Review: Dirty Computer (álbum e filme)

Janelle Monáe cria a obra de arte do ano com um álbum visual espetacular - e que desafia descrições.

Os 15 melhores álbuns de 2017

Drake, Lorde e Goldfrapp são apenas três dos artistas que chegaram arrasando na nossa lista.

Review: Me Chame Pelo Seu Nome

Luca Guadagnino cria o filme mais sensual (e importante) do ano.

Review: Lady Bird: A Hora de Voar

Mais uma obra-prima da roteirista mais talentosa da nossa década.

Review: Liga da Justiça

É verdade: o novo filme da DC seria melhor se não tivesse uma Warner (e um Joss Whedon) no caminho.

30 de mar. de 2015

Por que não devemos comprar a ideia do Tidal, o novo serviço de streaming do Jay-Z?

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por Caio Coletti

Esse primeiro parágrafo está aqui só para o caso de você, caro leitor, ter passado os últimos dias escondido embaixo de alguma pedra por aí: desde a noite de domingo, dia 29, só de fala no Tidal, plataforma de streaming adquirida pelo rapper e magnata da música Jay-Z para declarar uma guerra não-oficial ao Spotify e seus outros primos menos conhecidos. No mercado desde o início de 2014, foi o empurrãozinho do Sr. Carter que fez o Tidal adquirir a proporção global e chamar a atenção de qualquer fã de música que preza pelo que está ouvindo. A conversa parece toda muito bem-intencionada, afinal: dar aos artistas uma quantidade maior de lucro pelas execuções de faixas em serviços de streaming, criar uma comunidade de ouvintes fidelizados, dar mais controle aos artistas sobre como e quando lançam sua música. Alardeado pelos apoiadores como “uma revolução”, com uma campanha baseada em frases megalomaníacas como “juntos nós não podemos ser parados” e chamado por alguns de “o Robin Hood” da música contemporânea, o Tidal quer arquivar tudo isso através do que chama de uma artist-driven community (o que quer que isso signifique) e um preço de assinatura que é praticamente o triplo do que cobra hoje em dia o Spotify – a mensalidade do Tidal está saindo por US$20, ou em torno de RS$60.

Acontece que, de forma nem um pouco surpreendente, toda essa campanha de marketing maquia uma série de verdades que fazem o lançamento do Tidal uma das enganações mais ultrajantes do showbusiness nos últimos tempos. Tanto é assim que algumas vozes já se levantaram contra a disseminação da ideia, mais notadamente a cantora inglesa Lily Allen, que dissertou em seu perfil no Twitter sobre suas reservas quanto ao lançamento de Jay-Z e companhia. Adiantamos que a gente tentou simplificar a conversa, mas o assunto é complexo e acabou saindo um textão – esperamos que vocês dediquem um pouco de tempo e paciência para entender porque, para nós d’O Anagrama, essa história de Tidal é uma bela de uma roubada. Vem:

“Eu acho ótimo, eu amo. Eu acho brilhante, e vou te dizer o porquê… música deveria ser compartilhada. (…) Está tudo bem pra mim se uma pessoa compra meu disco e o copia, divide com os amigos. Eu não me importo. Não me importo como você me ouve, me importo que você me ouça”. A declaração acima veio da boca de Joss Stone, a inglesa de 27 anos que é uma das mais bem-sucedidas artistas soul da nossa época – mais de uma década de carreira, dona de sua própria gravadora e autora de quatro álbuns que entraram para o top 10 da Billboard 200. É fácil pensar que Joss é hipócrita ao dizer isso de uma posição privilegiada de quem tem um público cativo e uma determinada quantidade de fãs compradores de álbuns garantida, mas olhar para a carreira da moça é ver que existe uma forma de prosperar fora do sistema e da obsessão anti-pirataria das gravadoras. Há dinheiro a ser ganho fazendo música fora das vendas de álbuns, a cada ano mais frágeis (mas ainda relevantes).

O streaming, cada vez mais, é uma das formas dos artistas obterem lucro através de sua produção. Em uma elegante e esclarecedora carta aberta em resposta às acusações da cantora Taylor Swift de que o Spotify “não paga o bastante aos artistas”, o CEO da empresa, Daniel Ek, afirmou que o serviço já pagou cerca de US$2 bilhões de dólares à indústria musical (e esses são números de Novembro de 2014!). Completou afirmando que, apesar de apenas 25% dos 50 milhões de usuários do Spotify pagarem pelo serviço premium, cada execução na interface free do aplicativo/site também é convertida em pagamento para os artistas, graças ao suporte das propagandas obrigatórias que os usuários free são obrigados a ouvir entre as faixas. Segundo Ek, a receita obtida pelas execuções de uma artista com a popularidade de Swift deve girar em torno de US$6 milhões anuais – e a única coisa que o Spotify não pode controlar em relação a isso é o quanto desse dinheiro é repassado pelas gravadoras aos artistas envolvidos na produção.

(PS: Um dos já citados tweets disparados por Lily Allen no seu perfil, inclusive, sugeria que, ao invés de cobrar mais pelos serviços de streaming, os artistas exigissem de suas gravadoras uma porcentagem justa do lucro que já estão recebendo. A sugestão vai de encontro a uma série de outras intervenções operadas por profissionais do showbusiness, inclusive a greve dos roteiristas de Hollywood entre 2007 e 2008, que reclamou dos grandes estúdios a repassagem de uma maior fatia de lucros para os autores de filmes e séries sendo exibidos em canais da “nova mídia”)

É mito, portanto, que o Spotify pague pouco para os artistas pela reprodução de seu conteúdo. O mais importante nessa história toda, no entanto, é perceber que o Tidal jamais vai poder ser o “Robin Hood da música contemporânea”, e que a fundação do serviço não é, em absoluto, um ato de rebeldia contra a ingerência das gravadoras quanto ao lucro dos artistas. A evidência mais flagrante disso é que o próprio Jay-Z é dono de seu selo musical, a Roc Nation, e que todos os seus pupilos e associados que estão embarcando na onda do Tidal continuam inseridos no esquema da grande indústria musical. Cobrar mais pelo serviço de streaming nesse caso, portanto, não significa que uma parcela maior dos lucros vai para os artistas – significa que o lucro vai ser maior para eles simplesmente porque o dinheiro arrecadado também vai ser. E nessa brincadeira tanto eles quanto as gravadoras vão enriquecendo para além dos nossos sonhos mais extravagantes de meros consumidores de música.

Veja bem, eu não estou dizendo que esses artistas não mereçam que paguemos pelo trabalho criativo deles. Não estou dizendo que toda a distribuição de arte do mundo deveria ser feita de graça, e definitivamente não estou propondo um showbusiness comunista. Embora esse conceito seja muito bonito, é preciso reconhecer que o trabalho duro desenvolvido por esses indivíduos criativos precisa ser recompensado tanto quanto o de qualquer outra pessoa em qualquer outra área. O que eu estou dizendo, de fato, é que já estamos recompensando essas pessoas pelo que elas fazem – mesmo na atualidade, em que as vendas de discos caíram vertiginosamente em relação a poucos anos atrás, ainda é mais do que significativa a renda conseguida por essas pessoas com ingressos de shows, contratos de publicidade (que só lhes são oferecidos porque nós, consumidores, demonstramos nossa fidelidade aos artistas), streaming e cópias de álbuns adquiridas por fãs e curiosos. De fato, eles são recompensados pelo trabalho deles de forma muito mais abundante que a grande maioria de nós – e nós, como consumidores, temos o dever de fincar o pé no chão e dizer o quanto estamos dispostos a pagar pelo que eles nos oferecem.

Outro ponto muito interessante de se fazer sobre o Tidal, aliás, tem a ver com a quantidade de pessoas que está disposta a desembolsar R$60 mensais para ouvir música. A falácia toda em relação a maior qualidade do streaming vai atrair apenas uma parcela pequena do público, especialmente aquela que tem acesso a headphones de alta definição e especialistas do ramo musical. Uma enorme fatia do público médio, e até dos apreciadores mais atentos de música, está mais que satisfeita com o serviço que o Spotify oferece em termos de resolução de som. E se mesmo assim, mesmo com as mensalidades girando em torno de R$20 por mês, o serviço mais popular de streaming da atualidade conseguiu fidelizar “apenas” em torno de 15 milhões de usuários pagos, qual será o número de subscritos em uma rede que cobra o triplo desse valor?

Caso a adesão de artistas como Alicia Keys, Madonna, Taylor Swift (alguém está surpreso?), Beyoncé, Kanye West, Daft Punk, Rihanna, Coldplay, Usher, Nicki Minaj, Jack White, Calvin Harris e Arcade Fire signifique que todos esses artistas, donos de uma imensa fatia do público musical, estarão lançando seu conteúdo para streaming exclusivamente no Tidal, a coisa vai ficar feia. Pode ser que o Spotify perca muito público, com certeza, mas a imensa maioria dos órfãos de todos os serviços de streaming vai se aglomerar de volta nos sites de pirataria. E, a essa altura, nem é preciso esclarecer porque a indústria musical nunca vai conseguir aniquilar a pirataria, certo? Os sites de torrent tornam quase impossível de se rastrear a fonte primária de um vazamento, uma vez que a cada novo download o conteúdo se torna mais e mais compartilhado entre um número ilimitado de computadores ao redor do mundo. Sem contar que, a cada vez que alguma agência governamental bloqueou o domínio de algum site do gênero, eles encontraram novos lugares para se hospedar na imensidão da web.

Se as consequências desse processo todo não estão claras para você, caro leitor, a gente explica: enquanto redes como o Spotify garantiam que artistas novos e pequenos recebessem (ainda que não muito) pelo trabalho que fazem, principalmente através da aglomeração de um público considerável em torno do serviço, e serviam como uma poderosa ferramenta de conexão e facilitação da ascensão desses artistas, a pirataria obriga-os a disponibilizar seus conteúdos de graça até que tenham adquirido uma base de fãs maior (o que pode nunca acontecer). Em suma, o Spotify era uma alternativa justa e interessante à pirataria, porque fazia bem para a indústria e para os artistas sem fazer mal para o consumidor – era uma proposta conectada com um ambiente cultural em que pagar valores altos por música não é mais uma realidade, e em que vale muito mais conquistar um público pagante do que obrigá-lo a pagar.

O Tidal quer fazer justamente o contrário, tentando nos coagir a pagar muito mais do que pagamos atualmente por um conteúdo que poderíamos ter de graça, se bem quiséssemos. É uma estratégia de marketing empreendida por pessoas que  não precisam de mais dinheiro do que você, leitor, já dá para eles (mesmo que você não os dê nenhum!). É uma jogada muito esperta de uma gigantesca gravadora que quer disfarçar a obtenção de mais lucro como uma “revolução” na história da música – mas basta parar por alguns minutos para pensar melhor e fica bem claro que o Tidal não é o futuro do showbusiness. Pelo contrário, é o showbusiness dando dez passos para trás.

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29 de mar. de 2015

Person of Interest 4x18: Skip

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ATENÇÃO: esse review contem spoilers!

por Caio Coletti

Em seus melhores momentos, Person of Interest não é só uma história contundente sobre a forma como vemos o mundo através da tecnologia, sobre as relações humanas e o dilema moral entre controle e controlado, sobre privacidade e sua relação com a psique contemporânea. Em seus melhores momentos, Person of Interest é um retrato incisivo de personagens que passam a vida se escondendo por trás de identidades, comportamentos e atitudes que o mundo em que eles vivem os fornece com a maior facilidade imaginável. Tanto o seu núcleo de protagonistas quanto cada uma das personas que compõem as beiradas da série se identificam como peregrinos, seres humanos cuja vida só permite laços frágeis e temporários com aqueles a sua volta, e cuja vontade é manter inescrutável cada intenção e história mais arraigada que faz deles o que são. Em muitos momentos de Person, só o espectador tem acesso a esses detalhes que fazem toda a diferença (“The Devil’s Share” – review – é o melhor exemplo disso).

“Skip” deve seu título à expressão “skip tracing”, usada pela personagem-da-semana Frankie (Katheryn Winnick, conhecida dos fãs de Vikings) em determinada cena. “Skip tracing” é o nome dado ao ato de rastrear pessoas que por algum motivo escaparam da lei – é o que a caçadora de recompensas Frankie parece estar fazendo com Ray (Ato Essandoh, de Girls), um fugitivo que ela tenta a todo custo capturar para levar à julgamento. A palavra “skip”, portanto, se refere ao fugitivo em si, e há muito mais significância na escolha de título da roteirista Ashley Gable (4x06, “Pretenders” – review) do que parece haver à primeira vista: o que o episódio luta para nos mostrar, em última instância, é o quanto cada um de seus personagens também é, a sua maneira, um fugitivo. Do retorno de Harper Rose, a trapaceira que conhecemos alguns episódios atrás na pele da ótima Annie Ilonzeh, até a fugidia relação entre Mr. Reese e sua psicóloga, tudo em “Skip” serve para mostrar um mundo que condiciona as pessoas a agirem por si próprias muito mais à despeito dos outros do que em prol deles.

Ao mesmo tempo, Person parece como sempre disposta a nos convencer de que todo esse individualismo não passa de uma ilusão. Correndo paralela à trama principal, vemos Mr. Finch e Root levando à cabo o plano que o primeiro começou a engendrar lá em “Pretenders”, quando instalou um vírus dormente no computador de Elizabeth Bridges (Jessica Hecht) a fim de ativá-lo assim que o algoritmo que estava sendo escrito pela doutora fosse transplantado para o Samaritan. Conforme esse dia se aproxima, Person vai nos apresentando às possíveis consequências de um plano tão ousado (visto que a super-máquina inimiga iria detectar em pouco tempo o agente hostil) e, numa construção de tema rocambolesca, transforma tudo em uma discussão complexa sobre auto-sacrifício e a importância dos vínculos que construímos. Conforme vemos Michael Emerson e Amy Acker entregando as atuações espetaculares de sempre numa trama muito mais emocional do que costumamos receber quando a série junta esses dois personagens, Person desenvolve a storyline principal do episódio no sentido de mostrar as motivações verdadeiras por trás do comportamento dos seus “skippers”.

Que a série de Jonathan Nolan e cia. tem um senso de roteiro espetacular não é novidade, mas esse 18º episódio da temporada nos surpreende com a clareza com a qual desenrola os temas mais fundamentais de Person of Interest, raramente desperdiçando diálogos e criando uma propulsão narrativa de causar inveja a outros episódios recentes da série. Conforme Person se aproxima do final do quarto ano, as coisas vão se movendo com mais propósito e mais rapidez, e o trabalho de personagem continua absolutamente no ponto.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

Person of Interest - Episode 4.18 - Skip - Promotional Photos

Próximo Person of Interes: 4x19 – Search and Destroy (07/04)

24 de mar. de 2015

Existe vida depois de Lange: 5 ótimos personagens de AHS que não foram feitos pela eterna superema

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por Caio Coletti

Jessica Lange é uma das grandes atrizes americanas vivas, e American Horror Story teve uma sorte que excede (e muito) todas as suas ambições e habilidades ao tê-la no elenco por quatro longos anos. Desde que Constance Langdon se tornou a grande estrela de Murder House, um tanto inesperadamente, foram três papéis principais em que Lady Lange exercitou variações de um mesmo arquétipo, e em que determinadas características surgiam de maneiras diferentes na interpretação cheia de nuances da atriz. Sister Jude Martin, Fiona Goode e Elsa Mars eram todas mulheres soberbas e egocêntricas, que carregavam consigo um cinismo que só nasce em alguém após muitas decepções e oportunidades desperdiçadas em prol (ou a despeito) da ambição faminta que todas elas apresentavam. Essa estadia de Lange em AHS serviu para trazer à televisão personagens femininas maltratadas pelo seu tempo, mas completamente incapazes de se darem por derrotadas. A atriz retratou personagens poderosas mesmo quando o mundo dizia que elas não poderiam sê-lo, e isso é absolutamente lindo.

Com a notícia da saída de Jessica da série, no entanto, é preciso dizer que American Horror Story pode, sim (se quiser), prosperar sem ela. É difícil acreditar na proficiência e talento dos roteiristas que criaram a bagunça total que foi Coven, é claro, mas pequenos exemplos espalhados por todas as temporadas da série mostram que a criação de Ryan Murphy é capaz de dar vida à indivíduos tridimensionais, interessantes e que, em sua potência dramática de peões em uma história de terror, tem muito a dizer sobre a condição humana. Os cinco melhores exemplos (e muitas menções honrosas) estão aí embaixo:

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Lana Winters, de Asylum
(Sarah Paulson)

“… but I’m no cookie”. Com uma introdução dessas, é claro que Lana Winters precisava estar no topo da nossa lista – a verdadeira estrela de American Horror Story: Asylum foi a repórter interpretada pela fabulosa Sarah Paulson, talvez a melhor atriz com menos reconhecimento entre os fãs da série. Desde a relação entre Lana e Sister Jude que AHS vem brincando com as personagens de Paulson e Lange um jogo empolgante de aproximação e distanciamento: há algo na quieta eficiência da primeira atriz que completa a brutal expressividade da segunda, e AHS se tornou uma série muito mais equilibrada e interessante por isso.

Em termos de construção de personagem, pouco do que a série da FX fez até hoje se equipara ao trabalho desenvolvido com Lana, no sentido de emprestar-lhe dimensões que dialogavam lindamente com o tema da série, do empoderamento feminino à discussão sobre as minorias e a forma como a mídia as trata. É de quebrar o coração as barbáries às quais Lana é submetida graças a sua orientação sexual, a sua sede de justiça e, principalmente, a sua ambição. Quando a personagem chega ao final de “Madness Ends”, episódio que fecha Asylum, é possível ver em cada pequena expressão de Paulson as cicatrizes que ficaram em Lana do seu tempo internada em Briarcliff, e de uma vida toda vivida na procura por subterfúgios para ser aceita na sociedade.

Por essas e por muitas outras, Lana Banana é a personagem que melhor representa o espírito de American Horror Story, sua filosofia niilista e macabra, e a resistência ferrenha que encontra em seus melhores personagens.

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Larry Harvey, de Murder House
(Dennis O’Hare)

Ausente de Asylum, criminalmente mal-utilizado em seu papel de Coven, e ofuscado por composições de personagens mais complexos que o seu em Freak Show, Dennis O’Hare é uma espécie de azarão na lista de qualquer fã de American Horror Story. Só nos resta desfazer essa injustiça e sublinhar o quanto sua performance como Larry Harvey, seu apaixonado personagem em Murder House, é excepcional. O’Hare é veterano da televisão americana, com papéis recorrentes em The Good Wife, True Blood, Brothers & Sisters é uma braçada de outras séries prestigiadas, mas encontrou seu momento de maior brilho ao lutar contra uma maquiagem debilitante (no sentido de atrapalhar a expressividade do rosto mesmo) na pele do homem que teve sua vida destruída pela paixão que nutre por Constance Langdon (Lange).

A presença física marcantemente calculada e a habilidade nata em transparecer emoções que O’Hare carrega em seu estilo de atuação caíram perfeitamente para o papel, um dos mais labirínticos, recheados de emoções conflitantes e desejos ardentes, de todas as temporadas da série. A devoção por Constance é o fator determinante na vida de Larry, e qualquer outro ator (sob o comando de quaisquer outros roteiristas) poderia se prender ao sentimentalismo e aos olhares apaixonados. Nas mãos de O’Hare, o amor que Larry nutre pela personagem de Lange é amargo, carregado de bagagem emocional, muito mais por costume – e circunstância, e teimosia até – do que por qualquer outra coisa. Em uma temporada em que um dos poucos temas mais claros da narrativa era o ruir de um relacionamento conjugal, Larry é um personagem simbólico das consequências trágicas de um amor impensado e doentio.

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Sister Mary Eunice McKee, de Asylum
(Lily Rabe)

Uma das críticas mais incisivas já perpetradas por American Horror Story se encarnou em uma só personagem, e portanto pesou sobre os ombros de só uma atriz: Lily Rabe, a brilhante intérprete da Sister Mary Eunice em Asylum. Ao apresentar essa personagem frágil, talvez até bondosa, que demonstrava medo e alguma ignorância quanto aos métodos empregados pelo local em que trabalha, e injetá-la com um poder tão dominante (o próprio demônio!) que lhe transforma completamente, Ryan Murphy e cia. querem discursar sobre a banalidade do mal, e o mais surpreendente é que eles fazem isso com uma contundência rara na televisão americana. Num dos muitos exemplos do porquê a narrativa de Asylum é tão poderosa, AHS usa o elemento sobrenatural, o clichê do gênero que dá título a série, para falar sobre um problema muito real e concreto da nossa sociedade (e da constituição humana de cada um de nós).

Sister Eunice é a personificação de uma liberação moral que ultrapassa o “You Don’t Own Me” que ela canta (lendária e espetacularmente) em sua cena mais célebre, e encontra uma ambiguidade muito bem vinda. A partir do momento em que é possuída, a personagem de Lily Rabe passa a ser melhor vista pela supervisora, a própria Sister Jude, e se encaixa melhor no funcionamento cruel de Briarcliff. Asylum, de forma muito coerente com a sua narrativa, se pergunta até que ponto nossos julgamentos humanos são baseados em concepções de época, e que barreiras essa nossa deficiência impõe ao tratamento justo daqueles que são diferentes do nosso conceito fechado de “certo” ou “errado”. Rabe se diverte muito interpretando a freira possuída, mas essa é mesmo a ideia: Eunice é um elemento de caos que vem para confundir todos os conceitos do espectador de Asylum, e é brutalmente eficiente nessa missão.

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Bette and Dot Tattler, de Freak Show
(Sarah Paulson)

É impossível escolher só uma das gêmeas siamesas interpretadas pela fabulosa Sarah Paulson em Freak Show (embora nosso coração esteja pra sempre com Dot), principalmente porque a storyline que envolve as duas é muito sobre a relação que elas dividem entre si. Durante os ótimos 13 episódios da quarta temporada da série, Paulson entregou uma tour de force de atuação, diferenciando de formas tão sutis e definitivas as duas personagens que o pequeno truque estético de fazê-las usar tiaras de cores diferentes se tornou supérfluo. Conforme a storyline foi evoluindo a partir do ponto inicial (o assassinato cometido pelas gêmeas de sua própria mãe, que as mantinha em cativeiro), a atriz revelou novas cores e novas nuances desse relacionamento ao mesmo tempo único e típico entre duas irmãs.

American Horror Story sempre teve um pé bem fincado no retrato das relações familiares, e Bette e Dot são a epítome desse tema. Absolutamente diferentes em termos de personalidade, uma separação que a série fez questão de fazer desde o primeiro capítulo, introduzindo a narração dupla dos diários de cada uma delas, as gêmeas passam uma boa parte da temporada encarando pontos distintos da cena (um toque especial da atriz), e a sensação é que elas estão forçando o corpo que dividem para direções distintas – tanto que, quando Dot sugere uma cirurgia que as separe (mesmo com risco de morte para uma delas), parece uma decisão natural. É aí que entra uma das jogadas mais delicadas e bem executadas que AHS já aplicou: com a ajuda inestimável de Paulson, a série usa essas duas personagens para mostrar que, às vezes, o elo que nos liga às outras pessoas é maior que a nossa vontade de sermos felizes sozinhos.

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Cordelia Foxx, de Coven
(Sarah Paulson)

Mesmo na completa bagunça de estratégias de choque falhas, storylines mal-desenvolvidas e grandes intérpretes abandonados ao relento de Coven houve espaço para pelo menos uma ótima construção de personagem além da Fiona Goode de Lange. Não deve ser surpresa que de novo é Sarah Paulson que aparece por aqui – Coven foi a primeira temporada em que AHS se aproveitou da dinâmica incrível entre suas duas atrizes principais, descoberta mais notavelmente em Asylum. Cordelia Foxx era um contraponto perfeito para Fiona, especialmente no sentido em que seu porte sereno era tão encenado quanto a postura agressiva da mãe. São poucos os momentos em que a temporada dá espaço para Sarah Paulson brilhar fora da interpretação controlada e perfeita que empresa à Cordelia, mas a atriz tira o melhor dessas cenas, colorindo um retrato muito completo de uma mulher em busca de si mesma, e naturalmente insegura por isso.

Paradoxalmente, a construção de roteiro errante de Coven fez bem para a personagem, que passou por inúmeras reviravoltas e transformações em meio à trama. Enquanto tudo o mais explodia em completa incoerência (às vezes divertida, às vezes exasperante), Cordelia se mantia como uma narrativa de fundo bem estruturada, que funcionava especialmente pelo esforço de Paulson em domar o roteiro e entregar a performance mais completa e detalhada possível dessa mulher fascinante. E “fascinante” é mesmo a palavra certa porque Cordelia esconde até o final da temporada pedaços de sua personalidade aos quais o espectador (e os outros personagens a sua volta) só tem acesso quando é conveniente para ela. Por trás de toda a insegurança de Cordelia, existe uma sabedoria nem sempre apreciada, exatamente do tipo que Coven precisava aplicar a todos os outros personagens de sua trama.

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Menções extras: Monsignor Timothy Howard (Joseph Fiennes), de Asylum; Dr. Arthur Arden (James Cromwell), de Asylum; Misty Day (Lily Rabe), de Coven; Jimmy Darling (Evan Peters), de Freak Show; Dandy Mott (Finn Wittrock), de Freak Show; Ethel Darling (Kathy Bates), de Freak Show; Gloria Mott (Frances Conroy), de Freak Show; Paul (Mat Fraser), de Freak Show.

23 de mar. de 2015

The Americans 3x08: Divestment

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ATENÇÃO: esse review contem spoilers!

por Caio Coletti

Em inglês, “divestment” é um termo muito usado no meio financeiro, como a antítese de “investment”. Ou seja, o novo capítulo de The Americans é batizado em homenagem ao ato de vender ações para comprar outras, trocar de estratégia financeira e de empresa na qual se está apostando suas economias, por motivos mais fortes do que a simples vontade do indivíduo. Magistral como sempre, é claro que a série acertou em cheio na escolha de título: “Divestment”, o episódio, é um emaranhado de negociações, interrogatórios, reajustes de pensamento e comportamento em cada uma das situações das vidas dos Jenning e dos coadjuvantes, e na maioria das vezes essas mudanças veem de forma nem um pouco bem-vinda. Uma das melhores séries em mostrar as situações-limites em que o necessário se choca com o emocionalmente confortável, The Americans aumenta o volume para o máximo em “Divestment”, e o resultado é um episódio angustiante como poucos da série foram até agora.

A angústia dessa oitava entrada da temporada, no entanto, é muito mais existencial e psicológica do que física, embora uma cena em especial (a imolação do agente sul-africano, naturalmente) se encarregue de incomodar as entranhas do espectador. Começamos exatamente de onde o genial “Walter Taffet” (review) parou, acompanhando os Jenning e o aliado Ncgobo enquanto trazem seus reféns recém-capturados para uma safe house e iniciam o interrogatório. Quando Phillip percebe que o agente sul-africano não vai prover informações, ele e Elizabeth resolvem usar o influenciável estudante que este estava manipulando para cumprir sua missão. O resultado é a já citada cena gráfica de morte, à qual o estudante assiste atônito, logo antes de entregar a localização da bomba que seria usada no atentado planejado pelos sul-africanos numa faculdade com um núcleo anti-apartheid.

Essa jogada estratégica desconfortável dos Jenning é só a primeira entre muitas do episódio, e parece que as consequências emocionais de cada uma delas são mais agoniantes do que as anteriores. Na subtrama estrelada por Nina, observamos enquanto ela é remanejada para conviver com o cientista que os soviéticos extraditaram (ilegalmente, é claro) dos EUA – um personagem que não dava as caras desde o 2x11, “Stealth” (review). Em mais essa ponta solta retomada pela série, o mais interessante é observar o quanto a atuação de Annet Mahendru deixa transparecer o desconforto e a profunda culpa que assombram a personagem, mesmo quando mais essa missão que envolve ganhar a confiança de alguém para logo depois traí-lo lhe coloca em instalações mais “humanas” do que aquelas que enfrentou na prisão soviética.

“Divestment” parece querer nos dizer o tempo todo que nem sempre as decisões mais convenientes, as que nos levam aos lugares mais almejados, são as mais aconselháveis. O emocional despedaçado de Nina é um retrato sutil desse conceito perto do que a série anda fazendo com a personagem da fabulosa Alison Wright (Martha) – aqui, ela é entrevistada pelo temido Walter Taffet (Jefferson Mays está ótimo no papel), e desaba sob a pressão de um relacionamento em que aos poucos as rachaduras e mentiras vão querendo aparecer. Era óbvio desde o princípio que o arco de personagem que a série queria desenhar para Martha era trágico, mas nada poderia antecipar o tom amargo e ambíguo que o roteiro de Joshua Brand (também autor de “Stealth”) dá ao momento em que Phillip é obrigado a reajustar aspectos de sua mentira para a falsa esposa. O roteirista, em seu melhor momento no episódio, dá material farto para Matthew Rhys, que trata de borrar as linhas (até para o espectador!) entre o que é sincero e o que é encenação no discurso do personagem.

“Divestment” termina com um take simbólico: Phillip, travestido de Clarke, deitado na cama com Martha, ambos pretendendo dormir para acalmar os nervos do parceiro, e nenhum dos dois realmente pregando os olhos. The Americans quer nos dizer, e é difícil restar alguma dúvida depois desse final, que depois de todas as negociações, barganhas, encenações e retiradas de identidade, ninguém é capaz de encostar a cabeça no travesseiro em paz.

Notinhas adicionais:

  • A direção de tons frios e precisos de Daniel Attias (The Wire, Resurrection) é um belo contraste com o trabalho quente e envolvido de Noah Emmerich por trás das câmeras no episódio passado. Essa diversidade de estilos mostra que The Americans pode funcionar e se equilibrar em linguagens bastante diferentes, e mesmo assim funcionar como narrativa.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

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Próximo The Americans: 3x09 – Do Mail Robots Dream of Electric Sheep? (25/03)

22 de mar. de 2015

Person of Interest 4x17: Karma

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ATENÇÃO: esse review contem spoilers!

por Caio Coletti

Person of Interest não é sempre uma série escrita com a audácia da qual o formato televisivo é capaz. Comparar o texto de Jonathan Nolan e companhia para a trama da CBS com determinados trabalhos de TV fechada, por exemplo, é fatalmente perceber o quanto os diálogos de Person são muitas vezes didáticos demais, e como a condução de trama em uma parte dos episódios é truncada. Enfim, a verdade é que, apesar deste que vos fala sempre procurar elogiar os pontos fortes da série (tanto por orgulho de fã quanto por ofício de crítico, diga-se de passagem), é preciso admitir que Person não é perfeita. É produto do mercado, e por isso talvez não seja tão espetacular quanto poderia, num ambiente em que lhe fosse permitido correr mais riscos e deixar mais subentendido para o espectador. O grande trunfo da história de Finch, Reese e companhia, no entanto, é que mesmo com essas limitações Person mantem os olhos focados em seu objetivo, na comunicação com o espectador e na reflexão de determinados aspectos do mundo do qual é fruto.

Em “Karma” isso fica ainda mais evidente porque o script é assinado pelas estreantes Hillary Benefiel & Sabir Pirzada – as duas constroem um episódio quase playful estruturalmente, que mexe de um jeito bacana com a edição de cenas mas não parece capturar muito bem o conceito de ritmo narrativo. Logo no começo do episódio é que essa deficiência fica mais clara, mas bastam alguns minutos para que a história dos personagens e o elemento emocional que a trama carrega tomem o controle e “Karma” se torne o capítulo excepcional de televisão que nasceu para ser. Acompanhamos nossos protagonistas trabalhando no caso do psicólogo Shane Edwards (Patrick Kennedy, Boardwalk Empire), que perdeu a mulher em um crime violento e desde então dedica seus dias à ajudar pacientes na mesma situação. O que descobrimos é que Edwards não se limita a prover terapia, mas arranja um jeito de vingar os entes queridos de seus pacientes e colocar os responsáveis pelos crimes na cadeia.

Como essa é Person of Interest, a própria premissa traz uma pegadinha moral que vira parte do conceito da série de cabeça para baixo: quando o assassino de sua esposa sai da cadeia, o Dr. Edwards começa a planejar seu plano mais mirabolante para colocá-lo de volta no cárcere – tudo enquanto Finch descobre que o depoimento do psicólogo que colocou o acusado na cadeia em primeira instância pode ter sido falsificado, e Edwards está agindo em cima de provas circunstanciais para presumir que o homem é culpado. Parece um pouco demais de plot para se cobrir em um episódio, mas o roteiro lida com as reviravoltas bem, talvez justamente por ter problemas com o ritmo da narrativa linear. “Karma” é interessante porque subverte o procedimento de Person quando instala a incerteza sobre a moralidade da missão do seu número-da-semana. É possível dizer que, tecnicamente, Edwards é um perpretator, mas não sabemos até o final do episódio se sua vontade de vingança é justificada ou equivocada.

Ainda mais fascinante, no entanto, é o quão humano e complexo o episódio consegue ser com esse ponto de partida. Acompanhamos, paralelamente ao caso da semana, um flashback em que Finch aparece logo depois do acidente que matou seu amigo Nathan – amargurado e preso a uma cadeira de rodas, o personagem de Michael Emerson busca vingança contra a agente do governo Alicia Corwin (lembram dela?). “As certain as I was that these people deserved retribution, life was infinetely more complicated than that”, é a conclusão final que Harold tira, tirando de sua própria experiência para convencer Edwards que o caminho certo não é a vingança. Em vários momentos do episódio, tanto Reese quando Fusco dizem que é provável que a Justiça tenha falhado e que, portanto, a justiça (com minúscula) representada pela vingança de Edwards era necessária. O que a história de Finch coloca em questão não é a premissa de que a Justiça é falha, mas a ignorância a partir da qual agimos quando buscamos instaurá-la com nossas próprias mãos.

Numa temporada em que Person cada vez mais se parece com um épico urbano de ficção científica (será que vamos alcançar um momento em que essa série vai se tornar um conto cyberpunk?), é bacana receber um episódio que traz uma trama com a qual podemos nos relacionar quase completamente, e a desenrola de maneira tão hábil e tão pouco maniqueísta.

Notinhas adicionais:

  • Wrenn Schmidt segue entregando uma ótima interpretação como a psiquiatra de John, e a relação entre os personagens está sendo tão bem trabalhada pelo roteiro que fica difícil não se apaixonar por ela e querer mais cenas das sessões de Reese.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

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Próximo Person of Interest: 4x18 – Skip (24/03)

16 de mar. de 2015

Review: A importância e a excelência do esnobado “Selma”

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por Caio Coletti

Duas indicações ao Oscar não é o bastante para Selma. A vitória da maravilhosa “Glory” na categoria Melhor Canção, embora justa, não representa sozinha o caráter crucial do trabalho realizado pela diretora Ava DuVernay e por todos os envolvidos na elaboração quase artesanal dessa pequena pérola cinematográfica. É claro que o prêmio da Academia não mede o impacto e o legado de um filme, necessariamente (é preciso lembrar que Cidadão Kane só ganhou a estatueta de Melhor Roteiro Original em seu ano?), mas é difícil não pensar que o “esquecimento” de Selma na maior premiação do cinema americano é sintomático de um mal-estar racial e ideológico no país. É especialmente simbólico do terror que os ianques sentem em olhar para sua própria história e encontrar, tão perto – muito mais perto do que no período retratado por 12 Anos de Escravidão –, um horror que mostra suas consequências até hoje.

O assassinato de um adolescente negro inocente por policiais em Ferguson, menos de um ano atrás, levou o movimento dos direitos civis à rua novamente, e fez de Selma um projeto ainda mais importante do que já é como resgate histórico e cautionary tale. Curiosamente, e com absoluto bom gosto, a diretora DuVernay e o roteirista estreante Paul Webb escolheram retratar o lado mais feio da América num filme que adquire tons documentais tanto no uso dos relatórios verdadeiros do FBI para marcar a passagem de tempo quanto na pintura precisa que faz dos métodos e entranhas do movimento liderado por Martin Luther King. Selma é quase um procedural, uma cartilha da rebelião, mas foge da frieza dessa abordagem ao lançar um olhar muito humano a seus protagonistas e aos dramas que eles enfrentam graças ao preconceito contra o qual lutam.

O filme não se acanha de mostrar a inveja, o choque de valores e até a hipocrisia de certos setores do movimento negro, compensando essas “rachaduras” com cenas calorosas em que esses homens e mulheres mostram sua mais bravia resistência ou sua mais tenra afeição. O equilíbrio de Selma é perfeito para transformar seus protagonistas em seres humanos completamente críveis, e o mesmo se aplica ao Martin Luther King interpretado com maestria por David Oyelowo. O ator britânico não se esconde por trás da dicção que emula perfeitamente o líder negro dos anos 1960 – mesmo nas cenas mais inflamadas de discursos clássicos proferidos pelo Dr. King, o intérprete comunica diretamente ao espectador cada motivação, reserva, cinismo e intenção por trás das palavras do personagem. É extraordinário que Oyelowo encare um papel tão simbólico da mesma forma que qualquer ator abordaria qualquer outro papel, tentanto traduzir as emoções do roteiro para a tela – e, em grande escala, sendo fabulosamente bem-sucedido.

O mesmo discurso vale para Carmen Ejogo, que causa uma impressão muito forte mesmo nas poucas cenas em que aparece como Coretta Scott King, a afamada esposa do pastor e líder revolucionário. O retrato da relação entre Dr. Martin e a esposa é um dos pontos altos do filme, criando cenas poderosas em que ambos os atores deixam o diálogo respirar e tomar vida como se estivessem em uma peça de teatro, sentindo o público prender a respiração e sentir as agonias desses personagens machucados, falhos e extraordinários que ambos interpretam. Há algo de incrível no faro que a diretora DuVernay tem tanto para passar a mensagem primária de seu filme quanto para comunicar as sutilezas e entremeios das relações humanas que se desenrolam ao redor da trama principal, de representatividade e importância obviamente imensas, especialmente por ter sido contada dessa forma.

Com uma fotografia que explora a pele negra dos protagonistas de forma radiante (o responsável pelo feito, Bradford Young, era outro que merecia lembrança no Oscar), uma edição que tira o melhor das muitas setpieces impactantes do filme e um elenco coadjuvante pra lá de eficiente, Selma representa um dos melhores, mais elegantes, inteligentes, importantes e delicados trabalhos cinematográficos do ano de 2014 nos EUA. Uma pena que o incômodo que a Academia (e todo o país) sente com esse pedaço de sua própria história tenha impedido mais gente de enxergar isso.

✰✰✰✰✰ (5/5)

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Selma: Uma Luta Pela Igualdade (Selma, Inglaterra/EUA, 2014)
Direção: Ava DuVernay
Roteiro: Paul Webb
Elenco: David Oyelowo, Carmen Ejogo, Tom Wilkinson, Common, Oprah Winfrey, Wendell Pierce, Trai Byers, Giovanni Ribisi, André Holland, Ruben Santiago-Hudson, Dylan Baker
128 minutos

12 de mar. de 2015

The Americans 3x06/07: Born Again/Walter Taffet

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ATENÇÃO: esse review contem spoilers!

por Caio Coletti

3x06 – Born Again

Há algo de diabolicamente esperto no olhar de Frank Langella quando ele está interpretando Gabriel, seu personagem nessa terceira temporada de The Americans, e como estamos falando de um dos melhores atores americanos em atividade, é claro que isso não é nenhuma coincidência. Langella compõe de maneira muito sutil um personagem que se esconde por trás de imagens muito bem construídas de si e da confiança que ele transmite para os agentes de campo com os quais lida, e que quietamente manipula todas as marionetes por trás dos panos. “Born Again” é o episódio em que isso fica mais evidente para o espectador atento, com Gabriel dividindo cenas tanto com Elizabeth quanto com Phillip e usando da retórica e das informações que possui para encaminhar a situação familiar dos dois para o lado que a KGB espera que ela se encaminhe.

De certa forma, “Born Again” estende essa temática para todas as narrativas, seja ao mostrar como Stan é convencido pela garota que ele conheceu no seminário EST a se livrar do fantasma da ex-mulher, seja ao rebater esse desenvolvimento logo em seguida, quando a morte de um ex-parceiro do FBI faz o agente tentar uma reaproximação de Sandra. Ao mesmo tempo, a storyline de Nina se desenrola de maneira mais rápida do que estamos acostumados a ver em The Americans, com a soviética arrancando a verdade de sua companheira de cela e observando as consequências quando a mesma é retirada violentamente do cárcere. Nina recebe recompensas fartas pelo feito, e a série nos dá dicas sutis, embasadas pela atuação sempre no ponto de Annet Mahendru, de que a ex-agente-dupla passou por uma transformação profundamente enraizada em suas crenças – se Nina não era uma mulher intensamente cínica e fria antes, agora o é.

E esse processo de certa forma não espelha aquele que Elizabeth e Phillip passaram antes de chegar nos EUA, aquele mesmo que eles procuram desconstruir (ou não) para entender os limites da autenticidade de sua vida privada como casal e como pais? The Americans, é claro, faz colidirem esses dois conceitos, nos mostrando a formação de uma mente preparada para uma guerra como essa, que entende que a conexão interpessoal não pode passar de meios para um fim, e a fundamental falha nessa elaboração, que desconsidera a humanidade dos seus agentes. Conforme Elizabeth começa a se mover mais rápido com o “recrutamento” de Paige e Phillip encontra maneiras de fugir ao contato físico com Kimberly, a série trata de não desumanizar nenhuma das partes dessa história, desafiando o espectador a entender o porquê o conceito de montar uma encenação para se envolver com alguém é fundamentalmente equivocado.

Notinhas adicionais:

  • Há algo de despudor na maneira como “Born Again” filma o rosto e a linguagem corporal de Keri Russell, mesmo que isso não seja feito de forma muito óbvia, é claro. Isso ajuda o episódio a suavizar as atitudes à flor da pele da personagem no roteiro, e é uma das sacadas mais bacanas da ótima direção de Kevin Dowling.
  • Todos os guest stars fizeram trabalhos incríveis aqui: já é hora de elogiar Julia Garner por empresar certa inocência e, ao mesmo tempo, alguma complexidade à Kimberly; Callie Thorne (Rescue Me) também se destaca com o maior tempo de tela dado à sua Tori.

✰✰✰✰ (4/5)

THE AMERICANS -- "Walter Taffet" Episode 307 (Airs Wednesday, March 11, 10:00 PM e/p) Pictured: (L-R) Matthew Rhys as Philip Jennings, Alison Wright as Martha Hanson. CR: Patrick Harbron/FX

3x07 – Walter Taffet

Apesar de ser lindamente escrito, ou tanto quanto qualquer grande episódio de The Americans, “Walter Taffet” deve uma boa parte do que o faz brilhante à direção. E o nome creditado no comando aqui é o de ninguém menos que Noah Emmerich, o homem que há três anos vem trazendo sua interpretação minimalista e sensível do Angente Beeman para a série da FX. Em sua estreia na direção, o ator faz um trabalho de elegância e sensibilidade visual impressionantes, usando a intimidade com seus companheiros de elenco para criar um episódio que não é só tremendamente bem-guiado em termos de interpretação, mas também cheio de tomadas, cortes e composições geniais de cena. A sequência logo antes da abertura da série, por exemplo, é exemplar, enquadrando Elizabeth e Phillip em uma intensa discussão dentro do quarto do casal que inclui uma linda tomada do personagem de Matthew Rhys se movimentando inquieto pelo banheiro, visto pela porta aberta, e um take final devastador em que os Jennings são vistos do lado de fora da casa, a divisória da janela do quarto os separando tanto quanto as ideias de como lidar com Paige.

Em suma, “Walter Taffet” é o episódio mais espetacularmente dirigido dessa temporada, e esperamos sinceramente que Noah Emmerich vá para trás das câmeras com mais frequência no futuro – mas ajuda, é claro, que ele esteja no comando de um dos capítulos mais empolgantes, fascinantes e bem costurados desse terceiro ano. O roteiro assinado por Lara Shapiro (Meu Trabalho é um Parto) é exemplarmente contido, especialmente para segurar o tom de encenação de The Americans frente à imensidão de coisas que acontecem nesses 44 minutos de episódio. O destaque óbvio é a descoberta do grampo no escritório do chefe do FBI, plantado por Martha à mando de Phillip (quem lembra?) – a cena da descoberta do pequeno chip é uma pérola de tensão construída em torno de ações absolutamente banais, de uma forma que só essa série seria capaz de fazer. O desenvolvimento leva Martha a passar por maus bocados, o que só sublinha a atuação incrível de Alison Wright no papel e o paciente e trágico arco de personagem que The Americans está desenhando para ela.

Em outra vertente, também observamos Phillip e Elizabeth dar seguimento à missão de prender um agente do governo sul-africando trabalhando com um informante para descreditar os grupos estudantis que protestam a existência do Apartheid nos EUA. A operação toda foi trazida ao conhecimento dos Jennings através de um agente desenvolvido por Elizabeth, o jovem Hans (Peter Mark Kendall, de Girls), e a série trata de incutir na sub-trama dele o mesmo tipo de risco que impõe a todos os “amigos” do casal protagonista – The Americans trabalha tanto em entrelinhas que seria leviano afirmar que a série pretende se livrar de Hans tão cedo, mas as sementes estão plantadas. Essa história toda é entrelaçada com o aprofundamento da crise entre Elizabeth e Phillip, que encontraram a maior rachadura em seu relacionamento na forma de lidar com Paige e o desejo da KGB de tê-la como futura agente. O casal passa por momentos de compreensão e discórdia, e The Americans encontra nos diálogos mais sutis (o que ocorre dentro do carro entre os dois é especialmente sensível e significativo) a maneira de retratar esse momento. Como sempre, é nos detalhes que a série da FX encontra seu triunfo.

Notinhas adicionais:

  • “Walter Taffet” marca o melhor uso de perucas em The Americans em muito, muito tempo. Faz uns bons meses que não era tão legal ver as produções boladas pelos protagonistas – o destaque óbvio é o visual proto-Bon Jovi de Phillip na cena de ação climática do final, mas a franja loira de Elizabeth não fica atrás, e o visual jovem-Donald Trump de Phillip no encontro com Lisa é igualmente divertido.

✰✰✰✰✰ (5/5)

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Próximo The Americans: 3x08 – Divestment (18/03)

10 de mar. de 2015

Gotham 1x18: Everyone Has a Cobblepot

GOTHAM:  Gordon (Ben McKenzie, L), Bullock (Donal Logue, C) and Oswald Cobblepot (Robin Lord Taylor, R) find themselves in a dangerous situation in the "Everyone Has A Cobblepot" episode of GOTHAM airing Monday, March 2 (8:00-9:00 PM ET/PT) on FOX.  ©2015 Fox Broadcasting Co.  Cr:  Jessica Miglio/FOX

ATENÇÃO: esse review contem spoilers!

por Caio Coletti

Já são incontáveis às vezes em que Gotham mostrou a importância de Oswald Cobblepot, o Pinguim, para sua construção narrativa. O momento de maior brilho do personagem continua sendo “Penguin’s Umbrella” (review), é claro, mas há muitas outras maneiras sutis nas quais ele demonstra sua posição fundamental no mundo explorado pela série – os roteiristas, com a ajuda considerável da interpretação de Robin Lord Taylor, o colocam como a representação maior da elaboração moral de Gotham, o ponto de convergência em direção ao qual quase todas as tramas se dirigem, e a força enganadora e escorregadia que define muitos andares e desandares no submundo da metrópole. “Everyone Has a Cobblepot” faz um ótimo uso dessa concepção do Pinguim, tão apropriada para a história e o ambiente de Gotham, e ainda encerra em si acontecimentos simbólicos para a jornada da trama.

Como costuma ser na maioria das vezes em que Gordon e cia resolvem investigar a corrupção da própria GCPD, dessa vez a trama policial não fica em segundo plano, muito menos parece distração para que possamos ver as subtramas progredindo. Após saber que o corrupto Arnold Flass acaba de ser absolvido das acusações pelas quais Gordon o havia encacerado, nosso herói descobre que a falcatrua vem do próprio Comissário Loeb (Peter Scolari, ótimo como sempre); pior, o depoimento que evitou o julgamento de Flass veio do próprio parceiro de Gordon, o Detetive Bullock, que confessa não ter tido escolha graças ao material acusatório que o Comissário guarda sobre ele e sobre a maioria dos policiais do distrito. Daí o título do episódio, espertamente simbólico, indicando que cada um daqueles detetives tem um caso mal-resolvido de ação realizada fora da lei, com a diferença que o crime que cometeram não “voltou dos mortos” para absolvê-los.

Conforme Gordon navega esses mares turvos, primeiro com a ajuda de Harvey Dent e depois com a assistência relutante do próprio Bullock, Gotham se embrenha no retrato de uma força policial extremamente comprometida no exercício de suas funções, tanto que até parece ter perdido o sentido de existir. A série brinca com o conceito de mostrar que todos tem suas vulnerabilidades, e faz um trabalho especialmente pulp(e especialmente tocante, também) quando chega a hora de descobrirmos a do próprio Loeb, que vem na forma da filha interpretada com panache por Nicholle Tom (conhecida dos fãs de The Nanny, se é que eles existem). O ponto maior, porém, é que cada um desses policiais está inserido num sistema que incentiva e quase obriga-os a adquirir essas vulnerabilidades, a perpetuar esses atos que os mantém na corda bamba o tempo todo, peões de xadrez em um jogo muito maior, fantoches para os interesses de quem joga. E o mais legal é que Gotham não se acanha em manchar também seu herói, retratando as imoralidades que lhe são exigidas em nome da busca pela justiça que arde atrás dos olhos de Ben McKenzie.

Esse é o melhor aspecto de “Everyone Has a Cobblepot” – a capacidade de relativizar as linhas entre bem e mal –, mesmo que esse episódio também abrigue a empolgante continuação das aventuras de Fish Mooney na misteriosa instalação médica/sádica na qual ela se meteu. O diretor Bill Eagles (Strike Back, Falling Skies) se diverte muito com os aspectos iconoclastas da história da personagem, desde o olho azul que ela ganha no começo do episódio até a bizarra cena em que um dos personagens secundários é mostrado com uma série de implantes corporais. Gotham acerta em cheio ao tornar essa parte do episódio a mais quadrinesca e imprevisível de sua temporada até agora, especialmente porque a atuação de Jada Pinkett Smith ajuda a construir uma identidade visual muito forte para essa personagem que a série construiu e manipulou tão bem. Se o Pinguim é o grande ponto de apoio de Gotham, Fish é seu elemento mais realizado em termos de diálogo com a linguagem visual e storytelling dos quadrinhos do Batman. Levando-se em conta que a personagem é uma invenção original dos roteiristas, é sinal de um trabalho muito bem feito.

O bacana em “Everyone Has a Cobblepot”, no final das contas, é ver que Gotham já consegue se sustentar como narrativa própria, mas não deixa de acenar para suas origens.

Notinhas adicionais:

  • Colm Feore (Revolution, The Borgias) está perfeitamente creepy, e diabolicamente inteligente, como o Dr. Dulmacher, que os fãs da série estão especulando como o futuro Dollmaker, serial killer famoso dos quadrinhos que usava partes do corpo de suas vítimas para criar bonecas humanas – familiar?

✰✰✰✰✰ (5/5)

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Próximo Gotham: 1x19 (13/04)

3 de mar. de 2015

The Americans 3x05: Salang Pass

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ATENÇÃO: esse review contem spoilers!

por Caio Coletti

Grande parte de “Salang Pass” é informada pela memória de seus personagens. Ela aparece quando Phillip e Elizabeth discutem a infância dos filhos no quarto do casal, um cenário que essa terceira temporada está usando com maestria; aparece quando Stan conversa com o patriarca dos Jennings sobre o mistério inescrutável que é a mente de um garoto adolescente; e aparece, mais fundamentalmente, na devastadora cena final do episódio, em que Phillip se deita com a esposa e relembra o treinamento da KGB, mais especificamente a parte em que os agentes eram ensinados a usar o sexo como uma arma de recrutamento. Há formas mais sutis nas quais o episódio trabalha esse elementos, mas é claro que há – essa ainda é The Americans, e “Salang Pass” é mais um pedaço brilhante de narrativa que se recusa a se render ao ritmo acelerado dos grandes hits da televisão americana.

Esse tema da memória se conecta também com a discussão corrente da temporada, que começou em “EST Men” (review) a analisar minuciosamente a forma como os hábitos e a formação de cada um dos personagens fazia deles o que eles eram, e o quanto eles eram capazes de quebrar esses hábitos para perseguir suas paixões e vontades. O mundo vivido pelos Jennings é ditado por uma restrita e difícil disciplina de controle emocional, uma exigência fundamentalmente falha de desumanização desses agentes que foram colocados em uma terra estranha, juntos, para uma missão messiânica de coleta e uso de informações. Phillip e Elizabeth são os salvadores da nação soviética em The Americans, mas são também seres humanos que precisam decidir o quanto da vida que construíram segundo as instruções de seu treinamento é falsa ou verdadeira. A série de Joe Weisberg sempre se preocupou com esse processo, e essa terceira temporada está levando-o para um ponto de quebra que talvez seja irreparável.

Quando a tensão entre o casal protagonista não é evidente, como nas explosões raivosas dos últimos episódios ou na frieza que transparece em várias cenas dos dois aqui, ela é sutilmente comunicada pela dupla de atores excepcional que lidera a série. De tempos em tempos é preciso louvar o trabalho de Keri Russell e Matthew Rhys, porque eles são o centro nervoso de todas as emoções subentendidas, inseguranças e fraquezas desses personagens, e é fundamental que o sejam. Em um episódio como “Salang Pass”, focado na complicada situação de Phillip, lidando com várias mulheres ao mesmo tempo e tentando desenhar os limites entre seu envolvimento pessoal com elas e sua missão (esse tal limite não passa nem perto de ser tão claro quanto o Gabriel de Frank Langella quer fazer parecer em sua cena com Phillip), é crucial que as pequenas rachaduras nesse relacionamento transpareçam para culminarem na intensamente emocional sequencia final.

O diretor Kevin Dowling, que retorna depois do desastre que foi “ARPANET” (review), tem mais oportunidade aqui para mostrar o seu firme comando das cenas mais emocionais, mesmo que o aspecto visual deixe um pouco a desejar. O episódio também compreende Stan em busca uma maneira de ajudar Nina (ausente do episódio), recorrendo até ao rival Oleg, e Keri Russell nos dando as dicas mais delicadas de que Elizabeth pode também estar se envolvendo com sua asset, conforme a coloca exatamente na posição em que os soviéticos a querem. Ao falar sobre memória, portanto, The Americans também fala sobre remorso e sobre empatia, completando um panorama muito completo do que faz cada um de seus personagens humano de forma mais evidente, vulnerável e assustadora.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

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Próximo The Americans: 3x06 – Born Again (04/03)

1 de mar. de 2015

Review: Será que “A Teoria de Tudo” respeita demais seu famoso protagonista?

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por Caio Coletti

Cinema não é jornalismo. Quando eu assisto um filme, eu não espero a versão mais confiável possível dos fatos, nem espero que cada fato me venha confirmado de uma fonte que não seja a mente do roteirista (e de cada profissional envolvido na finalização do filme, é claro). Cinema, como qualquer forma de arte, não tem nenhum comprometimento com a verdade – nem mesmo quando se trata de um filme que vem com o famoso rótulo “baseado em fatos reais”. Ao encarar uma cinebiografia como A Teoria de Tudo, do físico Stephen Hawking, o espectador tem que ter em mente que, por mais que se baseie em um livro biográfico escrito pela primeira esposa do britânico, o Stephen que aparece em tela é, fundamentalmente, um personagem. Filtrada pela visão de Jane Hawking e filtrada de novo pelo roteirista Anthony McCarten (Death of a Superhero), que assina o filme, a história de vida do célebre cientista é manipulada pelas intenções narrativas não de um, mas de dois autores – e não há nada de errado com isso.

Dito isso, A Teoria de Tudo talvez seja, entre os concorrentes do Oscar 2015 (do qual saiu com o prêmio de Melhor Ator), o filme mais falho de todos. No entanto, é feito com um esmero de produção impressionante: a direção do britânico James Marsh, conhecido pelo trabalho em documentários como O Equilibrista, coordena de forma tipicamente habilidosa uma série de trabalhos individuais impecáveis que criam uma unidade cinematográfica de bom gosto exemplar. Da fotografia sensível e quietamente experimental de Benoit Delhomme (O Menino do Pijama Listrado) à trilha-sonora baseada em piano de Jóhann Jóhannsson, passando pelo elegante trabalho de edição de Jinx Godfrey e a sutil passagem de tempo retratada pelos departamentos de figurino e design de produção, A Teoria de Tudo é executado com uma finesse absolutamente europeia. Uma pena que tal excelência esteja a serviço de uma narrativa tão carecida de humanidade.

Não me levem a mal: se tem algo que a história de Stephen Hawking definitivamente é, é um testemunho de humanidade. Diagnosticado aos 21 anos, quando era um jovem e brilhante universitário, com uma doença degenerativa conhecida como ALS, o físico superou todas as expectativas de vida que lhe foram dadas e atravessou a existência vivendo-a de forma absolutamente plena. Stephen passou por dois casamentos, teve três filhos com a primeira esposa, e manteve-se historicamente reservado sobre sua vida pessoal mesmo quando boatos apareceram de que a segunda mulher, Elaine Mason (que aparece brevemente no filme), abusava do marido fisicamente. Aos 73 anos anos, é evidente que a vida de Hawking foi uma de grandes feitos, grandes conquistas, excepcional capacidade de adaptação e sobrevivência, e ainda maiores limitações. A Teoria de Tudo não peca exatamente por não retratar essa vida da forma que ela foi, mas por fazer com que a versão que foi parar na tela seja infinitamente menos interessante do que a matéria-prima prometia.

O filme assinado por McCarten quer ser um pungente estudo sobre a forma como as pessoas se afastam, mesmo que tenham se amado de maneira intensa e demonstrado solidariedade impensável uma a outra, mas esbarra o tempo todo no imenso respeito que nutre por seus biografados. Talvez seja o fato de que Stephen e Jane estejam ambos vivos, sejam figuras públicas bastante notáveis e tenham se envolvido com a produção do filme, mas A Teoria de Tudo começa e acaba sem realmente mergulhar nas intenções, nas falhas e nas miúdas rachaduras desse relacionamento, e desses seres humanos. Os personagens que vemos passar por essa epopeia de degeneração física, desgaste romântico, estresse matrimonial e adaptação constante a condições cada vez mais precárias de interação com aqueles que amam não estão à altura da história. Stephen, Jane e até o coadjuvante Jonathan (atual marido de Jane) são santos que sofrem calados a pressão de um relacionamento em ruínas, e que não saem dele com uma mancha sequer de culpa – é difícil se identificar com eles, para falar a verdade.

Se há algum esforço no sentido de mudar isso, ele vem do elenco. É preciso cantar as virtudes da performance de Eddie Redmayne, vencedor do Oscar pelo papel, não só por sua transformação e simulação impressionantes do personagem real, mas também pelas sutis emoções que ele se permite transmitir através do rosto, mesmo quando a paralização de Stephen progride. Eddie nos dá dicas do remorso do personagem, da culpa que ele sente por prender Jane em um relacionamento limitado, da mistura de martirização, profunda tristeza e esperança que ele sente ao finalmente anunciar a ela que quer dissolver o casamento – se seguisse um pouco mais a deixa de seu protagonista, A Teoria de Tudo seria um filme muito mais caloroso do que é. A mesma premissa serve para Felicity Jones, que perdeu a estatueta de Melhor Atriz, mas realiza um trabalho de integridade e transparência impressionantes, capturando nuances de Jane que escapam completamente ao roteiro e só são trazidas à tela pela atriz.

É curioso que o personagem mais inerentemente humano de A Teoria de Tudo seja Brian, o melhor amigo de Stephen interpretado com carisma e sensibilidade por Harry Lloyd (ele mesmo, o Viserys de Game of Thrones). O personagem é uma invenção completamente original do roteirista McCarten, baseado apenas em pequenas descrições que Jane dá, no livro, sobre vários colegas de universidade de Stephen – no filme, ele ganha vida como um companheiro por vezes inepto para o amigo debilitado, que constantemente dá dicas de um lado ligeiramente egocêntrico, e que reage de forma exasperadora quando primeiro ouve a notícia do diagnóstico. Ele está lá, no entanto, na cena derradeira de palestra de Stephen, carregando nas costas todas as cicatrizes, os remorsos e as dores de ser quem ele é. Mesmo que o filme nos revele tão pouco da vida de Brian, A Teoria de Tudo o faz parecer uma contradição fascinante – uma pena, de fato, que o filme se prive de retratar seus protagonistas dessa mesma forma.

✰✰✰✰ (3,5/5)

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A Teoria de Tudo (The Theory of Everything, Inglaterra, 2014)
Direção: James Marsh
Roteiro: Anthony McCarten, baseado no livro de Jane Hawking
Elenco: Eddie Redmayne, Felicity Jones, Harry Lloyd, David Thewlis, Charlie Cox, Emily Watson
123 minutos