antes dele – mas a característica que o distingue de qualquer outro álbum pop lançado em 2018 (ou em 2017, diga-se de passagem) é que ele também vai alimentar muito do que virá depois. Ele tem aquela qualidade intangível de uma obra que espetou a seringa direto na veia da cultura em que foi produzida, e adicionou ao seu sangue estagnado o próprio néctar da inspiração.

O mundo e a cultura vão ouvir Janelle Monáe nesse ano, não importa o que as paradas de sucesso ou o Grammy do ano que vem te digam a respeito, porque há algo muito menos quantificável envolvido aqui. É difícil imaginar que os próximos oito meses verão o lançamento de uma obra tão pura quanto Dirty Computer – obras melhores talvez surjam, mas nenhuma mais desse tipo que desafia as palavras de um crítico que, normalmente, tem muitas delas. Se você me perguntar, essas são as melhores.

dirty computer 2

Dirty Computer (álbum)
Lançamento: 27 de abril de 2018
Selo: Wondaland/Bad Boy/Atlantic
Produção: Janelle Monáe, Deep Cotton, Nana Kwabena, Roman GianArthur, Jon Jon Traxx, Wynne Bennett, Mattman & Robin
Duração: 48m42s

Dirty Computer (emotion picture)
Direção: Andrew Donoho & Chuck Lightning
Roteiro: Chuck Lightning
Elenco: Janelle Monáe, Tessa Thompson, Jayson Aaron, Michelle Hart, Dyson Posey, Jonah Lee
48 minutos

Diário de filmes do mês: Abril/2018

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por Caio Coletti

Nem todos os filmes merecem (ou pedem) uma análise complexa como a que fazemos com alguns dos lançamentos mais “quentes” ou filmes que descobrimos e nos surpreendem positivamente. É levando em consideração a função da crítica e da resenha como uma orientação do público em relação ao que vai ser visto em determinado filme que eu resolvi criar essa coluna, que visa falar brevemente dos filmes que não ganharam review completo no site. Vamos lá:

Melhor do mês:

1

Trama Fantasma (Phantom Thread, Inglaterra/EUA, 2017)
Direção e roteiro: Paul Thomas Anderson
Elenco: Daniel Day-Lewis, Vicky Krieps, Lesley Manville, Camilla Rutherford, Gina McKee, Brian Gleeson
130 minutos

Poucos cineastas são capazes de apresentar uma experiência tão inclementemente pessoal para os seus espectadores quanto Paul Thomas Anderson. Seus filmes são idiossincráticos além de qualquer dimensão – não porque são excêntricos, como os de Tarantino ou Lynch, mas porque apostam em sutilezas e emoções que só Anderson é capaz de elaborar. Trama Fantasma é um conto perturbado de amor e abuso, com um acompanhamento de sátira amarga e refinadíssima, que confia quase cegamente em seus atores para navegar por esse tom complicadíssimo de narrativa e dar vida a um universo ficcional indefectível, que por 130 minutos (e mais) parece tão real quanto o nosso, embora seja tão implausível e melodramático de suas próprias formas.

Parte dessa elaboração está na trilha de Jonny Greenwood e nos figurinos (oscarizados) de Mark Bridges, que passeiam com elegância e pulso firme pelo filme, explorando caminhos surpreendentes e até então inabitados no cinema. Parte está nas performances magistrais dos três protagonistas – começando com Daniel Day-Lewis, que acerta um último (se você escolher acreditar em sua aposentadoria) strike de imersão em uma carreira cheia deles, criando um Reynolds tão odiável quanto envolvente, tão bizarro quanto crível. É verdade que ele já tem três em casa, mas, atuação por atuação, Day-Lewis é de longe a melhor (de novo) que concorreu ao Oscar de Melhor Ator em 2018.

Ao seu lado, Vicky Krieps e Lesley Manville não só arrumam um jeito de não serem apagadas ou obliteradas por esse gigante da atuação, como encontram espaços únicos para brilharem. Ou melhor, o roteiro de Anderson as concede esses lugares, e elas usam-nos e transcendem-nos com maestria – em particular Krieps, que expressa tremenda habilidade para dominar a cena quieta, quase secretamente, da forma que poucas atrizes na memória recente conseguem. Day-Lewis não consegue dar um golpe perfeito em nenhum momento dessa batalha de atuações, e isso é um tributo às suas adversárias.

O filme feito por Anderson, que também agiu como diretor de fotografia, embora não creditado, em um trabalho verdadeiramente deslumbrante, é uma experiência cinematográfica que merece a entrega completa de seu espectador, uma viagem emocional e sensorial que puxa o tapete do público com um final afiado e inesperado, do tipo que faz perguntar: “O que eu esperava, afinal?”. Mais uma vez, um dos grandes cineastas da nossa época fez o único filme que poderia fazer, da forma mais perfeita que conseguiu.

✰✰✰✰✰ (5/5)

Pior do mês:

2

Assassinato no Expresso do Oriente (Murder on the Orient Express, Malta/EUA, 2017)
Direção: Kenneth Branagh
Roteiro: Michael Green, baseado no livro de Agatha Christie
Elenco: Kenneth Branagh, Daisy Ridley, Leslie Odom Jr, Manuel Garcia-Ruffo, Penélope Cruz, Josh Gad, Johnny Depp, Derek Jacobi, Lucy Boynton, Sergei Polunin, Michelle Pfeiffer, Marwan Kenzari, Judi Dench, Olivia Colman, Willem Dafoe
114 minutos

Em minha pré-adolescência, devorei mistérios de Agatha Christie à guisa de café da manhã. Na época, não entendia exatamente todos os méritos da rainha do suspense como escritora, mas sabia instintivamente que seus livros tinha uma qualidade única, uma corrente mais profunda do que eles aparentavam, por baixo do charme de época e das tramas bem urdidas. Assasinato no Expresso do Oriente, a nova versão de um dos maiores clássicos da Christie para o cinema, chega perto de capturar essa observação social inclemente, essa entrelinha emocional poderosa, da literatura da inglesa – mas não perto o bastante para funcionar.

Ao criar e recriar os passageiros do trem do título, todos suspeitos da morte de um de seus companheiros de viagem, o diretor Kenneth Branagh e o roteirista Michael Green se dão espaço para explorar um caleidoscópio enorme de cores, tons, comportamentos. O espírito de Christie parece vivo por um instante, mas o script também sente a necessidade de introduzir ação à história, assim como uma trama de fundo romântica que inexistia no original – e o problema desses elementos não é que eles divergem do livro, mas sim que absolutamente não funcionam em conjunção ao restante dele.

Um filme dividido entre devoção e inovação (e que é extraordinariamente ruim nessa última) só decola nos breves momentos em que confia em um elenco estelar para mais do que meras superficialidades culturais – especificamente, Daisy Ridley e Michelle Pfeiffer são melhores servidas com desenvolvimento de personagens e cenas emocionalmente fortes. O sucesso inesperado de Assassinato no Expresso do Oriente mostra que as criações de Christie ainda tem poder de fascínio – uma pena que tenham chegado tão descaracterizadas e insípidas ao cinema.

✰✰✰ (2,5/5)

Surpresa do mês:

3

Terror nos Bastidores (EUA, 2015)
Direção: Todd Strauss-Schulson
Roteiro: M.A.Fortin, Joshua John Miller
Elenco: Taissa Farmiga, Malin Akerman, Alexander Ludwig, Nina Dobrev, Alia Shawkat, Thomas Middleditch, Adam Devine, Angela Timbur, Chloe Bridges
88 minutos

Paródias de terror e filmes que tentam se aproveitar do trash para fazer um dinheiro rápido em cima de um público muito específico não faltam – mas poucas tem a clareza de visão e a vontade de reinventar a roda como Terror nos Bastidores, do diretor Todd Strauss-Schulson. O longa de rápidos 88 minutos presta homenagem real à linguagem dos filmes de slasher dos anos 1980, não apenas às suas convenções de trama – os ângulos e movimentos de câmera, truques de iluminação e design de produção estão todos aqui, se esparramando em cima de uma trama que é uma confortável sátira das partes que pior envelheceram nessas narrativas.

Muitos filmes pretendem brincar com clichês, mas poucos os endereçam tão diretamente, e os subvertem com tanto prazer, quanto Terror nos Bastidores. A trama compreende a filha (Taissa Farmiga) de uma estrela dos anos 1980 (Malin Akerman) que, anos depois da morte da mãe, comparece a uma exibição especial do filme de terror que ela estrelou décadas atrás, apenas para se ver literalmente transportada para dentro da obra de ficção, onde precisa se juntar à personagem da mãe para fugir de um assassino. Tanto nos papéis centrais de mãe e filha quanto nos amigos ficcionais e reais de ambos, o filme busca retratar (sem perder o bom humor ou a reverência) a busca muito real para transcender uma convenção limitante e preconceituosa.

Ajuda que as protagonistas Akerman e Farmiga dividam não só semelhança física como também trajetória profissional – ambas começaram em projetos que não exploravam seus potenciais dramáticos e encontram, aqui, uma válvula de escape deliciosamente improvável para talentos que Hollywood, largamente, ainda não sabem aproveitar. Com bons papéis nas mãos, essas duas poderiam fazer muito, muito mais do que lhes foi exigido até agora na carreira.

Com um final eletrizante e o melhor uso do clássico oitentista “Bette Davis Eyes” em muito tempo, Terror nos Bastidores é um exemplo de como repaginar clichês e convenções não é necessariamente um sinal de mal cinema. Pelo contrário, há um poder inegável em apelar para a nostalgia e, então, subvertê-la de maneira decisiva para sinalizar a chegada de uma nova era na forma como contamos histórias na sala de cinema. Menos visto do que merece, Terror nos Bastidores é tudo o que você pode pedir de uma sessão de entretenimento – e um delicioso pedacinho de “algo a mais”.

✰✰✰✰ (4/5)

Decepção do mês:

4

O Rei do Show (The Greatest Showman, EUA, 2017)
Direção: Michael Gracey
Roteiro: Jenny Bicks, Bill Condon
Elenco: Hugh Jackman, Michelle Williams, Zac Efron, Zendaya, Rebecca Ferguson, Keala Settle, Sam Humphrey, Yahya Abdul-Mateen II, Paul Sparks
105 minutos

Se vocês quiserem, podemos deixar de lado o fato de que O Rei do Show distorce e reabilita a imagem de um dos empresários mais inescrupulosos, exploradores, mentirosos e preconceituosos da história. Sim, P.T. Barnum, o criador do circo, dizia que elefantes e outros animais não podiam sentir dor como forma de justificar o maltrato deles em seus estabelecimentos, e explorava a imagem de indivíduos com deformidades e deficiências ao mesmo tempo em que se recusava a inclui-los nos louros que recebia. Sim, a história de reabilitação e “caída na real” que vemos aqui sobre seu abuso dos funcionários do circo foi totalmente inventada para O Rei do Show – e nós não deveríamos ignorar essa desonestidade histórica, mas tentemos ignorar por um momento. Ainda assim, o longa de Michael Gracey é simplesmente medíocre.

Medíocre à despeito das poucas qualidades realmente inegáveis que tem, diga-se de passagem – a maioria do elenco tem vozes definitivamente impressionantes (Rebecca Ferguson dubla sua canção, “Never Enough”, mas mesmo para isso a equipe encontrou uma grande vocalista, Loren Allred); as música da dupla Pasek & Paul, a mesma de La La Land, fluem de forma melodiosa pela maior parte do tempo; e o elenco brilha, ao lado da equipe de dançarinos, nos números musicais. É tudo o que cerca esse trabalho técnico que não funciona, no entanto, e a insistência de Gracey e companhia em evitar qualquer tipo de risco criativo de qualquer natureza.

Os rápidos 105 minutos do filme combinam com a profundidade nula do roteiro de Jenny Bicks e Bill Condon, que celebra seus protagonista de forma desonesta, auto-congratulatória (afinal, Barnum é creditado como “o criador do showbusiness”) e superficial. O Rei do Show não é um filme desagradável, mas só porque gasta muita energia para não ser, tentando a todo tempo escapar de suas armadilhas morais e caráter dúbio – é o tipo de filme feito para ganhar aplausos, ao invés de contar uma história, e que por isso mesmo parece não merecê-los. Jackman e companhia mereciam (e deviam saber) melhor.

✰✰✰ (3/5)

… E mais alguns:

5

Viva: A Vida é uma Festa (Coco, EUA, 2017)
Direção: Lee Unkrich, Adrian Molina
Roteiro: Adrian Molina, Matthew Aldrich
Elenco: Anthony Gonzalez, Gael García Bernal, Benjamin Bratt, Alanna Ubach, Renee Victor, Jaime Camill, Alfonso Arau, Gabriel Iglesias
105 minutos

Há muitas virtudes que são constantemente celebradas em filmes da Pixar, a empresa de animação mais premiada e elogiada do cinemão americano, e nenhuma delas é falsa. A política de priorizar os roteiros, e contar histórias emocionalmente complexas, benéficas e instigantes em uma linguagem que não insulta a inteligência do público infantil é mesmo exemplar; a qualidade pura da animação é mesmo de ponta; a consistência que o estúdio mostra em sua produção é invejável, apesar de derrapadas como a franquia Carros. O que pouco se fala, no entanto, é da capacidade da Pixar de criar universos verdadeiramente completos para seus longas metragens, criações cinematográficas verdadeiras e coerentes, não só encantadoras como plenamente convincentes – e, justamente por isso, tão envolvente.

Viva: A Vida é uma Festa demonstra porque essa construção de universo, capitaneada pelos diretores Lee Unkrich e Adrian Molina, assim como o designer de produção Harley Jessup, precisa ser mais venerada. Isso porque Viva não é um roteiro de emoções e mensagens tão complexas e geniais, transmitidas de forma tão intrinsicamente compreensíveis, quanto Divertida Mente ou Toy Story 3. O roteiro de Molina com Matthew Aldrich é, sim, uma viagem fascinante e respeitosa pela cultura mexicana, uma história povoada por personagens carismáticos que existem para afirmar um ponto positivo sobre criatividade, família e afeição.

Nada disso é excepcional da forma como esperamos que a Pixar seja, no entanto. O que eleva Viva de uma boa história familiar a um grande filme é o trabalho criativo que dá vida a um universo colorido e deslumbrante, mas também rico em passado e tradições, estupendamente idealizado e realizado, e que por isso é mais vívido, mais inextricável da memória, do que incialmente poderia parecer. A sensação de positividade que Viva, com sua bela música tema e seu final feliz, deixa com o subir dos créditos dura mais do que outros filmes com as mesmas qualidades, e foi o diferencial Pixar que criou isso – está na hora de realmente reconhecê-lo.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

6Corpo Elétrico (Brasil, 2017)
Direção: Marcelo Caetano
Roteiro: Marcelo Caetano, Gabriel Domingues, Hilton Lacerda
Elenco: Kelner Macêdo, Lucas Andrade, Welket Bungué, Ana Flavia Cavalcanti, Ronaldo Serruya, Marcia Pantera, Mc Linn da Quebrada
94 minutos

O “efeito novidade” pode fazer muito por um filme, mas não pode fazer tudo. Corpo Elétrico é uma novidade e tanto no cenário do cinema nacional – nunca antes vimos um retrato tão honesto e direto de uma juventude LGBT de classe média/baixa, que transita por um mundo genuinamente contemporâneo de aceitação, sim, mas também micro agressões homofóbicas e medo. No entanto, por mais que mantenha um tom observacional ao invés de calcar-se em uma trama prática e convencional de três atos, Corpo Elétrico nunca se escora completamente nessa novidade. Ao contrário, é um filme muito vívido, que existe para muito mais do que apenas mostrar o que nunca foi mostrado antes – sua observação, enfim, tem propósito e uma perspectiva única para comunicar ao espectador, e suas escolhas estéticas e de diálogo nos dizem tanto quanto o cenário no qual elas são feitas, e seu efeito na vida real, do outro lado da tela.

O protagonista é Elias (Kelner Macêdo), que mora sozinho em São Paulo e passa seu tempo trabalhando em uma fábrica de roupas, saindo com os amigos, ou pendulando entre um amante e outro. O filme de Caetano acompanha essa pendulação de perto, e com um olhar generoso para as fantasias de Elias, interpretado com natural sensualidade e incerteza por Macêdo, claramente borrando as linhas entre ator e personagem. Se o filme é sobre o seu “corpo elétrico”, sobre sua inquietude, Macêdo compõe um Elias cujo estilo de falar arrastado e gentil esconde uma ânsia de vida gigantesca, do tamanho do mar – ele é uma figura familiar, sem nunca perder por isso sua qualidade de personagem fascinante.

Nas margens de Elias (apenas para efeitos de narrativa), um grupo diverso de personagens, LGBTs ou não, que se movimentam de maneira única para dentro e para fora da vida íntima do protagonista. Impossível não destacar a efervescente Linn da Quebrada como Simplesmente Pantera, trazendo o ativismo irrestrito de sua música para o filme, e um senso de sexualidade desavergonhado que é encantador. Encantador como o todo de Corpo Elétrico, que nos submerge em seu mundo inexplorado com uma mistura bem dosada de ficção e realidade, uma narrativa estruturada por temas mais abstratos e ritmos mais intangíveis do que o cinema costuma exigir, especialmente no século XXI.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

7Sem Fôlego (Wonderstruck, EUA, 2017)
Direção: Todd Haynes
Roteiro: Brian Selznick, baseado em seu próprio livro
Elenco: Millicent Simmonds, Julianne Moore, Cory Michael Smith, James Urbaniak, Damian Young, Oakes Fegley, Jaden Michael, Michelle Williams, Tom Noonan
116 minutos

Só Todd Haynes poderia ter feito Sem Fôlego. O livro de Brian Selznick, como de costume pouco afeito a adaptações, se transformou em um filme “difícil”, mas verdadeiramente encantador, especialmente pelo cuidado que seu diretor dispensa a cada elemento dele. No fundo, essa é uma história simples e esperta sobre família, memória e a forma como estamos todos ligados pela história dos lugares que frequentamos, como humanidade e como indivíduos. Haynes é o condutor de uma sinfonia afinadíssima em Sem Fôlego, que recompensa o espectador que viajar com ele para os lugares inesperados que pretende nos levar com a história de duas crianças, Rose (Millicent Simmonds) e Ben (Oakes Fegley) passando por jornadas similares ao fugirem de casa para Manhattan (EUA) na busca de pais ou mães distantes. A história de Rose se passa em 1927, é filmada em preto-e-branco e não faz uso do som, criando paralelo com a surdez da personagem; a de Ben se localiza em 1977, é feita em cores e não é muda, embora o jovem também seja parcialmente surdo.

Selznick adapta seu próprio livro sobre o encontro entre essas duas histórias com esmero e clara afeição pelo material, desenhando uma estrutura delicada que nem sempre funciona de forma cinemática da mesma forma que funcionava no âmbito literário. Essas deficiências, no entanto, são superadas por trabalhos francamente espetaculares de fotografia (Ed Lachman), design de produção (Mark Friedberg) e trilha sonora (Carter Burwell, em um trabalho que é pura obra prima), que criam um mundo tão palpável quanto lúdico para combinar com a obsessão do filme por museus, armários e manifestações artificiais da história natural.

Sem Fôlego é uma experiência ainda mais recompensadora graças aos dois protagonistas mirins – Fegley realiza um trabalho perfeitamente adorável e expressivo, mas Simmods em particular impressiona com uma atuação  que percorre um leque extenso de emoções com facilidade e carisma. A performance sentida da protagonista carrega até as partes menos envolventes de Sem Fôlego, que sofreria muito mais com as dores da difícil transição do livro para os cinemas se não fosse tão supremamente bem realizado em todos os sentidos. Resistir ao sono causado pelo estranhamento com o formato do filme, aqui, vale muito a pena.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)