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30 de jun. de 2017

Antes da segunda temporada, vale lembrar: Stranger Things é a série mais gay da TV

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por Caio Coletti

Eu demorei quase um ano para finalmente me obrigar a ver Stranger Things, série da Netflix que causou comoção sem precedentes na internet em julho de 2016. Desde o primeiro episódio, foi fácil identificar os motivos pelo qual a trama capturou a imaginação do público – nas mãos dos irmãos Matt e Ross Duffer, Stranger Things é tanto uma viagem nostálgica (visual e sentimental) pela mentalidade cinemática americana dos anos 80, quanto uma envolvente história de crescimento que é, fundamentalmente, atemporal. Passada em 1983, a série retrata o desaparecimento de Will Byers (Noah Schnapp), e os esforços de sua família e amigos para encontrá-lo, envolvendo-se em uma trama conspiratória encabeçada por um cientista sinistro (Matthew Modine) e por uma estranha garota com poderes chamada Eleven (Millie Bobby Brown).

Stranger Things conversa com a cultura pop de sua época de forma tremendamente inteligente, não só porque encontra as referências e rimas visuais certas para inserir em determinados momentos da trama, mas principalmente porque mergulha mais fundo na cultura que explora para encontrar uma metáfora poderosa que está no coração da sociedade americana (e ocidental como um todo). Em 1983, perceba-se, os EUA viviam a Guerra Fria contra a União Soviética, um conflito ideológico cujas ramificações iam muito além das formas de governo defendidas por cada uma das superpotências. Sob o comando de Ronald Reagan, os EUA também viviam os primeiros anos da epidemia do HIV/AIDS, que mataria mais de 20.000 americanos até 1989, quando o republicano saiu da presidência sem nunca sequer ter reconhecido a existência da doença.

A genialidade de Stranger Things está em não ignorar e interconexão entre esses aspectos mais profundos escondidos por trás das fachadas decadentes da pequena cidade de Hawkins, Indiana, e a cultura dos filmes de horror e ficção científica que a série busca homenagear com tanto carinho. O resultado é uma das obras mais deliciosa e ferrenhamente queers do cenário televisivo americano atualmente.

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[Joyce] “Ele [Will] é um garoto sensível. Lonnie costumava dizer que ele era queer. Chamava ele de viado”
[Hopper] ”Ele é?”
[Joyce] ”Ele é um garoto desaparecido!”
(Stranger Things 1x01 – The Vanishing of Will Byers)

Nos meses seguintes ao lançamento de Stranger Things, grande parte da discussão em torno do subtexto queer da série girou em torno de Will, o garoto que é “sequestrado” logo no primeiro episódio. Isso porque a série dá a entender, em quase todas as vezes em que o menino é mencionado ou discutido pelos outros personagens, que há dúvidas na comunidade de Hawkins sobre sua sexualidade. Não só o o pai ausente de Will o chamava de “viado”, como Joyce (sua mãe, feita por Winona Ryder) revela, como um par de bullies na sua escola dizem aos amigos do garoto que “Will está na terra das fadas agora” após seu desaparecimento (1x04 – The Body).

Note-se que o ator Noah Schnapp, que interpreta Will, escreveu em seu Instagram sobre a possibilidade do personagem ser, de fato, um garoto gay. “Para mim, Will ser gay ou não não é o ponto. Stranger Things é uma série sobre um monte de crianças que são excluídas e encontram umas as outras por terem sido atormentadas por serem diferentes. Ser sensível, ou solitário, ou um adolescente que curte fotografia, ou uma garota de cabelo vermelho com óculos, te faz gay? Eu só tenho 12 anos mas sei que todos podemos nos relacionar com a sensação de ser diferente”, disse o articulado ator mirim.

Talvez a rotulação de um personagem em específico não seja mesmo o ponto de Stranger Things. No entanto, para ser fidedigno ao que a série mostra, é preciso admitir que o contexto histórico e a situação retratada, assim como as metáforas construídas pelo roteiro, localizam esse elemento de “crianças excluídas” firmemente dentro da lógica da comunidade LGBT. Em seus melhores momentos, Stranger Things é envolvente por mostrar personagens procurando formas de lidar com uma afeição mal vista socialmente, seja ela reprimida por um senso de masculinidade datado ou pelos estigmas de uma sociedade pós-contracultura.

Stranger Things

Em outras palavras: não pode ser coincidência que o Demogorgon tenha levado justamente Will e Barb para o “ponta-cabeça”, seu aterrorizante mundo invertido. Um conceito que, aliás, já tem bastante peso metafórico por si só – por ser uma réplica perfeita do mundo que vemos na superfície, o “ponta-cabeça” permite que aqueles sequestrados passeiem por suas próprias casas, ou ao lado de amigos e família, sem nunca serem notados ou vistos. É uma poderosa alegorização da invisibilidade da experiência queer, da pessoa LGBT que não se sente confortável em mostrar seu verdadeiro “eu” nos lugares em que deveria se sentir mais à vontade – em suma, é como um gigantesco armário.

Os personagens de Stranger Things o tempo todo lutam contra os preceitos que os mantém presos em vidas escolhidas para eles, e não por eles. O triângulo amoroso entre Nancy, Jonathan e Steve é exemplar nesse sentido, uma batalha de afeições que deixa nas entrelinhas o papel que o machismo e a obsessão suburbana por perfeição tiveram na escolha da garota. Homens que viveram com uma masculinidade tóxica e sufocante a vida toda encontram formas de lidar e construir suas próprias identidades, ainda que desesperadamente superficiais, enquanto mulheres encaram de frente o desafio de serem heroínas de suas próprias histórias, donas de sua própria sanidade, independente de expectativas sociais ou opiniões alheias.

Os irmãos Duffer buscam nesses conflitos o verdadeiro combustível para a sua narrativa, fazendo das referências visuais oitentistas meros detalhes frente a um poderoso comentário cultural. Ao entender a mentalidade opressiva por trás dos contos de terror dos anos 80, Stranger Things tem algo a dizer sobre a forma como encaramos as diferenças na sociedade de hoje. Se todos lamentamos o fim trágico de Barb, personagem coadjuvante de Shannon Purser que virou um improvável ícone cultural, talvez devêssemos prestar mais atenção na forma como lidamos com aqueles “sensíveis e solitários” em nosso meio. Para Barb e para Will, cada qual a sua forma, uma cultura que não lhes acolhia foi o que os condenou a um final trágico.

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29 de jun. de 2017

Review: Mesmo cancelada cedo, Downward Dog é uma das melhores séries do ano

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por Caio Coletti

O ato mais corajoso de Downward Dog, comédia que a emissora americana ABC estreou no último dia 17 de maio e levou pouco mais de um mês para cancelar, poderia ter sido desafiar as expectativas para uma produção envolvendo um cachorro falante. O estigma em torno desse elemento narrativo usado por tantos filmes da Sessão da Tarde segue bastante enraizado na mentalidade popular, e caso conseguisse meramente superar esse preconceito raso de quem lhe desse uma chance, Downward Dog já teria motivos para comemorar. Claro, apenas como desafio estético ela não seria uma obra completa, e o que a série criada por Samm Hodges e Michael Killen arquivou em seus oito episódios no ar foi muito mais do que isso.

Não só Downward Dog nos apresenta um cachorro falante que é também um personagem adorável, complexo e envolvente, como também se propõe a discutir, através dele e de seu relacionamento com a dona, Nan (Alison Tolman), conceitos de masculinidade e feminilidade contemporâneos. Funcionando sempre em dois níveis ao passar dos inventivos episódios, a série é uma reprodução reconhecível das dinâmicas cachorro-dono que amantes dos animais vão apreciar, mas também expande esse retrato para um nível alegórico em que o cão Martin está lidando com dilemas parecidos com o do homem moderno e sua luta com o próprio ego, enquanto os conflitos de Nan são largamente postos no âmbito profissional. A subtrama romântica entre ela e Jason (Lucas Neff) colide com essas elaborações da série de forma elegante, se aproveitando da química impecável entre os dois atores.

Nas mãos de apenas três diretores diferentes (o co-criador Killen, além de John Fortenberry e Paul Murphy), Downward Dog busca se localizar visualmente como uma constante brincadeira metalinguística. Seja no enquadramento dos “confessionais” de Martin, que fala direto para a câmera sobre seus conflitos com Nan e sua auto-estima, ou na realização esperta de cenas como o confronto entre o cachorro e sua aqui inimiga felina, que ganha a voz da comediante Maria Bamford, a série encontra grande parte de seu humor em referências e exageros que nos colocam dentro da mentalidade de Martin. É através dessa sátira que Downward Dog busca discutir e satirizar os complexos temas com os quais esbarra, e o resultado é uma deliciosa comédia de costumes contemporâneos.

Enquanto isso, as cartas na manga da série são as performances dos protagonistas. Tolman, que se destacou em Fargo, merecia mais tempo à frente de uma sitcom da TV aberta – aqui, ela entrega uma atuação honesta e expressiva, cujo rigor dramático aparece por baixo de um carisma relaxado. Na voz de Martin, o co-criador Samm Hodges usa um perfeitamente replicado dialeto millennial que serve tanto para satirizar as preocupações fúteis do cachorro quanto para sublinhar suas tendências egocêntricas. Em seu equilíbrio perfeito, Downward Dog não deixa que seus personagens se percam nessas egotrips, o que a faria só mais uma comédia cínica na TV americana, preferindo destacar o que eles tem de comum com todos nós: a busca incessante por um lugar onde se encaixam no mundo complexo do século XXI.

✰✰✰✰✰ (5/5)

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Downward Dog – 1ª temporada (EUA, 2017)
Direção: Michael Killen, John Fortenberry, Paul Murphy
Roteiro: Samm Hodges, Michael Killen, Daisy Gardner, Morgan Murphy, Annabel Oakes, Laura Kittrell
Elenco: Allison Tolman, Lucas Neff, Kirby Howell-Baptiste, Barry Rothbart, Samm Hodges, Maria Bamford
8 episódios

Diário de filmes do mês: Junho/2017

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por Caio Coletti

Nem todos os filmes merecem (ou pedem) uma análise complexa como a que fazemos com alguns dos lançamentos mais “quentes” ou filmes que descobrimos e nos surpreendem positivamente. É levando em consideração a função da crítica e da resenha como uma orientação do público em relação ao que vai ser visto em determinado filme que eu resolvi criar essa coluna, que visa falar brevemente dos filmes que não ganharam review completo no site. Vamos lá:

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Colossal (EUA/Canadá/Espanha/Coreia do Sul, 2016)
Direção e roteiro: Nacho Vigalondo
Elenco: Anne Hathaway, Jason Sudeikis, Austin Stowell, Tim Blake Nelson, Dan Stevens
109 minutos

As ambições de Colossal não combinam com o seu tamanho, como produção ou como obra cinematográfica. Assistir ao filme de Nacho Vigalondo é ver Davi tentando ser Golias – uma pequena dramédia indie se engraçando nas metáforas da ficção científica, tocando em questões sociais sérias através de uma premissa surreal. Colossal não deveria funcionar, mas, através de alguma mágica operada pelo diretor/roteirista espanhol, ele funciona. Em rasteiros 109 minutos, Vigalondo encontra tempo para estabelecer um tom único, nos envolver na história dos personagens, fazer gracinhas metalinguísticas e provocar reflexão sérias sobre assuntos como alcoolismo e relacionamentos abusivos. Na trama, a jovem Gloria (Anne Hathaway) se separa do controlador namorado Tim (Dan Stevens), incapaz de lidar com sua bebedeira crônica. Ela retorna para sua cidade natal, onde se reencontra com um amigo de infância, Oscar (Jason Sudeikis), que lhe dá um emprego – tudo corre normalmente até o dia em que um monstro gigante aparece sem explicação a oceanos de distância, em Seoul, e Gloria descobre que é capaz de controlar os movimentos da criatura. A genialidade do scipt de Vigalondo é que ele não se perde nas possibilidades exploratórias óbvias de sua premissa improvável, encontrando ao invés disso metáforas e situações tangenciais surpreendentemente envolventes.

No papel de Gloria, Hathaway equilibra a loucura do filme com uma performance centrada, correta no timing cômico, mas especialmente profunda na compreensão da jornada da personagem e sua fundamental confusão com a vida ao seu redor. É pela entrega de Hathaway que o clímax de Vigalondo funciona, mesmo com sua lógica frágil – com um olho inteligente para os detalhes do dia a dia de uma alcoólatra, e para as sutilezas surpreendentes e assustadoras do abuso romântico, o diretor espanhol se mostra um artista mais profundo e inteligente do que a superfície de sua ficção científica absurda dá a entender. Colossal é um drama honesto embrulhado em uma comédia referencial e cínica sobre monstros gigantes, ou, em outras palavras, é um produto inquestionável de seu tempo.

✰✰✰✰ (4/5)

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O Poderoso Chefinho (The Boss Baby, EUA, 2017)
Direção: Tom McGarth
Roteiro: Michael McCullers, baseado no livro de Marla Frazee
Elenco: Alec Baldwin, Steve Buscemi, Jimmy Kimmel, Lisa Kudrow, Tobey Maguire, Miles Bakshi
97 minutos

O diretor Tom McGarth, que iniciou a franquia Madagascar e fez o ótimo (e subestimado) Megamente, frequentemente tem sua genialidade visual relegada ao segundo plano. Em O Poderoso Chefinho, mais uma comédia animada cheia de referências cinematográficas, verdadeira do começo ao fim à marca da DreamWorks, essa injustiça é finalmente corrigida. A adaptação do livro infantil de Marla Frazee é um banquete para os olhos, infinitamente criativa na sua construção de mundo, tanto quanto na idealização dos espaços, cores e percepções que o formam. A trama acompanha Tim (Miles Bakshi), um menino de 7 anos cujos pais (Lisa Kudrow e Jimmy Kimmel) acabam de trazer para casa o segundo filho – acontece que o tal bebê é na verdade um gênio dos negócios, completo com a voz inconfundível de Alec Baldwin, basicamente reencarnando seu personagem de 30 Rock. Quando a dupla de irmãos, que a princípio não se gosta, precisa se unir para estragar os planos de um vilão, O Poderoso Chefinho se entrega às inspirações mais absurdas de sua premissa e cria um universo visual muito particular, que precisa ser apreciado e celebrado por sua inventividade e seu valor artístico.

É verdade que a mensagem do filme não é mais inspirada da DreamWorks, e talvez por isso todo esse estouro visual fique apagado. O mesmo aconteceu com Trolls, da produtora, que trocou um esforço maior no departamento de roteirização pelo espetáculo vazio das cores e texturas da animação – o resultado é que tanto um filme quanto o outro parecem obras incompletas, de potencialidades não exploradas, que não se comprometem de verdade com os filmes que poderiam ser. É um erro que a Pixar raramente comete, mesmo em seus momentos de maior fraqueza. Um filme desapaixonado de si mesmo, cinicamente desenhado para atingir um meio termo entre o menor denominador comum e a criatividade desimpedida, é um filme incapaz de conquistar o espectador.

✰✰✰✰ (3,5/5)

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Quase 18 (The Edge of Seventeen, EUA/China, 2016)
Direção e roteiro: Kelly Fremon Craig
Elenco: Hailee Steinfeld, Haley Lu Richardson, Blake Jenner, Kyra Sedgwick, Woody Harrelson, Hayden Szeto
104 minutos

Desde os tempos de James Dean em Juventude Transviada (1955), talvez mesmo antes disso, é sempre motivo de comemoração quando Hollywood faz um filme sobre pessoas jovens que encontra nuance, complexidade e sutileza nas emoções e situações de suas vidas. Foi assim com John Hughes e sua trilogia adolescente nos anos 80, e é assim agora com Quase 18, título nacional de The Edge of Seventeen, estreia na direção e roteiro de Kelly Fremon Craig. É um pouco incômodo que esses filmes sejam a exceção – ter personagens tratados com profundidade e humanidade não deveria ser privilégio de nenhuma faixa etária, e cinema sensível e compreensivo não deveria ser artigo raro. Em Quase 18, Craig disseca a vida de Nadine (Hailee Steinfeld), cuja única amiga próxima, Krista (Haley Lu Richardson), subitamente se torna popular ao engatar um namoro justamente com o irmão de Nadine, o “queridinho da escola” Darian (Blake Jenner). O filme trata essa virada do destino com a ironia cruel que é particular da adolescência, e as falhas de Nadine com o olhar clínico (e cínico) que é próprio da maturidade. Craig usa com inteligência suprema coadjuvantes como o Professor Bruner (Woody Harrelson) para criar um distanciamento saudável do drama adolescente de Nadine sem subestimá-lo ou satirizá-lo de forma cruel.

Steinfeld, por sua vez, carrega a análise equilibrada e sensível do filme nas costas com uma performance belissimamente modulada. A garota-prodígio que foi indicada ao Oscar (merecidamente) aos 15 anos volta a mostrar que pode se tornar umas das intérpretes mais sutis, versáteis e envolventes da filmografia americana nas próximas décadas. Quase 18 é uma esperta história sobre responsabilidades, altruísmo e a inescapável realização, na pós-adolescência, de que o mundo é ridiculamente maior, mais complexo e mais sombrio que o nosso inferno particular – mas que, ao mesmo tempo, esse inferno particular nunca deixa de existir. Ainda assim, o filme de Craig acha espaço para ser otimista de sua própria forma, realçando a independência que a protagonista persegue durante todo o filme. É uma raridade de filme, mesmo que não devesse ser.

✰✰✰✰ (4/5)

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A Bela e a Fera (Beauty and the Beast, EUA/Inglaterra, 2017)
Direção: Bill Condon
Roteiro: Stephen Chbosky, Evan Spiliotopoulos, baseados no roteiro original de Linda Woolverton
Elenco: Emma Watson, Dan Stevens, Luke Evans, Josh Gad, Kevin Kline, Ewan McGregor, Ian McKellen, Emma Thompson, Audra McDonald, Stanley Tucci, Gugu Mbatha-Raw
129 minutos

Eu não faço o tipo de criticar a existência de remakes em Hollywood. Às vezes, histórias antigas precisam de releituras com sensibilidades modernas, para que suas mensagens e magia próprias possam sobreviver a um mundo transformado. É o que ocorreu com Malévola, Cinderela e Mogli – O Menino Lobo, três filmes recentes da Disney que adaptavam seus clássicos em animação para filmes com atores. São obras do cinema pop que tomaram decisões-chave para reimaginar e ressignificar aspectos de seus originais, corrigindo cursos de forma que era virtualmente impossível no passado. Ao assistir A Bela e a Fera, de Bill Condon, que refaz a animação de 1991 da Disney, essa mesma sensação não se replicou – talvez porque o original é bem mais recente que os outros refeitos pelo estúdio, os riscos calculados que os produtores estavam dispostos a tomar não eram tão diferentes daqueles que já estavam embutidos no desenho. O resultado é uma bonita produção com a mesma metáfora inteligente que o filme de 1991 fazia sobre masculinidade tóxica enquanto contava uma história de amor que fugia de seus problemas óbvios para se revelar realmente encantadora – não é um mau filme, mas é um que não tem razão para existir.

A direção de Bill Condon é um presente para os aspectos luxuosos da produção. O cineasta sabe realçar e equilibrar efeitos especiais deslumbrantes, design de produção genial e figurinos suntuosos, criando um visual luminoso e polido que combina com a narrativa. As músicas emprestadas do original seguem deliciosas, um atestado a atemporalidade das composições de Alan Menken e Howard Ashman, embora a única original do novo filme, “Evermore”, se arraste em uma interpretação sem brilho de Dan Stevens. É o único escorregão do ator por trás da captura de movimentos da Fera, no entanto, já que Stevens constrói, com inteligência, um personagem extraordinariamente idiossincrático durante o filme. Sua atuação é uma das poucas notas originais de A Bela e a Fera, um grande espetáculo que, infelizmente, pode dar ainda mais má fama à moda dos remakes.

✰✰✰✰ (3,5/5)

hush

Com a Maldade na Alma (Hush… Hush, Sweet Charlotte, EUA, 1964)
Direção: Robert Aldrich
Roteiro: Henry Farrell, Lukas Heller
Elenco: Bette Davis, Olivia de Havilland, Joseph Cotten, Agnes Moorhead, Cecil Kellaway, Victor Buono, Mary Astor, Bruce Dern
133 minutos

A história do cinema é frequentemente injusta. Dos dois filmes do movimento hagsploitation feitos por Robert Aldrich, explorando mulheres mais velhas e as histórias de terror escondidas em seu passado e presente, O Que Aconteceu com Baby Jane? (1962) ficou mais conhecido, graças às brigas entre suas duas estrelas, Bette Davis e Joan Crawford. Seu segundo, no entanto, esse Com a Maldade na Alma (1964), é um exercício de gênero muito mais completo, com uma performance matadora e equilibrada de Olivia de Havilland na pele de Miriam. A personagem da estrela de …E o Vento Levou é a prima da protagonista, Charlotte (Davis), que, após um trauma de juventude envolvendo um amante, se tornou cada vez mais reclusa e solitária. Quando a prefeitura ameaça demolir a casa da família para construir uma ponte, Miriam chega para acalmar os ânimos – ou quase isso. O filme de Aldrich abraça com elegância os elementos trash do gênero que explora, criando um enervante suspense psicológico, com diálogos recheados de entrelinhas trabalhadas com prazer imenso por gente como Havilland e Agnes Moorhead, genial na pele da fiel empregada de Charlotte.

Davis, por sua vez, parece estar em um espetáculo particular (como de costume). É sempre um deleite assisti-la viver e morrer pelas emoções de suas personagens, e em Charlotte ela encontra uma rica fonte de ressentimentos, confusões e medos para expressar em tela – se Havilland é quem carrega a coerência e verossimilitude do filme, Davis carrega seu senso de teatralidade. O dueto entre as duas é talvez ainda mais belo de observar do que aquele entre Davis e Crawford em Baby Jane, talvez por se ver livre do simbolismo que a rivalidade entre elas carregava. Sem esse peso, Com a Maldade na Alma tem a liberdade de ser um horror referencial brilhante, cheio de momentos que seriam emulados no futuro da filmografia americana.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

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Power Rangers (EUA/Hong Kong/Japão/México/Canadá/Nova Zelândia, 2017)
Direção: Dean Israelite
Roteiro: John Gatins, baseado na série criada por Haim Saban
Elenco: Dacre Montgomery, Naomi Scott, RJ Cyler, Ludi Lin, Becky G., Elizabeth Banks, Bryan Cranston, Bill Hader
124 minutos

Dean Israelite tinha uma missão impossível em Power Rangers, nova versão para o clássico trash infantil dos anos 90: adaptar a trama desses vingadores coloridos intergalácticos para o contexto de blockbuster “sombrio” e “realista” que Hollywood patrocina no atual momento cultural. Como se isso não fosse difícil o bastante, o diretor e seu roteirista, John Gatins, ainda sofreram pressão para fazer tudo isso sem desagradar aos fãs do original que pediam fidelidade ao espírito e aos detalhes da história. Tendo tudo isso em vista, o resultado poderia ser muito, muito pior. Ao invés de um filme ativamente e cinicamente terrível, o Power Rangers de 2017 é apenas um pouco esquizofrênico, tentando equilibrar um drama colegial honesto, ainda que um pouco aleatório, com o surrealismo da premissa principal. Coloque na conta uma Rita Repulsa equivocadamente repaginada na pele de Elizabeth Banks, e um elenco de jovens apenas marginalmente talentoso, e você tem uma aventura de 124 minutos que tem problemas para encontrar seu ritmo, e cujas boas sacadas (especialmente na parte do drama colegial) ficam perdidas em um mar de geral indiferença que ela desperta no espectador.

Na trama, acompanhamos cinco adolescentes de Alameda dos Anjos. Jason (Dacre Montgomery) é um atleta desiludido envolvido em atos de vandalismo, Kimberly (Naomi Scott) uma ex-garota popular excluída após um escândalo de sexting (?), Billy (RJ Cyler) um garoto autista que perdeu o pai, Zack (Ludi Lin) um solitário incorrigível que precisa cuidar da mãe doente, e Trini (Becky G) uma rebelde lésbica sem amigos. Após uma noite em que, aleatoriamente, estavam todos juntos em uma mina abandonada da cidade, eles descobrem “moedas” de poder e são recrutados pelo robô Alpha 5 (Bill Hader) para se tornarem a nova geração de Power Rangers, justamente quanto Rita retorna dos mortos para tentar dominar o mundo. É estranho ver um Power Rangers que não reconheça o ridículo de toda essa premissa, mas o filme de Israelite encontra uma maneira de contornar essa estranheza, usando o pouco tempo que dispõe para desenvolver os personagens com esperteza, tornando-os um pouco mais do que uma mistura de estereótipos aleatórios. Funciona melhor do que teria o direito de funcionar, mas não o bastante para obliterar a fundamental má ideia na qual o reboot foi construído.

✰✰✰ (2,5/5)

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Kong: A Ilha da Caveira (Kong: Skull Island, EUA/China/Austrália/Canadá, 2017)
Direção: Jordan Vogt-Roberts
Roteiro: Dan Gilroy, Max Borenstein, Derek Connolly, baseados nos personagens criados por Merian C. Cooper & Edgar Wallace
Elenco: Tom Hiddleston, Samuel L. Jackson, Brie Larson, John C. Reilly, John Goodman, Corey Hawkins, John Ortiz, Tian Jing, Toby Kebbell
118 minutos

Durante os últimos 80 e poucos anos, três dos maiores filmes já lançados por Hollywood em suas respectivas épocas foram estrelados por King Kong, o gorila gigante mais famoso do imaginário popular. Em 1933, 1976 e 2005, o mundo parou para ouvir a mesma história de dominação humana irresponsável e presunçosa, e quando Kong: A Ilha da Caveira foi anunciado para este ano, nós já sabíamos o que esperar. É aí que entra Jordan Vogt-Roberts, o genioso diretor por trás do novo blockbuster do gorila, que agarrou a oportunidade de seu primeiro arrasa-quarteirão para virar a fórmula de cabeça para baixo e fazer um filme excepcionalmente estranho, espantosamente inteligente, e deliciosamente inesperado. As referências para o novo Kong são os filmes passados na Guerra do Vietnã, como Apocalypse Now, Platoon e Nascido Para Matar, triunfos de rigor técnico que criaram um universo sensorial muito particular ligado a esse conflito da história mundial. O filme de Vogt-Roberts empresta essa identidade visual para espertamente transformar King Kong em uma metáfora para a guerra impossível (e impossivelmente cruel) travada por americanos com um entendimento trágico da filosofia ufanista de seu país natal.

Parece exagero ligar um filme como Kong: A Ilha da Caveira a esse tipo de reflexão, mas as melhores narrativas pop são capazes de divertir e fazer pensar ao mesmo tempo. Com suas névoas tóxicas coloridas, sua paisagem em permanente crepúsculo selvagem, seus efeitos especiais impressionantes inseridos em um universo visual que já seria deslumbrante sem eles, o filme de Vogt-Roberts é um feito cinematográfico e tanto, uma deliciosa alquimia kitsch com um ponto a provar e a coragem de surpreender o espectador provando-o. Poucos blockbusters são mais desafiadores para o público acostumado ao padrão de Hollywood, e só por isso Kong: A Ilha da Caveira já merece ser celebrado como um dos grandes produtos do cinema pop americano em 2017.

✰✰✰✰ (4/5)

28 de jun. de 2017

Review: GLOW, da Netflix, troca o apelo kitsch de seu tema por uma dramédia contida e inteligente

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por Caio Coletti

O mundo da luta livre é mais rico de paralelos e significados sociais do que a maioria das pessoas costuma pensar. Suas narrativas arquetípicas tiram sarro de estereótipos raciais, econômicos e sexuais, parodiando através dos “personagens” de seus competidores a própria mentalidade americana, tudo enquanto entregam uma história apoiada no menor denominador comum de entretenimento, um verdadeiro melodrama encenado na base da porrada. Como GLOW, nova série da Netflix conectada a esse mundo da luta livre, aponta em um momento especialmente inspirado, a luta livre é como uma novela – e, como uma novela, é também um retrato dos conflitos de sua época através de expressões populares de frustração, triunfo e contexto histórico. Nos momentos em que quer explorar seu tema nesse sentido, GLOW se mostra vital para um cenário televisivo saturado em que é preciso fazer algo extraordinário para se destacar.

O curioso é que a série criada por Liz Flayhive e Carly Mensch nem sempre está disposta a mergulhar nessas elaborações profundas sobre seu tema. A história segue de perto a atriz Ruth (Alison Brie), que após vários testes fracassados resolve se juntar a um programa pioneiro de luta livre para mulheres – ao mesmo tempo em que sua melhor amiga, Debbie (Betty Gilpin), também atriz, que largou a carreira para construir família, descobre que Ruth tem tido um caso com seu marido, Mark (Rich Sommer). A história da relação das duas se quebrando e se reparando é entrelaçada com as jornadas das outras 12 mulheres envolvidas na criação do programa de TV, além do diretor Sam Sylvia (Marc Maron), e em muitos momentos dessa trama GLOW escolhe o caminho de uma dramédia discreta e inteligente ao invés do apelo kitsch e dos paralelos sociais que seu tema sugerem.

Nesses momentos mais contidos, a série mostra que tem talento para a construção de personagem. Debbie, especialmente, emerge como uma figura complexa, encarnada em todos os seus tons e subtons por uma Betty Gilpin excepcional, que encontra nas cenas mais improváveis as entrelinhas e detalhes da qual sua personagem é construída. O apelo carismático de Alison Brie funciona bem com a determinada e conflituosa Ruth, e GLOW acha espaço para desenhar com carinho as coadjuvantes dessa jornada, especialmente Sheila (uma ótima Gayle Rankin), Carmen (Britney Young) e Cherry (Sydelle Noel). As personalidades dessas mulheres são esculpidas com o mesmo senso de discreta excelência que o restante dos conflitos dramáticos da série, incluindo um subplot envolvendo aborto que transborda sensibilidade e inteligência.

A importância, elegância e brilhantismo de GLOW não podem ser diminuídos, mas a série merece uma renovação da parte da Netflix especialmente pela oportunidade que tem de crescer com o tempo e a familiaridade com as personagens e o tema. Em um momento do primeiro episódio da temporada, GLOW geniosamente mistura uma briga muito real entre Ruth e Debbie com flashes do que seria o confronto entre as duas caso acontecesse em um contexto de luta livre. Nesse paralelo entre os conflitos da realidade e da ficção, dos estereótipos com a complexidade única de suas personagens, é que vive a alma da série e seu motivo para existir, e é uma peculiaridade estética e narrativa poucas vezes explorada pelos nove episódios seguintes. Da forma como está, GLOW merece ser vista – dada a oportunidade de crescer, pode se tornar absolutamente essencial.

✰✰✰✰ (4/5)

GLOW

GLOW – 1ª temporada (EUA, 2017)
Direção: Jesse Peretz, Phil Abraham, Kate Dennis, Sian Heder, Melanie Mayron, Claire Scalon, Tristam Shapeero, Lynn Shelton, Wendey Stanzler
Roteiro: Kristoffer Diaz, Liz Flayhive, Carly Mensch, Emma Rathbone, Rachel Shukert, Nick Jones, Jenji Kohan, Sascha Rothchild
Elenco: Alison Brie, Betty Gilpin, Sydelle Noel, Britney Young, Marc Maron, Britt Baron, Kimmy Gatewood, Rebekka Johnson, Sunita Mani, Kate Nash, Marianne Palka, Gayle Rankin, Kia Stevens, Jakie Tohn, Ellen Wong, Chris Lowell, Bashir Salahuddin, Rich Sommer
10 episódios

Review: A Múmia, com Tom Cruise, só quer ser medíocre – mas consegue ser muito pior

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por Caio Coletti

Poucos dias após a estreia de A Múmia nos cinemas americanos, que ocorreu no último dia 09 de junho, a imprensa começou a divulgar matérias em que “fontes de dentro da produção” garantiam que o controle criativo exagerado exercido pelo astro Tom Cruise no set foi o responsável pelo desastre do filme. De certa forma, essa “tomada de rédeas” por parte de Cruise não é surpreendente – com um diretor semi-estreante (Alex Kurtzman) e o fracasso da tentativa anterior da Universal de lançar sua franquia de monstros (Dracula Untold, de 2014), o estúdio tinha bons motivos para querer que o poder estelar de Cruise fosse a âncora do filme. O problema é que, não importa o quanto carisma e crédito tenha em Hollywood, Cruise não é um cineasta, e A Múmia é tanto pior por causa disso.

Em seu coração, o roteiro original de David Koepp (Jurassic Park) guardava as boas intenções de uma aventura de horror esperta, ainda que medíocre. Raspas e restos dessa visão original sobram no filme, seja em alguns de seus visuais ou na própria construção da personagem-título, interpretada por uma ótima Sofia Boutella – a intervenção de Christopher McQuarrie (Jack Reacher) e Dylan Kussman no roteiro original de Koepp, no entanto, reportadamente serviu para dar um papel maior ao personagem de Cruise, que ganha um arco tão previsível quanto é rascunhado em traços indistintos. O filme quer vender um anti-herói na pele de Nick Morton, o soldado/contrabandista que topa com o sarcófago da princesa Ahmanet, mas não lhe dá um histórico ou dilema moral forte o bastante para carregar o filme. Ao invés disso, o personagem acaba parecendo um peso morto, arrastando-se de uma sequência de ação para a outra a caminho de um destino contra o qual ele luta muito pouco.

Kurtzman, que antes da estreia na direção fez fama escrevendo blockbusters como o primeiro Transformers (2007) e os dois primeiros filmes da nova franquia Star Trek (2009, 2013), deveria ter ficado em seu ramo de atuação original. Enquanto suas investidas no roteiro não eram exatamente alta arte, mas elaboravam os clichês de forma inteligente e divertida, no comando de uma produção Kurtzman parece totalmente perdido. Como resultado de sua direção, A Múmia tem um visual escuro e sem brilho, pouco ou nenhum senso de movimento durante as sequências de ação, e sofre de aguda falta de criatividade plástica – e enquanto tudo isso é também culpa em parte do diretor de fotografia Ben Seresin (Guerra Mundial Z), dos editores e designers de produção, é sob a vigilância de Kurtzman que o trabalho desses profissionais fez o filme desandar.

Desenhado para lançar uma franquia que costurará histórias sobre todos os monstros clássicos do estúdio (de Drácula a Frankenstein, passando por O Homem Invisível e O Médico e o Monstro), A Múmia sente o peso da responsabilidade comercial que carrega. Apesar do retorno fraco em terras americanas, o filme deve recuperar seu custo na bilheteria internacional (no momento, conta US$350 milhões ao todo de arrecadação), o que garante que mais clássicos do horror serão transportados para a era dos blockbusters interconectados inaugurada pela Marvel Studios. Seria sábio da parte da Universal aprender com o exemplo de A Múmia, e garantir mais liberdade aos seus próximos criadores para realizar uma visão criativa imperturbada por egos de estrela.

✰✰ (1,5/5)

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A Múmia (The Mummy, EUA, 2017)
Direção: Alex Kurtzman
Roteiro: David Koepp, Chrispher McQuarrie, Dylan Kussman
Elenco: Tom Cruise, Russell Crowe, Annabelle Wallis, Sofia Boutella, Jake Johnson, Courtney B. Vance
110 minutos

5 de jun. de 2017

Review: Na quinta temporada, The Americans encara a mortalidade de frente (e não gosta do que vê)

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por Caio Coletti

Entre muitas outras coisas, a genialidade de The Americans sempre residiu na forma como a série da FX era capaz de retratar o processo de amadurecimento das crianças Jennings, Paige e Henry, e refletí-las nos temas maiores da série. Nós assistimos Holly Taylor se tornar uma força da natureza em tela, com uma performance de quebrar corações, enquanto The Americans introduzia Paige aos cantos mais moralmente escusos da vida adulta, e à realização de que a humanidade bagunçada que passamos a conhecer na adolescência não melhora quando amadurecemos. Pairando como um fantasma sobre todo esse processo desenvolvido ao longo de múltiplas temporadas, no entanto, estava outra premissa: a de que The Americans é sobre envelhecimento e, consequentemente, sobre mortalidade. Na quinta temporada, essa noção escapa das entrelinhas e pesa uma tonelada no desenvolvimento dos protagonistas, e de todos ao redor deles.

À essa altura, é quase um exercício fútil tentar resumir a trama de The Americans a alguma sinopse, mas grande parte do quinto ano gira em torno de uma tentativa dos espiões soviéticos Phillip e Elizabeth de desmascarar e sabotar uma iniciativa do governo americano para dificultar a produção de trigo na URSS. Case isso com uma subtrama em que vemos Oleg (Costa Ronin) retornando para terras soviéticas e encarando de frente a corrupção envolvida na distribuição de comida por lá, e você tem uma temporada rica em reflexões sobre as falhas estruturais de dois governos fundamentalmente diferentes, mas ainda extraordinariamente similares. Às voltas com uma nova operação e com dilemas morais no FBI, Stan (Noah Emmerich) representa o yang para o yin dos personagens soviéticos, testemunhando com seu arco trágico o poder destrutivo da burocracia sem escrúpulos do capitalismo americano.

Esse equilíbrio político, como sempre, dá espaço para a série refletir nas consequências humanas da guerra como instituição, e não como questão moral de bem e mal. Na pele dos pais de Oleg, interpretados de forma tocante por Snezhana Chernova e Boris Krutonog, e na figura de Gabriel (Frank Langella), a série busca refletir o papel do passado de um povo em seu comportamento, e os efeitos cruéis de um envelhecimento amargo e cínico, mas ainda extraordinariamente humano. Langella, que aparece por mais ou menos metade dos episódios, deixa uma impressão indelével no espectador, usando com inteligência a gravidade que Gabriel sempre demonstrou como personagem para sublinhar a angústia e desgaste em seus olhos e sua linguagem corporal, um contraste excepcional com a ainda mais sutil Margo Martindale, na pele da endurecida Claudia.

Conforme a série se aproxima de seu final, o peso do envelhecimento começa a ser sentido também nos protagonistas de The Americans. O emocional em frangalhos de Phillip, interpretado com corajosa vulnerabilidade e sentimento por Matthew Rhys, é seguido de perto pelas dúvidas mortais de uma Elizabeth mais machucada, encarnada por uma Keri Russell cada vez mais detalhista, que deixa uma marca até nos momentos mais aparentemente insignificantes do roteiro. Se nas temporadas anteriores sobrava fogo, dúvida e ambiguidade no relacionamento dos dois, aqui nasce e floresce uma ternura comovente (e madura), que culmina em um belamente encenado momento do episódio 10, “Darkroom”. A química entre os dois atores é óbvia, mas isso não seria o bastante se eles não tivessem construído personagens tão complexos, que sentimos conhecer intimamente mesmo que toda a sua vida esteja construída em uma grande mentira.

Com apenas mais uma dezena de episódios para fechar a história na sexta (e última) temporada, The Americans desafia o espectador a entrar no ritmo de uma trama que se esparrama pela tela com a densidade de um líquido viscoso, se espalhando por temas e latitudes inesperadas enquanto caminha em ritmo glacial, contando sua história com impecável atenção aos detalhes e subjetividades envolvidos em seus protagonistas e coadjuvantes. O trabalho técnico continua sendo, em todos os sentidos, o melhor na TV americana hoje em dia – um esforço coordenado de excelência e precisão, que não sente a necessidade de atacar o espectador com elaborações bombásticas, mas encontra um subtexto rico de informação (histórica, política, cerebral e emocional). Para o espectador atento, no entanto, sobra na quinta temporada uma quieta e doída aceitação das verdades terríveis que a série revelou até agora, o que só torna seu tratado ambíguo e inesquecível sobre a vida adulta mais poderoso.

✰✰✰✰✰ (5/5)

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The Americans – 5ª temporada (EUA, 2017)
Direção: Chris Long, Stefan Schwartz, Gwyneth Horder-Payton, Noah Emmerich, Roxann Dawson, Matthew Rhys, Kevin Bray, Dan Attias, Sylvain White, Steph Green, Nicole Kassell
Roteiro: Joel Field, Joe Weisberg, Tracey Scott Wilson, Peter Ackerman, Joshua Brand, Stephen Schiff, Hilary Bettis
Elenco: Matthew Rhys, Keri Russell, Holly Taylor, Keidrich Sellati, Noah Emmerich, Costa Ronin, Frank Langella, Brandon J. Dirden, Margo Martindale, Kelly AuCoin, Alison Wright, Snezhana Shernova, Boris Krutonog, Ivan Mock, Irina Dvorovenko, Alexander Sokovikov, Zack Gafin
13 episódios

3 de jun. de 2017

Review: House of Cards dispensa os fogos de artifício e entrega sua temporada mais magistral

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por Caio Coletti

Eu tinha minhas dúvidas ao apertar o play no primeiro episódio da quinta temporada de House of Cards. Esse era o primeiro ano da série em que seu criador, o genial Beau Willimon, não agia como showrunner, ou seja, como principal roteirista no comando da equipe criativa. O afastamento amigável de Willimon, que partiu para produzir uma série de ficção científica (The First) para a Hulu, concorrente da Netflix no mercado de streaming, abriu espaço para os roteiristas Melissa James Gibson e Frank Pugliese assumirem a liderança. A dupla, que já havia assinado alguns dos melhores episódios da trama nos anos anteriores, inspirava confiança, mas a experiência de qualquer fã de séries vai te dizer que, quando um criador começa a se afastar de sua própria criação, uma mudança sísmica é praticamente inevitável – e raramente essa mudança é para melhor.

House of Cards, felizmente, é uma dessas raridades. Nas mãos de Gibson e Pugliese, a série passa por uma mudança de tom radical, mas operada com elegância e estoicismo que dariam orgulho a Claire Underwood, a inabalável protagonista feita por Robin Wright. Ela ganha mais espaço esse ano, enquanto enfrenta os estágios finais de uma campanha eleitoral no papel de vice-presidente na chapa do marido, Francis (Kevin Spacey), atual comandante-em-chefe dos EUA, que enfrenta acusações (embasadas) de corrupção. Os 13 episódios do ano vem recheados das habituais reviravoltas de trama, balés de influência política e terremotos emocionais no cada vez mais fascinante relacionamento entre os dois protagonistas.

House of Cards sempre foi um novelão político em seu coração, mas a quinta temporada espertamente foge dos momentos bombáticos (com algumas exceções, é claro) a fim de trazer as armações dos Underwood de volta para um contexto minimamente realista em que eles são capazes de refletir muito mais da atual paisagem política do que poderiam nas temporadas anteriores. O resultado é que a série da Netflix se mostra mais atual do que nunca, emprestando com esperteza detalhes do começo da administração Trump e do clima político mundial antes e depois de sua eleição. Ter Melissa James Gibson no comando significa também que o status de Claire como co-protagonista, por vezes até mais central e fascinante do que Francis, é estabelecido com mais força, e a trama se costura de forma inteligente para colocá-la  nessa posição.

Os novos showrunners também parecem ter um ouvido melhor para a corrente satírica que existe em House of Cards. A personagem Jane Davis, feita por uma excepcional Patricia Clarkson, cai como uma luva nessa “nova versão” da série, especialmente porque a atriz a imbui com uma autoconsciência aguda – ela conhece seu lugar na máquina do governo e sua capacidade de transcendê-lo, mas conhece principalmente também o essencial ridículo das frivolidades que cercam a política. Ao lado de um Joel Kinnaman que só faz crescer no papel do derrotado Will Conway, ela é a jogadora coadjuvante mais essencial para o time de House of Cards, que continua se apoiando imensamente na excelência de Kevin Spacey e Robin Wright.

Ainda bem que os dois não decepcionam, então. Spacey continua alargando e contornando seu Frank com cores mais fortes, atingindo alturas operáticas sublimes em momentos marcantes no começo e no final da temporada, mas a estrela esse ano é sua companheira de cena. A sensação é que os cinco anos de trabalho de Robin Wright como Claire culminam aqui, em uma performance que encontra as medidas certas e os momentos certos para demonstrar uma fragilidade que, no final das contas, só é traduzida em mais poder. O clamor dos fãs para que Claire comece a “quebrar a quarta parede”, da forma como Frank vem fazendo ao conversar conosco olhando diretamente para a câmera, é compreensível – ao mesmo tempo, é estonteante assistir enquanto Wright nos faz entendê-la, apreciá-la e temê-la sem precisar desse ou qualquer outro “atalho” dramático.

Em muitos sentidos, aliás, esse é o sentimento de assistir a quinta temporada de House of Cards – com um visual mais enxuto, mas os mesmos valores de produção acima da média, a série da Netflix abandona os fogos de artifício de seu formato novelesco para entregar 13 sólidos episódios de drama político tão bons (ou melhores) que seus anteriores, sem fazer estardalhaço por isso. Para um espectador realmente atento e engajado, House of Cards nunca foi tão provocativa ou tão fascinante quanto agora.

✰✰✰✰✰ (5/5)

House Of Cards

House of Cards – 5ª temporada (EUA, 2017)
Direção: Daniel Minahan, Alik Sakharov, Michael Morris, Roxann Dawson, Agnieszka Holland, Robin Wright
Roteiro: Frank Pugliese, Melissa James Gibson, John Makiewicz, Kenneth Lin, Laura Eason, Bill Kennedy, Tian Jun Gu
Elenco: Kevin Spacey, Robin Wright, Michael Kelly, Neve Campbell, Patricia Clarkson, Paul Sparks, Derek Cecil, Jayne Atkinson, Campbell Scott, Boris McGiver, James Martinez, Joel Kinnaman, Dominique McElligott, Damian Young, Lars Mikkelsen, Colm Feore, Wendy Moniz
13 episódios

2 de jun. de 2017

Review: Mulher Maravilha nos lembra que cinema de super herói também pode (e deve) ser arte

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por Caio Coletti

Os leitores d’O Anagrama com certeza podem me apoiar nessa declaração: eu nunca fui de considerar arrasa-quarteirões hollywoodianos como diversão descompromissada. A ideia de que a arte do cinema vive só nas salas cult pelo mundo me parece falsa e presunçosa, e é mais do que óbvio que uma medida de arte existe dentro do cinemão comercial, quando ele está disposto a aceitá-la. A edição clara e precisa de Capitão América: Guerra Civil, o uso absurdamente criativo dos efeitos digitais em Doutor Estranho, a atuação transcendente de Heath Ledger em O Cavaleiro das Trevas – o cinema de super-heróis do nosso século tem incorporado essas medidas de arte rotineiramente, mas é fácil ignorá-las, seja porque apontá-las causa tanta polêmica entre os fãs mais “acadêmicos” de cinema, ou porque a dimensão desses filmes como discurso pop (o que é igualmente importante, diga-se de passagem) é muito maior do que seus méritos técnicos.

Quando saí da minha primeira sessão de Mulher Maravilha, no entanto, a impressão clara era que o filme de Patty Jenkins existia em uma dimensão diferente daqueles que acompanhamos durante as últimas décadas. Ele é uma peça de cinema feita com tanto cuidado aos detalhes, tanta genuína admiração, tanta simples excelência, que faz com que seja impossível ignorá-lo. É um triunfo de rigor cinematográfico, de narrativa pop, de pura iconoclastia, que eleva o gênero dos super-heróis ao Éden onde vivem clássicos do cinemão americano e da cultura ocidental. O fato de ser o tão esperado filme da Mulher Maravilha, e o primeiro filme de mais de US$100 milhões dirigido por uma mulher, a quebrar essa barreira… Bom, isso só pode ser definido pela palavra simbólico.

A trama do filme acompanha Diana Prince (Gal Gadot), introduzida em Batman vs Superman, e aproveita para contar sua história de origem: sua vida pacífica em uma ilha povoada por amazonas, criadas pelos deuses gregos para proteger os homens de sua tendência à agressão, é abalada quando o piloto americano Steve Trevor (Chris Pine) sofre um acidente por perto, trazendo notícias preocupantes sobre uma guerra brutal acontecendo no mundo lá fora (a Primeira Guerra Mundial, no caso). Sob os protestos de sua mãe, a Rainha Hyppolita (Connie Nielsen), Diana parte com ele para dar um fim no conflito. Não é uma trama complicada, mas abre espaço para um passeio por gêneros habilidoso que mostra a versatilidade da diretora Patty Jenkins, tão afiada nas cenas de ação recheadas de deliciosa câmera lenta quanto no timing cômico dos momentos em que Diana está se adaptando à “civilização” fora da ilha das amazonas.

Embora já tivesse demonstrado o carisma e presença de tela no filme anterior, em que apareceu por breves minutos, Gal Gadot floresce ao concentrar as atenções de seu filme solo – pouco conhecida antes de conseguir o papel, a israelense tem tanto a sutileza quando a sinceridade necessárias para passear pelas emoções primárias e pelo arco complexo de Diana sem parecer óbvia ou histriônica. É impossível não olhar para ela em qualquer cena de Mulher Maravilha, e a beleza da atriz tem pouco ou nada a ver com isso. Nas mãos de Gadot e do roteirista Allan Heinberg, surpreendentemente um veterano de draminhas adolescentes como The O.C. e O Quinteto, a Diana do filme é excepcional por sua compaixão, sim, mas também pela coragem de defendê-la sem hesitar e pelo extraordinário poder que não tem medo de demonstrar. É uma heroína que não pede desculpas por sê-la, exatamente como seus colegas machões.

O diretor de fotografia Matthew Jensen faz talvez o trabalho mais belo do gênero de super-heróis até hoje, criando uma obra de estética iluminada, pouco afeita a atalhos visuais, que brilha ao ajudar a diretora Jenkins a criar um ícone indelével de esperança em meio a um cenário desolado. A cineasta americana de 46 anos se mostra uma verdadeira mestre de seu ofício – é quase possível sentir a dedicação e a minúcia de uma artista em pleno domínio de suas habilidades, que sabe que sua obra é importante demais para ter qualquer coisinha fora do lugar. Jenkins tentou por mais de uma década trazer o filme da Mulher Maravilha à vida, e toda essa obsessão resultou em um trabalho que é essencialmente mais pessoal, mais idiossincrático, mais visivelmente incansável, do que qualquer outro no gênero. Hollywood não queria uma mulher no comando de um arrasa-quarteirão, mas Jenkins os venceu em seus próprios termos (e ainda bem que venceu).

Como narrativa, é um severo desserviço dizer que Mulher Maravilha só expande os temas do universo cinematográfico da DC até agora. Ao invés disso, Jenkins, Heinberg e companhia elegantemente reajustam o discurso de O Homem de Aço, Batman vs Superman e Esquadrão Suicida em um contexto de emoções mais viscerais e idealismos mais elevados. Em um mundo de falsos deuses e poderes corruptíveis, a Mulher Maravilha emerge como um símbolo de empatia, força, paz e bondade, uma heroína terrivelmente humana que, nem por isso, deixa de ser uma heroína. Ao contrário do Superman de Henry Cavill, ela não é uma deusa com uma caixinha de brinquedos perigosa que não sabe o que fazer com ela – sua inicial ingenuidade não leva a uma trajetória em direção ao cinismo vicioso de seus companheiros de franquia, e sim a uma maior compreensão de seu lugar no mundo.

Nesse sentido, no universo de deuses e monstros da DC, Diana Prince é exatamente como nós – e é bom se sentir tão poderoso para mudar as coisas horrendas sobre nós mesmos (e o nosso mundo), mesmo que seja só por pouco mais de duas horas. No final das contas, o grande triunfo de Mulher Maravilha e sua diretora é conduzir a heroína para esse lugar de identificação ambígua, entre escapismo e inspiração, de onde nascem todos os ícones. Ao sair do cinema na minha sessão de Mulher Maravilha, essa era a sensação, no melhor resumo que eu posso fazer dela: eu sabia que, agora, Diana Prince era imortal.

✰✰✰✰✰ (5/5)

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Mulher Maravilha (Wonder Woman, EUA/China/Hong Kong, 2017)
Direção: Patty Jenkins
Roteiro: Allan Heinberg
Elenco: Gal Gadot, Chris Pine, Connie Nielsen, Robin Wright, Danny Huston, David Thewlis, Elena Anaya, Saïd Taghmaoui, Ewan Bremmer, Eugene Brave Rock, Lucy Davis
141 minutos

1 de jun. de 2017

Cancelar Sense8 não foi uma boa ideia (criativa e comercialmente) para a Netflix

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por Caio Coletti

Era uma vez o serviço de streaming que ia suprir as ânsias criativas de um público cansado da falta de ousadia das emissoras tradicionais. Era uma vez a produtora de conteúdo que começou com House of Cards, uma deliciosa e fundamental ópera política que só se mostrou mais relevante com o passar do tempo. Era uma vez o local de trabalho em Hollywood no qual criadores e performers juravam ter tanta liberdade que era quase assustador. Era uma vez a companhia de entretenimento que entendia a máxima que escapou de Hollywood por quase um século: o público diz o que quer, você não diz para ele.

Como a maioria dos contos de fada, a Netflix era boa demais para ser verdade. O crescimento monstruoso da plataforma através dos anos e a constante expansão do número de produções originais selou o destino desse Éden criativo, e nos últimos tempos ficou abundantemente claro que a Netflix é exatamente como aquelas empresas às quais se apresentou como alternativa no começo de sua dominação mundial. As racionalizações para os cancelamentos de The Get Down e Sense8 só ajudam a provar esse ponto.

As duas séries estavam entre as produções mais caras da Netflix. Um episódio de Sense8 custava em média US$9 milhões para ser feito, enquanto a primeira temporada de The Get Down tirou US$120 milhões do bolso da Netflix, o que coloca ambos os títulos perto da faixa orçamentária de um arrasa-quarteirão hollywoodiano. Produções de nicho, as duas séries não emplacaram com votantes do Emmy e, presumivelmente (a Netflix não divulga números oficiais de espectadores), não atraíram as audiências fabulosas de Orange is the New Black e das séries da Marvel, maiores sucessos do streaming.

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Parece uma decisão mercadológica plenamente justificável, certo? Em curto prazo, com certeza. O problema é que Sense8 termina com um gancho desavergonhado que deixa várias pontas soltas na história, compensando as muitas horas investidas pelos espectadores com arcos de personagem incompletos e dúvidas aos montes. The Get Down, embora tenha uma conclusão menos frustrante, deixa os fãs órfãos de possibilidades e relacionamentos entre os personagens que ficaram sem exploração.

Como estabelecemos no primeiro parágrafo, a Netflix passou anos vendendo sua imagem como uma alternativa a emissoras de TV aberta e fechada que tomavam exatamente esse tipo de decisão, cortando uma narrativa ao meio a fim de compensar rombos orçamentários ou qualquer outra eventualidade corporativa. Esses cancelamentos, e isso não é birra de fã, machucam a Netflix onde pode doer mais a longo prazo: sua reputação e sua identidade. É uma leitura equivocada do setor financeiro da empresa, superestimando seu lugar no cotidiano global e o poder de escolha de um público essencial e fundamentalmente conectado a comunidades on-line (muito mais do que o público convencional de suas concorrentes televisivas), que não só tem opções diferentes de streaming como pode sempre recorrer ao abraço confortável da pirataria.

Em resumo, esses cancelamentos denotam uma tendência dentro da Netflix em parar de agir como fornecedora de serviço e produtora de conteúdo, que era o que a fazia uma figura tão aparentemente revolucionária no cenário de entretenimento. A nova atitude é tentar igualar seus métodos a uma competição com a qual a empresa de streaming não tem nada em comum – embora seja condenável criativamente, a CBS tem toda a liberdade de cortar suas séries ao meio quando elas não dão retorno, especialmente porque a CBS é uma entidade irremovível do cotidiano de toda a população de um país. Ela existe em um ambiente em que sua concorrência é limitada e sua tradição enraizada no comportamento de gerações e gerações de americanos, enquanto a Netflix é uma entidade relativamente nova, inserida em um mercado (internet) no qual opções são o que não faltam.

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Eu não estou dizendo que, para ser bem sucedida, a Netflix precisa continuar gastando dinheiro em produções que não dão retorno financeiro nem prestígio acadêmico. Estou dizendo que deixá-las sem conclusão é um jogo perigoso em que a plataforma de streaming passa a ruir a confiança de seus consumidores, pouco a pouco. Por todo o seu esnobismo acadêmico e estratégias de choque cansadas, a HBO dá um bom exemplo de como lidar com esse tipo de dilema – séries como Looking, Hello Ladies e Life’s Too Short, fracassos de público, ganharam episódios especiais ou telefilmes que serviram como “consolo” e conclusão para fãs órfãos. É uma decisão corporativa inteligente que mantém a integridade artística do canal (a fim de fidelizar espectadores a longo prazo) sem prejudicar as contas do final do mês.

Em muitos sentidos, a Netflix como entidade crescente dentro do mercado de entretenimento enfrenta desafios parecidos com os da HBO, cujo status como canal por assinatura opcional a força a manejar as expectativas e ânsias criativas de seu consumidor com mais cuidado do que as emissoras de TV aberta. A Netflix, no entanto, enfrenta um campo de competidores maior, e não tem a reputação de prestígio que a HBO construiu desde os anos 90. Aliás, no início de sua ascensão, a plataforma de streaming foi vista por muitos como um porto seguro em que a qualidade das narrativas não precisava se encaixar em um limite acadêmico sufocante, e explosões de criatividade (como Lady Dynamite, BoJack Horseman) excêntricas e essencialmente de nicho encontravam um lar.

Não é mais o caso – mas se quiser ajustar sua imagem de Éden criativo para lamaçal corporativo sem perder público, a Netflix precisa ter mais cuidado onde e quando enfurece o espectador conectado, “mimado” e vocal nas costas do qual construiu seu império de entretenimento.

netflix