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Review: Me Chame Pelo Seu Nome

Luca Guadagnino cria o filme mais sensual (e importante) do ano.

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Review: Liga da Justiça

É verdade: o novo filme da DC seria melhor se não tivesse uma Warner (e um Joss Whedon) no caminho.

28 de fev. de 2010

Boletim Cinéfilo Mensal (Fevereiro/2010)

Notícias (nunk excl)Notícias edição 1 (1)

Artistas inteligentes, em geral, costumam saber quando a própria imagem começou a saturar o público para o qual ela se dirige. Figura importante na Hollywood do novo século, Matt Damon foi o homem do ano em 2007, atraindo multidões ao cinema ao lado de alguns “amigos” do alto escalão (Treze Homens e Mais um Segredo) e ainda realizando o melhor filme de ação da década ao lado do parceiro Paul Greengrass na continuação O Ultimato Bourne. Surpresa geral, o ano que se seguiu ele parece ter tirado para umas férias. Como coadjuvante em Che: Guerrilha, segunda parte da ambiciosa em desmasia saga do diretor Steven Soderbergh (responsável pelos filmes da trupe de ladrões comandada por George Clooney), e dublando a versão inglesa da animação Ponyo, do mestre Hayao Miyazaki, ele pareceu coisa do passado na Hollywood que passa adiante com muita facilidade. Ledo engano. Em 2009 ele se reuniu com Soderbegh para o explosivamente bem-humorado O Desinformante e ainda ganhou a segunda indicação ao prêmio da Academia pela atuação no filme de Clint Eastwood sobre a figura de Nelson Mandela, Invictus.

E ele não está disposto a dar folga em 2010. Mais badalado do que nunca por entrar na lista do Oscar, quem saiu ganhando com a promoção de seu astro foi o thriller The Green Zone, que chega aos cinemas brasileiros em 16 de Abril e contra com Damon na pele de um oficial do exército ianque que é jogado em meio a uma teia de conspirações no Oriente Médio do início da Guerra do Iraque. O comandante da brincadeira: Paul Greengrass, que diz ter fechado, com esse filme, uma “quadrilogia” sobre a primeira década do nosso século sob pontos de vista diferentes. Não dá para contradizê-lo. Os dois Bourne, mais Vôo United 93 e o novo thriller são materiais indispensáveis para quem quer saber como o cinema lidou com os acontecimentos desse começo de século. No trailer de Green Zone, vemos Damon no tipo de papel que ele faz melhor: o improvável herói de ação que luta contra o sistema e acaba perseguido pelos próprios e proverbiais aliados. A atuação promete. Do elenco coadjuvante, destaque para Amy Ryan, Greg Kinnear e Brandan Gleeson.

Enquanto a expectativa para Green Zone só faz aumentar, Damon aproveita a vigilância da imprensa para cobrar do roteirista Steven Knight (Senhores do Crime) o compromisso de entregar o texto sobre a vida do senador Robert Kennedy, assassinado em 1968. O astro, mais o diretor Gary Ross (Seabiscuit), estão prontos para desenvolver o projeto.

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O reconhecimento é uma vadia. Às vezes, escolhemos trabalhar por trás dos panos em um projeto ou experiência que sabemos que pode dar certo, fazemos de tudo para que chegue as vias de fato, todas as nossas perspectivas sobre tal projeto se confirmam e… ninguém se lembra de nosso nome. Ou quase. Não é preciso ser o cinéfilo mais dedicado para conhecer o nome de Christopher Nolan, o gênio da direção que mudou a cara do cinema no nosso século através de obras mais que engenhosas, de domínio narrativo impressionante, tais como Amnésia, O Grande Truque e, claro, o fenômeno de público e crítica O Cavaleiro das Trevas, adaptação de quadrinhos mais elogiada desde sempre, um rumo novo para todas as investidas de Hollywood no gênero. O que pouca gente sabe, mesmo no círculo mais fechado de apreciadores de cinema, é que Jonathan Nolan, o irmão mais novo do diretor, também tem sua mão em todas essas realizações. Seja escrevendo o roteiro ou inspirando a sua escrita através de contos (Amnésia veio do seu “Memento Mori”), Jonah, como é chamado pelo irmão, é tão ou ainda mais talentoso que o parente mais famoso. Claro, a justiça tarda mas não falha. E, no caso de Jonathan, a justiça vai fazer barulho. Literalmente.

Com o irmão terminando Inception, ficção estrelada por Leonardo DiCaprio e primeira incursão de Christopher sozinho no roteiro, o irmão mais novo tem tempo de redigir o terceiro filme do Cruzado de Capa ao lado do igualmente talentoso David S. Goyer (Blade: Trinity), completar a ficção Interstellar, que está nos planos de ninguém menos que Steven Spielberg, e começar uma negociação que pode render a monopolia da família Nolan sobre os heróis da DC. Depois da notícia de que a Warner pode perder os direitos do personagem 2013 e não pode produzir nada até o processo estar completo na Justiça, em 2011, o estúdio começou a correr para ajeitar as coisas para Man of Steel, filme que, supostamente, daria continuidade a história montada por Bryan Singer no superestimado Superman – O Retorno. Agora, com o afatasmento do diretor e do astro (de segundo escalão) Brandon Routh, a ordem é recomeçar do zero (de novo). Para a missão, a Warner resolveu chamar, veja só, Christopher Nolan, que “apadrinhou” o projeto e se colocou como uma espécie de conselheiro de produção, tudo na esperança de que o estúdio aceite a proposta de fazer do filme do Azulão a estréia de Jonathan na direção.

Tal atitude dos irmãos, por sua vez, gerou o boato de que, com Chris levando a franquia de Batman e Jonah recomeçando a mitologia deo Superman, o vindouro Justice League poderia sair com a marca da família Nolan estampando direção e roteiro. Claro, os dois trouxeram a reboque o parceiro Goyer, que disse, sobre o filme do Homem de Aço, que quer ver o herói lidando tanto com Lex Luthor quanto com o alienígena Brainac. Claro, não passam de rumores. Por enquanto, é esperar para ver se os super-poderes dos Nolan são o bastante para levar  o Universo DC, enfim, para frente no terreno cinematográfico.

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O que aconteceu foi que… escute, eu amo a franquia Bourne, e eu dei tudo de mim aos dois filmes que eu fiz. Mas aí eu fui honesto comigo mesmo no último outono, e eu estava começando a ir adiante em outras coisas, você não pode parar quando você percebe o que você está fazendo. Eu não sinto ter nada mais para contribuir para essa franquia, que obviamente precisa continuar. E para ela continuar é preciso refazê-la e reenergizá-la sobre outras perspectivas. Eu sinto que o que eu fiz está feito, e não há nada de anti-natural em relação a isso.” (Paul Greengrass dá sua deixa)

Bem, eu acho que eles têm uma boa forma de fazer uma pré-continuação com outro ator, e basicamente fazer algo sobre a identidade de Bourne, a identidade verdadeira. O que os estúdios querem é fazer da franquia algo eterno, que continua indo adiante e adiante, e isso nunca vai acontecer com o nosso personagem, porque ele vai acabar se resolvendo, e eu acho que esse momento aconteceu no terceiro filme. Ele recuperou a própria memória três vezes. Eu não acho que alguém queira me ver dizer ‘eu não me lembro’, de novo.” (Matt Damon coloca o ponto final na franquia Bourne)

24 de fev. de 2010

Ilha do Medo (Shutter Island, 2010)

preview (nunk excl)Preview Shutter Island 01

[Teddy]: “Você leu o informativo sobre a instituição?”

[Chuck]: “Tudo o que eu sei é que se trata de um hospital para loucos…”

[Teddy]: “…Para os criminalmente loucos”

O breve diálogo, que enfeita uma das primeiras cenas do segundo (e melhor) preview de Shutter Island colocado na rede pelo estúdio, pode muito bem ser uma provocação do mestre Scorsese para os que tentaram dissecar seu filme mais misterioso, comentado e analisado até hoje, antes da estréia. Saber o final, ao menos para quem não leu a novela de Dennis Lahane, era impossível até a pré-estréia do filme em Berlim (depois disso, é claro, a Internet tratou de nos presentear com os spoilers de plantão, estejam eles certos ou não). A verdade é que, como mestre que é, Scorsese sabe que o julgamento de seu filme não será feito pelo destino de seus personagens, mas sim pelo significado e pelo envolvimento que a jornada vai causar no público americano, que deu uma impressionante estréia de US$ 14 milhões para o suspense de Scorsese. O resultado, um dos mais vitoriosos comercialmente da carreira do diretor, desbancou até mesmo o gigantesco elenco do meloso Idas e Vindas do Amor, tascando a liderança de sua primeira sexta-feira. Aqui no Brasil, só dia 5 de Março. São nove longos dias para resistir as revelações que agora pipocam na Internet e chegar a sessão de Ilha do Medo (tradução padrão escolhida pela distribuidora brasileira) com a mente aberta para tudo que o cineasta nos vai propor nessa nova viagem. O que os trailers do filme nos mostram é que o esforço pode até valer a pena. Sem estragar nenhuma surpresa.

Trama/Roteiro

Com o pouco que nos mostram os dois previews dá para deduzir as razões e motivações por trás da visita dos agentes federais Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio) e Chuck Aule (Mark Ruffalo) a instituição do título, além da própria finalidade do sombrio lugar. Trata-se, como deixa um tanto claro o trecho de diálogo no começo do texto, de um lugar onde ficam presos e são tratados os doentes mentais que foram levados a cometer algum crime por seus delírios. Além disso, dá para perceber que o ponto de partida da trama é a fuga de Rachel Solondo da ilha, motivando uma investigação que leva Teddy a encontrar um bilhete da interna com a pergunta “Quem é o paciente 67?”. Presente desde o início da promoção do filme, a existência de um 67º paciente na ilha é insistentemente negada pelos administradores do lugar (Ben Kingsley e Max von Sidow), o que dá início a uma gigantesca teoria de conspiração e a um jogo de gato e rato pelas entranhas do gótico lugar montado pelo diretor Scorsese. O próprio Teddy não escapa ileso da trama, atormentado por pesadelos e visões de sua mulher, um trauma incógnito (ao menos nos trailers) de seu passado.

O trabalho de Laeta Kalogridis, dona de um currículo tão díspar que inclui o viajante Guardiões da Noite e o terrível Desbravadores, parece tão instigante quanto sua fonte de inspiração, uma mais que elogiada novela do escritor Dennis Lehane, que não é estranho em meios cinematográficos: Sobre Meninos e Lobos e Medo da Verdade também vieram de tramas suas. Resta esperar para ver como o seu estilo um tanto denso se ajusta a mitologia mais complicada de uma trama como essa. Por enquanto, Kalogridis desfruta de popularidade inédita em sua carreira, sendo chamada por James Cameron (seu parceiro de produção em Avatar) para redigir a adaptação do mangá Battle Angel Alita, que o diretor pretende dirigir assim que se desembaraçar por algum tempo dos planos (ou seriam rumores?) de seqüência para seu último mega-blockbuster.

Elenco

Leonardo DiCaprio, que não é burro nem nada, arquivou a quarta parceria com o diretor Martin Scorsese ao encarnar o perturbado Teddy Daniels, talvez o grande enigma entre os milhares que o texto joga para o espectador, e ainda garantiu seu lugar como protagonista da biografia de Frank Sinatra que o cineasta pretende realizar em seguida. Mas isso é história para outro momento. Aqui, o breve diálogo em frente ao espelho que é o único momento mais revelador de sua performance no trailer mostra que veremos o astro em alta voltagem, encarnando as incertezas do personagem com a garra que apresenta só sob o comando dos grandes diretores. Ao seu lado, o sempre contundente Mark Ruffalo, que encara o parceiro Chuck Aule, parece entregar uma atuação abaixo do esperado para um ator de sua estirpe, mesmo em coadjuvância, que há muito tempo deixou de seu sinônimo de desleixo.

Bons exemplos disso são os experientes Ben Kingsley e Max von Sidow, as figuras mais emblemáticas do trailer, brincando com a percepção do espectador em atuações carismáticas, pensadas e acertadas. A elegância à la inglesa do primeiro, mais usado pelo diretor no preview, somada a auteridade natural do segundo, formam uma dupla que encarna bem o espírito de como a ilha parece aos olhos do espectador. De resto, Jackie Earle Haley promete mais um show de insanidade como o mais perigoso paciente do local, enquanto Elias Koteas aparece muito pouco e deixa água na boca do público com sua caracterização bizarra. O detalhe mais curioso, porém, não está no trailer, e sim na ficha de elenco da página do filme no IMDb. Note bem que a personagem de Rachel, a prisioneira que escapa da ilha, é creditada tanto a Emily Mortimer (que de fato nos aparece em flashes rápidos no trailer) e a Patricias Clarkson. Ainda há  muitos mistérios a decifrar em Shutter Island.

Direção

Por sua vez, Scorsese consegue mostrar até no trailer a superioridade de sua direção sobre as firoulas frenéticas que dominaram o cinemão americano nos últimos anos. A elegância de sua câmera é apenas sugerida com os cortes rápidos que os previews exigem por natureza, mas seus ângulos sempre no limiar ente a tradicionalidade e a inovação ganham novo frescor ao sair um pouco de seu ambiente natural e realizar um longa que promete ser escuro, sombrio, gótico e visualmente impressionante como poucos na carreira do mestre. Revigorado e já livre do fardo de não ter um Oscar na prateleira, ele parece, mais do que nunca, seguro de si mesmo. Demorou. O público e a crítica, esses já confiam em Scorsese há muito, muito tempo. Shutter Island é apenas mais um capítulo nessa longa história. E um dos mais intrigantes, diga-se de passagem.

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Ilha do Medo (Shutter Island, EUA, 2010).

Dirigido por Martin Scorsese

Escrito por Laeta Kalogridis (baseada na novela de Dennis Lehane)

Elenco Leonardo DiCaprio, Mark Ruffalo, Ben Kingsley, Max von Sidow, Michelle Williams, Emily Mortimer, Patricia Clarkson, Jackie Earle Haley, Elias Koteas

138 minutos. Estréia dia 05 de Março.

22 de fev. de 2010

Batalha em Seattle (Battle in Seattle, 2007)

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“O filme a seguir é baseado em fatos e acontecimentos reais, mas seus personagens são estritamente ficcionais”. O aviso que enfeita a tela preta logo no começo de Batalha em Seattle não faz nada além de constatar algo tão óbvio quanto falso. Como forma de contar histórias por excelência, qualquer obra cinematográfica deveria vir com esse tipo de prerrogativa já incutida na cabeça do espectador quando a primeira imagem chegasse aos seus olhos. Por outro lado, é impossível não se perguntar se as pessoas que povoam os acertadíssimos 99 minutos do filme de estréia do ator Stuart Townsend (A Rainha dos Condenados) na direção não são na verdade espécies de representações etéreas, em alguma linha entre ficção e realidade, dos personagens que protagonizaram o fato histórico e político que o filme representa.

Batalha em Seattle é a obra cinematográfica que resgata dos arquivos históricos as manifestações ocorridas na cidade-título entre Novembro e Dezembro de 1999, quando ativistas de todas as áreas imagináveis se reuniram para bloquear as ruas da cidade e impedir a chamada “Rodada do Milênio”, reunião da Organização Mundial de Comércio (OMC) com o objetivo de avaliar as ações dos anos que se passaram com o livre-comércio mundial sob sua jurisdição. A época, a OMC era vista como vilã pelos neoliberais, que viam na organização uma espécie de segregação dos países subdesenvolvidos e a valorização de lucro acima da própria vida humana, por ambientalistas, que discutiam o quanto as ações da organização afetavam a longa lista de espécies em extinção (mais especialmente um item especial de tal lista, a tartaruga marinha), e, claro, por anarquistas que protestaram contra o capitalismo global de forma violenta. Assim, meio desunidos em sua própria estrutura, 100 mil pessoas enfrentaram repressão policial e política exageradas, se viram como os mais badalados vilões da imprensa internacional e, no final de dias e mais dias de confronto direto, saíram vitoriosos. Ou quase.

Como bem o filme de Townsend faz questão de nos lembrar em seu emocionante final, quase nenhuma promessa feita naqueles dias de protesto pela OMC foi cumprida. “A luta continua”. Essas, as últimas palavras que nos chegam da tela de Batalha em Seattle, não são mais que uma pequena demonstração de que, por mais que tentemos, o mundo não vai mudar. O que não pode e nem deve significar que ele não pode ficar melhor. Uma mensagem de esperança, de persistência e uma tocante, envolvente e recompensadora viagem cinematográfica por princípios, protestos, violências, motivos e sonhos. Mas, acima de tudo, uma viagem pela história e pela natureza da humanidade, sempre insatisfeita consigo mesma, sempre em busca do que parece melhor para si. Há os que pensam em dinheiro, há os que saem as ruas para tentar alcançar o que querem, e há também os que decidem não julgar e se sentam confortavelmente atrás de uma câmera para, em silêncio, com talento e ousadia, (tentar) mudar o mundo. Pouco a pouco, dia a dia, ação a ação, vida a vida. Ver A Batalha de Seattle, por mais fugaz que possa ser a sensação, é se sentir por dentro dessa luta que nunca vai terminar. E nunca foi tão bom estar na linha da frente dessa guerra, não importa de qual lado.

No caminho para reproduzir essa sensação de participação e acender no espectador a vontade de continuar com essa luta, o diretor Stuart Townsend talvez tenha errado apenas ao requisitar controle demais sobre a própria obra. Ao mesmo tempo que isso lhe permite desfilar suas idéias, opiniões e observação com competência, seu controle de um roteiro tão complexo bem que se daria bem com um pouco de ajuda. Não que, como escritor, Townsend transgrida regras fundamentais ou mesmo se mostre sem talento. Mas de uma forma ou de outra, sua abordagem de estreante em uma área fundamental e complicada como o roteiro transparece um pouco de desajuste na hora de lidar com as tramóias políticas reunidas sobre seu comando. Como ator, ele sabe criar personagens como ninguém, e conduzi-los pela trama com competência é uma missão que Townsend tira de letra, guiando cada persona singular de sua trama por um caminho distinto e aos poucos assumindo o controle do que mostrar ou não ao espectador. O diálogo de sua obra nunca é banal ou descartável, e as linhas escritas por ele para os personagens vão se ajustando com leveza e elegância as personalidades que passam pela tela. Ainda que não sejam as palavras mais inspiradoras da história, seus diálogos moldam-se a trama com cuidado e inteligência.

Sua falha maior aparece mesmo quando o filme sai de toda a esfera de princípios e protestos para uma mais objetiva, onde precisa conduzir a trama em uma estrutura dramática mais clara que Townsend mostra que ainda não é um roteirista completamente amadurecido, deixando transparecer uma inexperiência que não se mostra por boa parte de Batalha em Seattle, mesmo com tantas variáveis postas na equação. A principal delas é Jay (Martin Henderson), um neoliberal que perdeu o irmão em um protesto anterior e desde então se tornou uma espécie de mártir e líder para todo um grupo de protestantes. Ao lado dele nos acontecimentos de Seattle, entre as milhares de pessoas, conhecemos melhor Lou (Michelle Rodriguez), um estereótipo suavizado da mulher durona, Sam (Jennifer Carpenter), a advogada do grupo, que tem suas dúvidas sobre os métodos e princípios do tal protesto, e Django (Andre Benjamin), o ambientalista e eterno otimista que parece ser a energia vital do grupo. Do lado oposto da contenda vemos Dale (Woody Harrelson), um policial que é chamado para lidar com as manifestações e espera a todo custo que sua esposa grávida, Ella (Charlize Theron), tenha escapado da confusão das ruas. Sua determinação nobre encontra um lado oposto em Johnson (Channing Tatum), o típico policial novato louco por um pouco de ação que aos poucos vai vendo que o lado contrário não é tão demoníaco quanto seus chefes gostam de pregar. A equação se fecha com Jean (Connie Nielsen), uma repórter muito obstinada a cobrir tudo que acontece na cidade, e Jim Tobin (Ray Liotta), o prefeito de Seattle, que tenta conter os manifestantes sem violência ao mesmo tempo que é posto sob pressão de todos os lados para declarar estado de emergência e, conseqüentemente, começar uma guerra civil em suas ruas.

Townsend, no comando do roteiro, foi muito esperto em tirar o foco do que acontece nas ruas para o que se passa na psique dos personagens, ao mesmo tempo em que expôs seu ponto, seu próprio protesto, com sutileza, elegância e um sentimento de entrega inédito em um roteiro. Se ele necessitou de muita astúcia para escapar das armadilhas que redigir um roteiro pode trazer a tiracolo, então como diretor Townsend parece vacinado contra os exageros que podem arruinar um filme. Aqui, ele mostra uma familiaridade impressionante com a câmera, focando seus personagens com cuidado e ponderação e conduzindo a trama com cautela nunca exagerada. Mesmo que não fuja sempre do óbvio e ainda precise encontrar um estilo só seu, Townsend mostra que tem futuro operando as câmeras, talvez até mais que na frente delas, onde havia mostrado apenas carisma e o tipo de sorriso ambíguo que faz a platéia feminina suspirar. De galã juvenil a diretor talentoso é um pulo e tanto, e não deixa de ser surpreendente quando o Lestat arrogante de A Rainha dos Condenados se mostra despido de vaidade o bastante para passar o bastão para outros atores. Decisão sábia, diga-se de passagem. Por mais que sua atuação pudesse render a pelo menos um personagem uma força dramática maior, já deve ter sido complicado o bastante equilibrar roteirização e direção. Aqui, ele mostra que tem todo o talento necessário para se dar bem em ambas as funções.

Uma pena, de fato, que dessa forma o ativista Jay tenha ido parar nas mãos de alguém como Martin Henderson (Fúria em Duas Rodas). Ele passa longe de ter a carga dramática necessária que o personagem exige, e é exclusivamente por sua apática e apagada presença que Jay se torna a persona menos interessante de toda a trama. O restante do elenco, por outro lado, leva suas missões mais a sério. A começar por Michelle Rodriguez, que parece sempre encontrar a força e o talento para fazer de seus personagens quase invariavelmente estigmatizados alguma coisa original e interessante. Aqui, Lou se torna uma figura quase icônica, como um personagem que surge nos momentos mais fortes da narrativa com a competência e o simbolismo que apenas uma atriz instintiva como Rodriguez poderia representar. Ao lado dela quase o tempo todo, o músico Andre Benjamin, uma das metades do duo de hip hop Outkast, põe todo o carisma de palco que demonstra em seus shows para funcionar e faz de Django uma figura cativante, encantadora e marcante. Seu eterno otimismo é o espírito de um protesto pacífico, cheio de princípios, encarnado por um ator de mais recursos do que se pode imaginar. Mais visceral só mesmo o desempenho de Woody Harrelson, que parece estar mesmo no melhor ano da carreira. Depois de 2012 e Zombieland, ele nos aparece aqui despido do carisma um tanto desvairado que marca seus melhores momentos, encarando um personagem de carne e osso, crível e interessante, numa perspectiva que poucos atores conseguiriam alcançar ou simular. Ele é a presença mais vibrante de todo o filme, deixando a atuação vagamente carismática do galã juvenil Channing Tatum (Comandos em Ação) absolutamente apagada. Risco que Charlize Theron, atriz cheia de seus recursos para se conectar ao espectador, não corre. Como a esposa traumatizada do personagem de Woody, ela é emoção a flor da pele, e abrilhanta algumas das cenas mais aflitivas e devastadoras de Batalha em Seattle com competência incontestável. Mais espaço mesmo merecia (como sempre), Ray Liotta, mais uma vez a encarnação perfeita de seu personagem como o manipulador, desonesto e ainda assim simpático aos olhos do espectador, prefeito de Seattle. Seu personagem ganha os contornos mais vagos do roteiro, mas Liotta se esforça e alcança uma interpretação bem delineada e que grita por mais tempo em tela.

Assim, com (poucos) erros e (muitos) acertos, Batalha em Seattle é um filme interessante, bem realizado, bem atuado e escrito com competência oscilante. Ainda assim, é inspirador. Porque a luta continua. E sua parte na batalha Townsend e sua equipe cumpriram com louvor. Resta saber se vamos escolher cumprir a nossa.

Nota: 8,5

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Batalha em Seattle (Battle in Seattle, EUA/Canadá/Alemanha, 2007)

Uma produção da Redwood Palms Pictures…

Escrito e dirigido por Stuart Townsend…

Estrelando Martin Henderson, Michelle Rodriguez, Woody Harrelson, Charlize Theron, Jennifer Carpenter, Andre Benjamin, Ray Liotta, Connie Nielsen, Channing Tatum…

99 minutos

19 de fev. de 2010

Um novo Anagrama, pronto para decifrar!

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Imagine a vida como um grande, colossal, giganteco ponto de interrogação no final de uma questão sem resposta que levamos por toda uma longa, tortuosa e deliciosa jornada. Qual é a graça da pergunta senão o mistério de sua resposta? Fórmulas e contestações fáceis, nas quais nossa ignorância teima em nos fazer acomodar, tornam o mundo como um enigma que, aparentemente, está resolvido antes mesmo de ser examinado. Cabe, portanto, a nós mesmos provar, a cada dia e sem parada, que nada sabemos. Que pouco conhecemos. Que de muito pouco podemos falar com o conhecimento pleno de quem compreende o assunto. Tempo. Vida. Universo. Infinitude. Idéias que nossa mente não pode suportar. A solução é projetá-las em outro plano, em um onde não há regras e existem poucos limites. O mundo da ficção.

É um mundo que não cabe apenas em palavras, livros, páginas, letras e frases. Está na linguagem complicada, cheia de etapas e complexidades, do cinema, se guarda por baixo dos tons, escalas e arranjos de uma canção, está por trás de cada intenção que passa pela cabeça do autor antes de voar a caneta pelo papel ou os dedos pelo teclado. Reinvenção constante, mudança imprevisível, interatividade total. Nós influenciamos o mundo, o mundo nos influencia.

É por isso que o Anagrama, ou melhor, o novo Anagrama, busca nessa fase renovada muito mais interatividade com seu leitor. A partir de agora, o espaço do blog será muito mais coletivo do que individual, possibilitando na medida do possível a participação, opinião e revolução operada pelo público que, no final das contas, molda o conteúdo e a forma de qualquer coisa que pretende ser lida e desfrutada. O Anagrama está aqui para vocês, sempre esteve, mas o novo Anagrama, além de estar aqui para vocês, vai estar aqui, cada vez mais, em vocês. Até que esse enigma se torne tão intrínseco em nós mesmos ao ponto que não poderemos dissociá-lo de nossa personalidade. Enfim, o novo Anagrama é uma interface plural e, na medida do possível, agradável a todos os olhos. Ainda que opinião vá sempre divergir em algum ponto, é para dicutir e aperfeiçoar o nosso conhecimento que estamos aqui.

Os assuntos continuam os mesmos, mas vão ser organizados de formas diferentes, colocados em fôrmas diversas daquelas que caracterizaram o blog por muito tempo, abrindo mais espaço para opiniões externas e realizando uma constante oposição de idéias que, como nos ensinou Platão, é a gênese da verdadeira criatividade. Criar é o objetivo do novo Anagrama, e talvez a grande condição para uma boa criação seja o elemento surpresa. Por isso, vai ser para quem acompanha o blog dia após dia que essa nova configuração vai se revelar, aos poucos. Afinal, se entregasse tudo em um texto, não estaria eu mesmo arruinando o mistério nosso de cada dia?

Descubram a si próprios. Pouco a pouco, aqui mesmo, no Anagrama.


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