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28 de dez. de 2015

Diário de filmes do mês: Dezembro/2015


por Caio Coletti

Nem todos os filmes merecem (ou pedem) uma análise complexa como a que fazemos com alguns dos lançamentos mais “quentes” ou filmes que descobrimos e nos surpreendem positivamente. Particularmente, também, eu não me dou a escrever críticas grandes de filmes que considero ruins ou irrelevantes, porque não vejo sentido em remoer demais os erros de uma produção cinematográfica. É levando em consideração a função da crítica e da resenha como uma orientação do público em relação ao que vai ser visto em determinado filme que eu resolvi criar essa coluna, que visa falar brevemente dos filmes que não ganharam review completo no site. Vamos lá:

Mississippi Grind (EUA, 2015)
Direção e roteiro: Anna Boden, Ryan Fleck
Elenco: Ben Mendelsohn, Ryan Reynolds, Sienna Miller, Analeigh Tipton, Alfre Woodard
108 minutos

Mississippi Grind começa com a imagem de um arco-íris se formando no céu. A simbologia utilizada pela dupla de diretores/roteiristas composta por Anna Boden e Ryan Fleck (Half Nelson) não poderia ser mais clara: esse é um filme sobre duas pessoas correndo atrás do famoso pote de ouro no final do fenômeno multicolorido. Ben Mendelsohn, um dos melhores e mais surpreendentes quase-astros de Hollywood no momento (indicado ao Emmy por Bloodline), faz o fracassado Gerry, um corretor de imóveis viciado em apostas que encontra o mais jovem e mais charmoso Curtis (Ryan Reynolds), e o identifica como seu amuleto da sorte, o convencendo a partir em uma viagem pelo Sul dos EUA para recuperar o dinheiro que deve a meio mundo. O filme elaborado por Boden e Fleck não é um de arroubos estilísticos ou narrativos complexos, mas uma história honesta, contada de maneira inteligente pela dupla, que estrutura um roteiro econômico e expressivo ao mesmo tempo, com tempo para ao menos um belo e contemplativo interlúdio (o período que Gerry e Curtis passam com as prostitutas feitas por Sienna Miller e Analeigh Tipton), mas uma refrescante e objetiva abordagem da movimentada jornada que retrata em seus 108 minutos. Mississippi Grind é chamado de “um grande filme americano” na citação que aparece em todos os posters por aí, e tal distinção lhe é merecida pela forma como encara seus protagonistas e a tipicamente americana sede por mais – mais vitória, mais felicidade (seja ela baseada em que, quantificada em que), mais dinheiro. Não é uma perspectiva pessimista, e sem dúvida é dotada de alguma empatia, mas os coloca mais como vítimas de si mesmos do que qualquer coisa.

Reynolds e Mendelsohn encarnam essa dupla de personagens de maneira espetacular, é preciso dizer. O filme é deles, e em última instância merece ser visto porque eles incutem perspectivas novas e interessantes nessas personas desenhadas pelo roteiro. Reynolds brilha ainda mais como o carismático Curtis, um papel ao mesmo tempo feito para seus alcances como ator (ninguém faz um tagarela charmoso como ele) e muito mais complexo do que a maioria das coisas que Hollywood lhe permitiu fazer. O idealismo que transpira em alguns momentos do personagem, a liberdade que ele representa para seu co-protagonista, a ambivalência quase imediata desses mesmos valores – todas essas sutilezas moram na atuação tremendamente inteligente de Reynolds, especialmente levando-se em conta o gigante com o qual ele contracena. O australiano Mendelsohn é uma presença dominante sempre que está em tela, mas na pele de Gerry a integralidade com a qual ele encarna o personagem, o entende e o traduz para a câmera é ainda mais impressionante. Esperem muitos prêmios no futuro desse astro tardio.

Mississippi Grind termina relativizando aquela busca pelo pote de ouro no final do arco-íris. Com seus últimos minutos surpreendentes, tocantes e agridoces, o filme parece olhar para a mentalidade americana, a relação entre vitória e fracasso e as pressões sociais que levam a essas construções sob um viés arguto e detalhista, mas nunca político. O filme de Fleck e Boden é humano, acima de qualquer coisa – e talvez por isso funcione tão bem.

✰✰✰✰ (4/5)



Como Sobrevier a um Ataque Zumbi (Scouts Guide to the Zombie Apocalypse, EUA, 2015)
Direção: Christopher Landon
Roteiro: Carrie Lee Wilson, Emi Mochizuki, Christopher Landon
Elenco: Tye Sheridan, Logan Miller, Joey Morgan, Sarah Dumont, David Koechner, Halston Sage, Cloris Leachmann Blake Anderson
93 minutos

Qualquer tom de sátira passa longe de Como Sobreviver a um Ataque Zumbi, um herdeiro maldito do casamento entre o infinitamente melhor Zumbilândia e as comédias no estilo Se Beber Não Case. Toda tentativa de comédia (ou pelo menos uma imensa parte delas) é feita sem nenhuma piscadela para o ridículo da situação, seja com o insuportável personagem feito por Logan Miller tirando selfies com os mortos-vivos ou os conselhos amorosos absurdos passados pela bartender Denise (Sarah Dumont) para o inseguro protagonista Ben (Tye Sheridan). Se você realmente precisa saber, o filme conta a história de um trio de escoteiros mirins que, nem mais tão mirins assim, escolhem o dia errado para tentarem fugir de um acampamento e ir para um festa – quando eles retornam à cidade, ela foi tomada por uma praga zumbi, e boa parte da população foi evacuada. O pouco pathos e empatia que o filme consegue levantar na sua história é graças à relação dos três protagonistas, marcada pela morte do pai de um deles e pela ambivalência dos outros dois em “abandonar” tal amigo, muito mais devotado aos escoteiros do que qualquer um deles. As mensagens da importância da amizade e de ser você mesmo são sempre bem-vindas, mas vem misturadas com tantas piadas grosseiras vindas do excesso de hormônios dos protagonistas (e, presumivelmente, da plateia) que fica difícil fazer vista grossa.

De vez em quando, uma dessas piadas funciona – memoravelmente, uma envolvendo uma parte do corpo inusitada de um dos zumbis, e outra envolvendo a princesa do pop Britney Spears (!), mas não sou eu que te direi, caro leitor, se tais momentos de diversão valem pela experiência de assistir ao resto do filme. O que eu posso dizer é que o clímax em uma piscina esvaziada, envolvendo armas alternativas e os três escoteiros exterminando toda uma horda de zumbis, não poderia ser estragado nem por mil piadinhas de mau-gosto; e que, por outro lado, o filme desperdiça talentos como o jovem Tye Sheridan (Lugares Escuros) e a veterana Cloris Leachmann (Raising Hope) sem explorar seus potenciais dramático e cômico, respectivamente. Com o risco de usar o trocadilho mais óbvio de todos, o que falta para Como Sobreviver a um Ataque Zumbi é justamente a iguaria na qual os monstros que retrata se deliciam: cérebro. Dependendo do seu objetivo quando entrar na sessão, isso pode ser um pró ou um contra.

✰✰✰ (2,5/5)



Missão: Impossível – Nação Secreta (Mission:Impossible – Rogue Nation, EUA, 2015)
Direção e roteiro: Christopher McQuarrie
Elenco: Tom Cruise, Jeremy Renner, Simon Pegg, Rebecca Ferguson, Ving Rhames, Sean Harris, Tom Hollander, Alec Baldwin
131 minutos

Quando Nação Secreta estreou nos cinemas, em Agosto, muita gente o viu como uma continuação brilhante justamente por seguir com a tradição da série Missão: Impossível de não ter muita conexão entre os capítulos. Agora, bons 4 meses depois, talvez o filme não pareça mais tão convencional para a franquia em que está inserido – recentemente, foi anunciado que o sexto capítulo da série já está em produção, o que não é comum para uma franquia que até hoje foi bissexta; atrelados ao projeto também estão Christopher McQuarrie, que se tornará o primeiro diretor a retornar à série, e Rebecca Ferguson, a primeira protagonista feminina a ter essa mesma distinção; por fim, vale destacar que Nação Secreta é a primeira entrada da franquia a ter um diretor que também serve como roteirista (J.J. Abrams co-escreveu M:I III, mas McQuarrie é o único roteirista creditado aqui). Não parece, mas faz diferença, e o sentimento é cada vez mais que, finalmente gozando de boa reputação com a crítica e bilheterias confiavelmente espetaculares, a série Missão: Impossível está pronta para ter uma continuidade de verdade. Mas o que isso significa para Nação Secreta?

Para começar, significa dar um pouco de atenção aos personagens. McQuarrie, com quem Cruise trabalhou no terrível Jack Reacher, faz escolhas mais sábias aqui ao: 1) deixar Ethan Hunt como o herói mal-definido e desenhado que sempre foi, um Coringa quase super-poderoso, mas eventualmente humano, com quem podemos simpatizar sem nos envolvermos muito; 2) servir boas doses de desenvolvimento para os coadjuvantes, se aproveitando do talento de gente como Simon Pegg (voltando como Benji) e da própria Rebecca Ferguson (The White Queen) para construir o começo de uma identificação com o público. Talvez o senso de movimento de McQuarrie como diretor não seja tão espetacular quanto o dos comandantes anteriores da série, mas é interessante que M:I tenha escolhido trazer um cineasta que dá importância a história. Nação Secreta ainda é maravilhosamente divertido, com doses generosas de pulp e absurdo hollywoodiano, mas tenta fazer uma coisa diferente – resta saber onde esse esforço vai dar, em 2017.

✰✰✰✰ (4/5)



Slow West (Inglaterra/Nova Zelândia, 2015)
Direção e roteiro: John Maclean
Elenco: Kodi Smit-McPhee, Michael Fassbender, Ben Mendelsohn, Caren Pistorius, Rory McCann
84 minutos

“Mesmas estrelas, mesma Lua. Um dia nós estaremos andando por aquela Lua. Eles vão construir uma estrada de ferro, uma estrada de ferro que suba e desça até lá. Uma estrada de ferro para a Lua. E quando chegarmos lá, a primeira coisa que faremos é caçar e matar os nativos”. Slow West não é seu faroeste tradicional. Até entre os faroestes revisionistas, ele pode ser classificado como incomum. Feito por um diretor britânico, com um elenco todo europeu, e filmado em uma das ilhas da Nova Zelândia, ele jamais poderia ser qualquer coisa que não um filme de Velho Oeste diferente – mas Slow Swet, felizmente, escolhe se diferenciar não só pelas circunstâncias em que foi produzido, mas pela forma como conta sua história, e pelo olhar que lança para ela. No trechinho de diálogo transcrito nas primeiras linhas deste parágrafo mora o coração do longa-metragem de estreia do diretor/roteirista John Maclean, a forma como ele retrata o Velho Oeste americano com um aspecto lúdico que é deixado sempre à mão, digressões filosóficas constantes e o olhar arguto de quem sabe que conjugar amor, beleza, violência e morte não é tão difícil quanto parece. No mundo real, elas andam muitas vezes de mãos dadas, e em Slow West também.

A história acompanha Jay Cavendish (Kodi Smit-McPhee em atuação espetacularmente sensível), um jovem escocês que vai parar em uma viagem improvável pelo Oeste americano após sua amada, Rose (Caren Pistorius), fugir para lá com o pai (Rory McCann). Tentando encontrá-la, ele topa com o fora-da-lei Silas (Michael Fasbender), que aceita pagamento para conduzi-lo mais ao Oeste e ajudá-lo na missão. O roteiro é impiedoso com os males e perversões da época que retrata, e ao mesmo tempo salva uma parte de sua aridez e melancolia para o tom quase conto-de-fadas da narrativa e especialmente da fotografia, uma obra de arte assinada por Robbie Ryan (Philomena), trabalhando brilhantemente as cores e enquadramentos, criando imagens marcantes para acompanhar a narrativa paciente e envolvente do filme. Slow West é um conto cruel e belo, ao mesmo tempo, sobre a forma como o impulso de violência e o impulso de paixão convivem dentro do ser humano, e sobre a forma como a realidade se choca com todos esses elementos já em conflito dentro do indivíduo. É uma estreia promissora para o diretor/roteirista, e um filme que merece ser tirado da obscuridade.

✰✰✰✰ (4/5)



Victor Frankenstein (EUA, 2015)
Direção: Paul McGuigan
Roteiro: Max Landis
Elenco: Daniel Radcliffe, James McAvoy, Jessica Brown Findlay, Andrew Scott, Charles Dance, Mark Gatiss
110 minutos

Na dança hollywoodiana das “reimaginações” de histórias clássicas, 2015 ficou mesmo no 2x0. Sem contar Cinderela, que na verdade não reimaginou tanto assim, as outras duas tentativas de grandes estúdios e elencos estrelados de revisitar personagens e histórias marcantes para a cultura do século passado não passaram nem perto de entregar o que prometeram. Pan acabou sendo uma concepção equivocada desde o início, com escalações estranhíssimas (Rooney Mara como a princesa indígena Tiger Lilly?) e uma revisão entediante do espírito e do significado da história dos Meninos Perdidos. Victor Frankenstein, por sua vez, é quase tão mal-idealizado quanto, e ainda por cima não tem um diretor como Joe Wright para fazê-lo funcionar pelo menos no nível visual. O que o filme assinado por Paul McGuigan (Xeque-Mate) tem, no entanto, é uma dupla de protagonistas comprometida com seus personagens e com a fisicalidade e intensidade deles, além da química que vai se construindo entre os dois durante o filme. Em alguns momentos em meio aos 110 minutos de metragem, isso é o bastante. Em tantos outros, passa longe de ser.

O golpe de misericórdia para quem ainda espera gostar bastante do filme vem nos últimos minutos, quando finalmente somos introduzidos à experiência de reanimação de cadáver pela qual o Dr. Frankenstein (James McAvoy) ficou conhecido no livro original de Mary Shelley. Depois da exaustiva e supostamente sombria e complexa (embora não seja nenhuma dessas duas coisas) história de origem do doutor e do assistente Igor, repaginado sem a corcunda e com o rosto de Daniel Radcliffe, o filme reduz a criatura da lendária história de terror a um slash killer instantâneo, um problema para se lidar no clímax apressado, sujo e “intenso” que não é muito diferente de muitos outros blockbusters hollywoodianos. Esse monstro formidavelmente físico é a coroação de um filme que quer com todas as forças ser um dos Sherlock Holmes de Guy Ritchie, mas não tem o bom humor e a esperteza para tanto. Victor Frankenstein depende, portanto, inteiramente de seus protagonistas – e a intensidade de McAvoy, junto com a inteligência da performance física e magnética de Radcliffe, fazem sua parte. Se isso for o bastante para você, não custa dar ao filme uma chance. Se não for, você vai se decepcionar.

✰✰✰ (2,5/5)



O Último Caçador de Bruxas (The Last Witch Hunter, EUA/China/Canadá)
Direção: Brek Eisner
Roteiro: Cory Goodman, Matt Sazama, Burk Sharpless
Elenco: Vin Diesel, Rose Leslie, Elijah Wood, Michael Caine, Òlafur Darri Ólafson
106 minutos

Filmes de Hollywood sobre bruxas são, com raras exceções, um festival de equívocos e clichês. Se há um subgênero que perpetua estruturas e storylines problemáticas (misóginas e xenofóbicas, entre outras coisas), não dá para negar que é esse. Por quê O Último Caçador de Bruxas seria diferente, então? A esperança contida no trailer do novo veículo de ação/fantasia de Vin Diesel era que o trabalho do diretor Breck Eisner (Sahara) trouxesse leveza ao material e que o roteiro assinado por Cory Goodman (Padre), Matt Sazama (Dracula Untold) e Buck Sharpless (Deuses do Egito) fosse esperto o bastante para reconhecer e brincar com o lado ridículo e pulp da história de um guerreiro imortal que, com a ajuda de uma organização religiosa/mística representada pelos padres feitos Michael Caine e Elijah Wood (!!), caça um antigo nêmesis trazido de volta à vida por bruxas dissidentes que não concordam com o opressivo tratado de ocultação dos poderes firmado e segurado pela Igreja. No entanto, se O Último Caçador de Bruxas não é o blockbuster que mais ridiculamente se leva a sério desse ano (esse título provavelmente fica com Quarteto Fantástico), está bem perto de ser.

O mais lamentável é que Diesel está entre os melhores e mais interessantes astros de ação em Hollywood hoje em dia. Tanto nos filmes da franquia Riddick quanto em momentos peculiares da carreira como o drama de tribunal Sob Suspeita, o ator californiano mostrou que não se deve subestimar o poder do seu carisma na hora de construir personagens em torno dos quais uma história pode se desenvolver. Esse magnetismo é desperdiçado aqui, juntamente com os consideráveis talentos de Wood, Caine e da jovem Rose Leslie (a Ygritte de Game of Thrones), por um roteiro fino como uma folha de papel, que não resiste a nenhum escrutínio maior e cujas “reviravoltas de trama” conseguem a proeza de serem previsíveis e insustentáveis ao mesmo tempo. Por fim, Eisner é um técnico habilidoso, mas não injeta personalidade ao filme, nem torna O Último Caçador de Bruxas mesmo que palidamente divertido. Uma pena.

✰✰ (2/5)



Quero Ser John Malkovich (Being John Malkovich, EUA, 1999)
Direção: Spike Jonze
Roteiro: Charlie Kaufman
Elenco: John Cusack, Cameron Diaz, Catherine Keener, Mary Kay Place, Orson Bean, John Malkovich, Charlie Sheen
112 minutos

Dezesseis anos atrás, Quero Ser John Malkovich foi a introdução do público ao mundo bizarro e metafictício de Charlie Kaufman, um talento que mais tarde nos daria Adaptação (2002), Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004), Sinédoque Nova York (2008) e, esse ano, o premiado Anomalisa. Cada uma das muitas idiossincrasias e marcas da escrita de Kaufman estão presentes nessa fábula dirigida com esmero por Michel Gondry (Rebobine, Por Favor), do surrealismo persistente das premissas até a caracterização aguda de personagens e relacionamentos, passando pela absoluta disposição a levar às últimas consequências as implicações filosóficas, psicológicas e práticas da história. Em Quero Ser John Malkovich, o sistema narrativo é de satisfação imediata – em um ritmo tremendamente gracioso de narrativa, Kaufman nos leva da descoberta da  peculiar “porta para a mente” do astro hollywoodiano do título para a hilária cena em que o próprio Malkovich adentra sua mente sem enrolações. Para a maioria dos filmes, 112 minutos não seria uma metragem enxuta, mas John Malkovich tem tanta história para contar que seu ritmo parece ágil e elegante mesmo assim.

A discussão que Kaufman levanta aqui. na sua estreia, é em muitos sentidos a “irmã mais nova” das discussões levantadas em seus filmes posteriores. John Malkovich é um estudo cômico, tocante e cuidadoso dos entremeios do desejo humano, da forma como uma personalidade, uma noção, uma ideia pode nos enamorar da mesma forma que o corpo físico de alguém. No final das contas, é uma história de amor torta e estranha como só Kaufman poderia escrever, e tem a sensibilidade cortante de Gondry para ajudar na direção, realçando as piadas e a precisão de seus personagens com uma direção limpa, de estética meio suja e direta. No elenco, os destaques ficam por conta de Cameron Diaz, que se aproveita do disfarce da falta de maquiagem e do cabelo diferente para mostrar profundidades novas de sua capacidade como atriz; Catherine Keener, em uma interpretação esperta e afiada do interesse romântico comum entre marido e mulher (John Cusack e Diaz), uma personalidade magnética, carismática e patética ao mesmo tempo; e do próprio Malkovich, que equilibra senso de ridículo, naturalismo e pathos para interpretar a uma versão idealizada de si mesmo com a habilidade do grande chatacter actor que inspirou Kaufman a escrever esse pequeno clássico moderno.

✰✰✰✰ (4/5)



Um Senhor Estagiário (The Intern, EUA, 2015)
Direção e roteiro: Nancy Meyers
Elenco: Robert De Niro, Anne Hathaway, Rene Russo, Anders Holm, Jojo Kushner, Andrew Rannells, Adam DeVine, Zack Pearlman, Nat Wolff, Linda Lavin, Celia Weston
121 minutos

As duas horas de metragem de Um Senhor Estagiário, novo filme dirigido e escrito por Nancy Meyers (Simplesmente Complicado, Alguém Tem que Ceder) passam quase sem serem percebidas. O estilo “classe média-alta e seus problemas” de Meyers, que atraiu muitas críticas no passado, serve bem à leveza e à eficiência do filme, uma fábula feminista light que se ancora nas atuações de seus dois protagonistas para conseguir pathos para mais uma história madura e esperta da roteirista, que ao menos guarda para si o mérito de colocar nas telas uma geração mais velha a quem quase nunca são dados papeis complexos e interessantes para interpretar. De Niro parece respirar aliviado por estar em uma comédia que o utiliza para além de piadinhas com sua idade e com sua persona de machão – pelo contrário, Um Senhor Estagiário faz dele um cavalheiro, um homem discreto, mas dotado de emoção, empatia e personalidade pulsantes. O trabalho que o veterano ator faz é detalhista, sutil e tremendamente eficiente em vários sentidos, sendo observado de perto pela câmera paciente de Meyers, que tem um olho para superfícies brilhantes e o que os críticos americanos chamam de luxury porn, mas não deixa de lado os personagens.

Quem brilha mesmo em Um Senhor Estagiário, no entanto, é Anne Hathaway, no que provavelmente é sua melhor atuação desde o Oscar por Os Miseráveis. Aqui, ao encarnar a motivada fundadora de uma companhia de comércio online que ainda mantem um casamento aparentemente feliz e uma filha adorável, Hathaway brinca habilmente com a persona de “garota perfeitinha” que cultivou na mídia (e que já a trouxe muitas críticas injustas), agarrando a oportunidade que o roteiro de Meyers a dá para tornar real, palpável e humana essa figura da mulher moderna, competente e bem-afortunada. Um Senhor Estagiário, em grande parte, apesar de contar a história de um viúvo aposentado (De Niro) que, não aguentando estar em casa o tempo todo, se torna estagiário da empresa comandada por Hathaway, pertence a ela. E a personagem complexa e carismática que ela constrói é o que faz o filme de Meyers funcionar, quase à força, porque Um Senhor Estagiário, embora seja uma experiência agradável e bem-intencionada, deixa transparecer que Meyers está esgotando as possibilidades de histórias para contar na estreita faixa socioeconômica em que ela se permite transitar.

✰✰✰✰ (3,5/5)



A Travessia (The Walk, EUA, 2015)
Direção: Robert Zemeckis
Roteiro: Robert Zemeckis, Christopher Browne
Elenco: Joseph Gordon-Levitt, Charlotte Le Bon, Ben Kingsley, Clément Sibony, James Badge Dale
123 minutos

Na sua meia-hora final, A Travessia é uma obra-prima, um testamento absoluto e inegável do talento espetacular de Robert Zemeckis para transportar o espectador para o mundo de seus personagens e suas sensações, usando em iguais medidas a magia digital da Hollywood contemporânea e a preocupação “antiquada” com a expressão de sentimentos e significados para além da maravilha visual. Assim que Philippe Petit (Joseph Gordon-Levitt) dá o primeiro passo na corda bamba que ele e seus comparsas estenderam ilegalmente no topo das Torres Gêmeas, A Travessia é uma montanha-russa, um espetáculo do qual é impossível tirar os olhos. A vertigem e a ansiedade se misturam com a pura mágica que o feito físico e artístico de Petit carregaram, com a ressignificação de um cenário urbano e com a humanização visceral que ele trouxe, em 1974, às torres de concreto que vieram a significar tanto em tantos sentidos para o mundo contemporâneo.

Os que buscam um relato sem fantasias devem ir atrás de O Equilibrista, documentário de James Marsh que ganhou o Oscar na sua categoria em 2009. A Travessia é uma fábula sobre o elemento criminoso e subversivo da arte, uma história obviamente embelezada pelos óculos da nostalgia, e contaminada pela narração em primeira pessoa de Petit, interpretado com garra por Gordon-Levitt, que ultrapassa a barreira do teatral sotaque francês e empresta vida a essa representação idealizada de uma figura real – no fundo dos olhos de Levitt mora a vontade incansável de desafiar que levou Petit a seu feito extraordinário, a ambição e a auto-confiança para levá-lo a cabo. Levitt é carismático e charmoso no papel, sem dúvida admirável, mas também um pouco assustador – ele é a carta na manga de A Travessia, um filme falho na definição do seu tom e do crescendo da narrativa, mas que ganha o jogo no seu protagonista e no absoluto tour de force do seu formidável final. Como performance e entretenimento, vale os aplausos de pé que Petit arrancou dos nova-iorquinos quatro décadas atrás.

✰✰✰✰ (3,5/5)

22 de dez. de 2015

Review: "Corrente do Mal" é o terror mais meditativo, contundente e assustador do ano

 
por Caio Coletti

O filme de terror em Hollywood, desde muito tempo, anda dividido em subgêneros bem rígidos. Há histórias de fantasma (O Espelho), histórias de possessão demoníaca (Livrai-Nos do Mal), histórias de assassinos sanguinários (essas estiveram mais na moda nos anos 80, com Jason Vorhees e Freddy Krueger), histórias de crianças sinistras (A Órfã), e há brilhantes explorações e exemplares de cada  um desses temas. O que é mais bacana de observar na leva de filmes de terror criticamente aclamados a surgirem na cena independente de vários países pelo mundo nos últimos anos, no entanto, é que eles corajosamente desafiam essas noções e classificações em favor de uma abordagem muito mais primordial, que faz do monstro/ameaça/medo representado no filme uma metáfora para alguma paranoia ou horror muito mais real, muito mais próxima ao espectador. É assim com The Babadook, uma detalhista e exasperante análise do luto; com Goodnight Mommy, um perturbador estudo sobre maternidade, altruísmo e construções de familiaridade; e com Corrente do Mal, que o diretor/roteirista David Robert Mitchell (The Myth of the American Sleepover) transforma em uma oportuna meditação sobre nostalgia, envelhecimento e a inevitabilidade de determinados destinos.

Ainda mais impressionante é a habilidade que Mitchell demonstra ao escrever sua mensagem e sua reflexão nas entrelinhas, criando na superfície um filme que remonta à demonização da sexualidade vista em filmes adolescentes (principalmente de terror) nos anos 80, um feeling muito assistido pela trilha-sonora recheada de sintetizadores e distorções do mago da música eletrônica Disasterpeace. Sob essa primeira camada, que faz maravilhas pela sensação de nostalgia que o filme busca provocar, Mitchell ainda toca habilmente numa representação do trauma do abuso sexual, aprofundando sua temática ao apresentar, principalmente através da eficiente atuação da protagonista Maika Monroe (The Guest) e do enervante efeito sensorial da sua “assombração” titular, a insistência e o horror de uma memória traumática que viola a parte mais íntima do indivíduo. É só ao ouvir atentamente os diálogos e buscar o significado das interações e dos rumos da história que o espectador desvenda Corrente do Mal como filme, como o conto aterrorizante sobre o amadurecimento e o devastador sentimento de morbidez que se instala inevitavelmente na vida adulta. Como a Allison de O Clube dos Cinco já dizia: “É inevitável, simplesmente acontece. Quando você cresce, seu coração morre”.



Monroe, que vai ascender ao estrelato em breve com o papel na continuação de Independence Day marcada para o ano que vem, estrela como Jay, uma jovem dos subúrbios de Detroit, nos EUA, que depois de um encontro sexual casual com um garoto (Jake Weary), é amarrada por ele a uma cadeira de rodas e avisada de que uma “maldição” vai cair sobre ela. O tal “it” do título original (It Follows) pode tomar diferentes formas, mas vai segui-la para onde ela for, em passo lento e constante, até conseguir pega-la – para se livrar dela, só “repassando” a maldição para outra pessoa, através de contato sexual. O que poderia ser uma metáfora óbvia e moralista sobre DSTs se torna no enervante dispositivo narrativo do diretor Mitchell para explorar o papel da sexualidade no amadurecimento, a busca pela liberdade através da conexão física, a liberação das neuras, preocupações e angústias através do sexo. Sem contar que, nas mãos de Mitchell e do diretor de fotografia Mike Gioulakis (Lake Los Angeles), o passo firme e lento da assombração é um prato cheio para manipular o espectador.

Corrente do Mal tem poucos sustos, embora os que estejam presentes nos ágeis 100 minutos de filme sejam mais que eficientes – é na lenta paranoia e incômodo que instala em seu espectador que o filme mostra a que veio. Gioulakis emprega fotografia em profundidade, ocasionais takes do ponto de vista dos personagens e equilíbrio de cores e luzes brilhante para nos deixar atentos a cada movimento nos fundos da ação principal, e logo assistir Corrente do Mal se torna um exercício estressante de análise de frame em busca da persistente maldição que persegue a protagonista. O design de produção, assinado por Michael Perry (Pânico no Ar) não complica as coisas, mas traz uma sensação de estranha atemporalidade aos locais pelos quais os personagens passam, seja pela mistura dos telefones celulares (um deles um aparelho de design particularmente marcante) com as televisões antigas passando filmes em preto-e-branco ou pela sempre ligeiramente abandonada paisagem do subúrbio em que o filme se passa.

Em Corrente do Mal, esses pós-adolescentes desconectados de si mesmos, entre si e do mundo são confrontados com a aterrorizante noção de que sua juventude não vai durar para sempre. Na forma de um espectro que personifica esse e outros tantos medos relacionados à vida adulta e ao confronto com o mundo lá fora (abandono, traição, sexualidade, violência), David Robert Mitchell criou um dos monstros mais sufocantemente reais e inescapáveis do cinema de terror. O pânico e o mal-estar que Corrente do Mal deixa no espectador quando sobem os créditos não vem de outro lugar senão da realização de que nós também estamos sendo seguidos pela lenta e incansável maldição da mortalidade, do tempo, da responsabilidade, do medo de tudo e de todos – e não importa com quem estejamos, nós nunca vamos nos livrar dela.

✰✰✰✰✰ (5/5)


Corrente do Mal (It Follows, EUA, 2014)
Direção e roteiro: David Robert Mitchell
Elenco: Maika Monroe, Keir Gilchrist, Lili Sepe, Olivia Lucardi, Jake Weary, Daniel Zovatto
100 minutos

21 de dez. de 2015

Review: "Mistress America" é mais um filme genial da parceria Noah Baumbach + Greta Gerwig

 
por Caio Coletti

Frances Ha é, para todos os efeitos, e no que consta para este que vos fala, um dos melhores filmes dos últimos cinco ou dez anos. A comédia excêntrica é assinada por Noah Baumbach (A Lula e a Baleia), na primeira parceria dele com a namorada Greta Gerwig (Para Roma, Com Amor), que co-escreveu e protagonizou a história de uma bailarina fracassada que pula de situação ruim para situação ruim quando sua melhor amiga (Mickey Sumner) subitamente se muda do apartamento que dividiam. Um estudo empático e cínico (sim, ao mesmo tempo) de uma geração sem rumo definido nem vontade o bastante para definí-lo, algumas características dessa obra-prima pouco reconhecida (leia o review d’O Anagrama aqui) também estão presentes em Mistress America, segundo filme que o casal Baumbach + Gerwig escreve juntos, e segundo desses incríveis feitos cinematográficos que muitos críticos deixam passar como apenas “filmes sinceros”, ou “indies charmosos”.

Na verdade, é possível argumentar facilmente que, embora tenha muitas virtudes, os adjetivos “sincero” e “charmoso” não exatamente se aplicam à Mistress America. Ao contrário do tom predominantemente doce e da evocação da fotografia preto-e-branco de Frances Ha, aqui o retrato da geração de nova-iorquinos entrando na casa dos 30 anos cuja ambição não é páreo para a imensa incapacidade de planejamento e de perseverança contida neles é muito mais ácida. E, tomando suas dicas dos próprios personagens e da visão que tem deles, o filme pouco tem de sincero, escalando e navegando subterfúgios de dramatização e idealização o tempo todo, mais obviamente na narração em off da protagonista Tracy (Lola Kirke, irmã mais nova de Jemima Kirke, atriz de Girls), uma aspirante a escritora que começa a frequentar a faculdade em NY e, por incentivo da mãe divorciada, se conecta com sua futura meia-irmã (a filha do homem com o qual sua mãe vai se casar, no caso), uma trintona que mora a alguns quarteirões da Times Square e planeja abrir um restaurante caseiro (“Mom’s”), mesmo que não saiba nada sobre cozinha (ela se diz, orgulhosamente, “auto-didata”).

Tracy se enamora pela ideia dessa personagem, a Brooke feita por Gerwig em uma atuação espetacular, expressiva, carismática e tremendamente sutil, e escreve sobre ela um conto que divide o nome do filme. Em Mistress America, Brooke é uma figura à la Gatsby, uma representação falida do sonho americano e um conjunto de maneirismos e características que a justifica nesse status. É até curioso comparar a atuação de Gerwig aqui com a de Leo DiCaprio na versão mais recente de Gatsby, porque embora ambos confiem em determinadas características de fala, linguagem corporal e idealização visual de personagem, há na performance de Gerwig uma contemporaneidade e uma transparência diferentes, o que funciona às mil maravilhas quando Mistress America desmonta as noções pré-concebidas que cada um dos personagens tem do outro, e especialmente de Brooke, essa figura quase mítica que Tracy pinta em seu conto. De certa forma, o filme de Baumbach e Gerwig é uma metaficção, um confronto cheio de truques de manipulação do espectador para contestar e destrinchar nossa idealização de personagens que vemos em tela.



Por outro lado, o filme é também um retrato simultaneamente realista e generoso de duas gerações. O tédio existencial da mais jovem Tracy, e a forma como a superficialmente ambiciosa Brooke vira sua vida de cabeça para baixo soa muito realista para qualquer pessoa que pertença a uma dessas duas gerações. Mistress America é espetacular porque entende, como narrativa, os entremeios da vida dessas duas personagens (e de todos ao redor delas, é claro) e parece superficialmente irritado com os seus cacoetes e suas particularidades, mas ao mesmo tempo não as julga mal por eles. Enxergar a beleza em algo ao mesmo tempo em que se enxerga a falha, a impossibilidade, o aborrecimento existencial nele é uma habilidade extraordinária, e em vários momentos de Mistress America fica claro que Baumbach e Gerwig fazem isso de maneira linda juntos – para citar só um, vale destacar a cena em que Tracy e Brooke apresentam a ideia do “Mom’s” para um potencial investidor, depois de muita confusão.

Para fechar a conta e declarar Mistress America um dos melhores filmes do ano (de novo), é impossível não citar a forma como Baumbach parece dotar tudo de movimento e de paixão. Seja em momentos de comédia como toda a confusão na casa do tal investidor, ou em cenas mais quietas como os minutos iniciais de Tracy na faculdade ou a viagem de carro que os personagens fazem em certo momento na trama, a câmera de Baumbach, com assistências imprescindíveis de Jennifer Lame (editora) e Sam Levy (diretor de fotografia), cria um mundo muito real em que, assim como em Frances Ha, as pessoas e as coisas estão sempre se movendo em direção a algum lugar, e saindo de algum outro. É uma forma espetacular de se fazer cinema, e garante ao filme uma fluidez e um ritmo que talvez ele não teria nas mãos de um diretor de “indies charmosos” preso em convenções.

É preciso desenhar a linha, portanto: o que Baumbach e Gerwig representam hoje não é um casal “fofo” com um bom gosto para fazer filmes. É uma das parcerias criativas mais imprescindíveis da filmografia atual. E Mistress America é só o segundo fruto dessa parceria – o que significa que eles ainda podem melhorar, e muito.

✰✰✰✰✰ (5/5)


Mistress America (EUA/Brasil, 2015)
Direção: Noah Baumbach
Roteiro: Noah Baumbach, Greta Gerwig
Elenco: Lola Kirke, Greta Gerwig, Heather Lind, Matthew Shear, Jasmine Cephas Jones, Michael Chernus
84 minutos

17 de dez. de 2015

Você precisa conhecer: Lapsley é uma das artistas jovens mais independentes do momento

 

por Caio Coletti

Natural de Liverpool, na Inglaterra (a lendária cidade-natal dos Beatles), Holly Lapsley Fletcher, conhecida artisticamente apenas pelo nome do meio, é uma garota-prodígio. Atualmente aos 18 anos, a loirinha vem postando músicas no Soundcloud desde o ano passado, sendo notada por nomes de destaque da indústria britânica (principalmente a apresentadora de TV e DJ Annie Mac), o que lhe garantiu destaque e o título de artista para se observar em várias listas e prêmios prestigiados. 2015 foi o ano em que ela mergulhou de cabeça na produção dos seus primeiros lançamentos por uma gravadora, mas vale a pena explorar o que Lapsley lançou antes de conquistar a indústria.

O EP Monday, disponível no Spotify e também no Soundcloud da cantora (ouça logo aí embaixo) é uma obra de simplicidade ímpar, mostrando as tendências minimalistas de Lapsley e mesmo assim criando melodias e batidas geniosas para canções rápidas e fulminantes. Para quem gosta de música eletrônica com um quê de jazz e melodias clássicas, vale a pena – o resultado é surpreendentemente cativante e moderno:


Foi o single “Station”, no entanto, que colocou Lapsley definitivamente no mapa. A canção é um dueto improvável, já que ambas as vozes (uma distintivamente masculina e outra distintivamente feminina) são performadas pela própria Lapsley, com o auxílio de uma ferramenta de distorção de vocal. A química estranha da canção, que toma todo o tempo do mundo para desenhar uma linha crescente, funciona de um jeito inesperado – “Station” é uma faixa inteligente e emocional, liricamente complexa mas tremendamente eficiente em transmitir o mood da mensagem. A partir de “Station” (veja o clipe logo aí embaixo), ficou claro que Lapsley podia fazer qualquer coisa.



“Bom, eu ouço muita música eletrônica, mas eu venho de um background que é bastante clássico – eu toco piano, violão e oboé. Eu só queria fazer o tipo de música que eu ouviria, então eu fui para o GarageBand e experimentei”, ela contou ao site The Skinny. Com o sucesso (relativo) de “Station”, as entrevistas começaram a pipocar, e a história da jovem inglesa, as influências que a levaram até onde estão, começaram a ficar claras. Ela conta ao i-D que ouvia muito jazz com o avô e, ao mesmo tempo, Fatboy Slim, The Smiths e Kate Bush com os pais – as raves britânicas também foram uma inspiração para buscar batidas e elementos da música eletrônica.

Mais uma coisa: não espere nada além de muita confiança em si mesma vindo de Lapsley. “Eu não gosto da fricção de estar em uma banda”, ela contou ao The Skinny. “Eu tenho minhas próprias ideias e eu não quero ninguém me dizendo ‘isso é certo, isso é errado’. Se eu faço por mim mesma, só eu tenho o controle”. Ela também é sincera quanto aos objetivos: “Eu quero ser respeitada nessa indústria, basicamente. Isso não quer dizer necessariamente estar nas paradas, cantar no Jools Holland ou ganhar o Mercury Prize… essas são coisas legais, mas eu quero que os outros músicos digam ‘eu respeito essa pessoa, eu gosto da sua música’”.

A impressão que fica ao conhecer Lapsley é que ela é uma artista independente na melhor e mais simples acepção da palavra. Para ela, ser independente não significa necessariamente estar fora do sistema de gravadoras, mas sim ter autonomia para tomar suas próprias decisões e idealizar sua própria música. É por isso, também, que ela é uma artista que vale tanto a pena acompanhar a partir daqui, como os mais recentes singles como “Brownlow” (ouça aqui) e “Falling Short” (aqui) demonstram.

A coroação desse começo de carreira para Lapsley, no entanto, é provavelmente “Hurt Me”, uma canção de decepção amorosa tão tremendamente bem idealizada, escrita e interpretada que nos chamou a atenção para essa interessantíssima nova artista da sempre prolífica cena musical inglesa. Veja o clipe aí embaixo!

Para quem gosta de: Mikky Ekko, Kindness, BANKS, Active Child

14 de dez. de 2015

Review: "Tangerina" é o filme mais importante do ano, e precisa ser visto por mais gente

 

por Caio Coletti

Tangerina não vai estar em nenhuma das grandes premiações que vão começar a ser distribuídas por Hollywood nos próximos meses. Embora houvesse muita expectativa a respeito desde que o filme estreou no Festival de Sundance, em Janeiro, as indicações que já foram anunciadas trancaram as portas de vez para a entrada do filme independente mais celebrado de 2015 no circuito de prêmios. Tangerina foi filmado inteiramente com câmeras digitais, e mais ainda do que isso, com câmeras de iPhone; foi filmado numa das regiões de prostituição mais notórias de Los Angeles; e tem duas protagonistas (e várias coadjuvantes e figurantes) transexuais negras, interpretando prostitutas também transexuais. Deu para entender já o porquê do Oscar e outras premiações importantes terem esnobado a obra de Sean Baker (Uma Estranha Amizade)? E deu para entender o porquê de Tangerina ser tão absolutamente vital para a filmografia americana e mundial da atualidade?

Essa iniciativa de cinema de resistência, feito na rua e com tanta autenticidade e cuidado, empalideceria, é claro, se o trabalho técnico e artístico não estivesse à altura. Mas dispensar Tangerina pela estética e pela vibe narrativa diferente do que estamos acostumados a consumir no cinema (principalmente em filmes americanos) seria um erro. Por exemplo, a câmera absurdamente dinâmica de Baker e do co-diretor de fotografia Radium Cheng (The Americans), e a forma como ela sempre mantem aspectos do ambiente no qual a história está se desenrolando em evidência, é uma preciosidade, mas é também um gosto adquirido. Acredite em mim, se você permitir que ele te envolva, cada aspecto de Tangerina (da absurdista trilha-sonora com faixas underground de trap music ao ritmo frenético entrelinhado por retrato e consciência social) vai crescer dentro de você.

Baker tem noção que a história que resolveu contar é uma de imersão cultural, e sabe equilibrar gêneros com maestria, passeando com as personagens por Los Angeles para nos localizar dentro do mundo particular do filme. A protagonista Sin-Dee (Kitana Kiki Rodriguez) acaba de sair da prisão, na véspera de Natal, e descobre através da melhor amiga Alexandra (Mya Taylor) que o seu namorado e cafetão, Chester (James Ransome), a traiu com uma prostituta cis (ou seja, que nasceu com as partes femininas) durante o curto tempo de encarceramento pelo qual Sin-Dee passou. O filme acompanha a protagonista em busca da traidora para confrontá-la e eventualmente ao namorado, mas também dedica tempo à jornada de Alexandra para tentar levar pessoas para ouví-la em um bar local, onde vai se apresentar cantando. A terceira linha narrativa diz respeito ao taxista armênio Razmik (Karren Karagulian), que mantem uma família mas, durante suas horas de trabalho, “visita” a zona de prostituição das nossas protagonistas, convencionalmente exclusiva para prostitutas transexuais.



Tangerina é uma narrativa de pequenos detalhes e demonstrações sociais, se esforçando para colocar o espectador na mentalidade e na rotina desses personagens – seja no retrato das corridas e clientes tremendamente variados de Razmik ou na crônica de alguns programas que Alexandra faz durante a tarde. Sobra coragem para Baker e companhia na hora de criar imagens apropriadas (que nunca parecem gratuitamente vulgares, mas tampouco se censuram) para essas realidades, vividas com tanta intensidade por suas protagonistas. Kitana Kiki Rodriguez é uma roubadora de cenas frenética, construindo sua personagem com cuidado em momentos mais quietos, e deixando que o roteiro fale por si; mas quem brilha mesmo é Mya Taylor, em uma estreia reveladora, encarando um papel que transmite tanto da sua verdade e, ao mesmo tempo, lhe exige tanta habilidade para expô-la. Taylor domina a cena quando está nela, com seu sorriso raro e seu olhar intenso, que fazem falta quando ela não está lá – de todas as indicações que os grandes prêmios poderiam conceder à Tangerine, a indicação de Taylor como Melhor Atriz Coadjuvante talvez fosse a mais urgente, e mais justa.

Captar o humor e a tragédia da vivência dessas personagens tão raramente vistas, ainda mais sob um holofote tão grande, no cinema, não é tarefa para qualquer diretor ou roteirista. O que Baker arquivou aqui vem de um trabalho hercúleo de imersão, e tenta nos incluir nesse trabalho também, nos convidando a habitar por curtos 88 minutos esse mundo negligenciado não só pelas mídias e artes em geral, mas pela sociedade em todas as suas esferas. Tangerina é importante – sublinhe, repita, berre essa palavra se for preciso – porque não só cria esse processo, mas joga um olhar compreensivo, sensível e empático sobre essas personagens absolutamente reais, e sobre as terríveis opressões pelas quais elas passam, além de quebrar um ciclo vicioso em Hollywood de filmes sobre personagens transexuais feitos sob a perspectiva cis, e não fazer grande alarde sobre nada isso. O cinema, e o mundo, precisam de mais filmes como esse.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)


Tangerina (Tangerine, EUA, 2015)
Direção: Sean Baker
Roteiro: Sean Baker, Chris Bergoch
Elenco: Kitana Kiki Rodriguez, Mya Taylor, Karren Karagulian, Mickey O’Hagan, James Ransome
88 minutos

7 de dez. de 2015

Review: “Beasts of No Nation” é impiedoso porque precisa ser

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por Caio Coletti

Misery porn é um dos termos mais ridículos do repertório da crítica cinematográfica – ou melhor, da crítica de ficção num geral. Segundo os cínicos adeptos dessa nomenclatura, determinadas histórias sofridas são contadas no cinema, na literatura, no teatro e na TV apenas como um veículo pelo qual o espectador pode experimentar esses sofrimentos que estão longe de si de forma segura, dentro de casa ou da sala de cinema. A empatia gerada por esses filmes, que muitas vezes retratam situações reais, imbuídos da temida classificação misery porn, é fugidia, não tem consequência, é uma mera massagem de ego para o espectador, que pode sair da sessão satisfeito consigo mesmo por ter “vivido”, por algumas horas, uma realidade menos privilegiada do que a sua. O que esse pessoal do misery porn não conta, no entanto, é que o cinema, assim como qualquer arte, é um agente de mudança social, e que trazer um retrato vívido e empático do horror da guerra como Beasts of No Nation pode influenciar muita gente a pensar duas vezes antes de declarar apoio à próxima intervenção militar ocidental na África, ou às políticas assistencialistas e paliativas adotadas pelo “primeiro mundo” ao mexer num ambiente político já bastante instável.

Não, eu não estou dizendo que Beasts of No Nation é a peça definitiva de cinema que vai fazer o mundo dar meia volta e reverter toda a perspectiva e a política relacionada aos conflitos civis na África, mas certamente pode ser uma arma poderosa para sensibilizar quem ainda precisa ser sensibilizado por essa situação. Visto com consciência política, o novo filme de Cary Joji Fukunaga (Jane Eyre) é uma das obras mais veementemente anti-guerra em muito tempo, um tratado inteligente e humanizado sobre as mil formas pelas quais o tal “catálogo de horrores” apontado pelos críticos chatos é capaz de moldar e ferir de forma irreversível uma mente em formação. É uma representação importante de um drama mais que real, não poupa detalhes e não tem (muitas) censuras justamente para mexer com as reações mais viscerais do espectador e fazê-lo não só vivenciar por umas poucas horas, mas entender profunda e irreversivelmente o desespero vivido pelo personagem principal.

O roteiro de Fukunaga, adaptando o escritor nigeriano Uzodinma Iweala, posa uma reflexão sobre as fantasias e ilusões que guiam a doutrina pregada pelos líderes militares dessas regiões, que ganham ares de Messias para os soldados-criança que treinam. Vingança, violência, predatismo e antagonismo mortal entre facções sociais e políticas são valores que aparecem no discurso do Commandant (Idris Elba), sanguinária figura-chefe do regimento de soldados para o qual Agu (Abraham Attah) debanda após perder toda a família em um ataque à “zona neutra”, teoricamente protegida pelas forças ocidentais, na qual vivia. As inclementes 2h17m do filme que se segue a essa cuidadosa construção de cenário acompanham Agu em uma jornada tremendamente desumanizadora. Ao mesmo tempo, na figura do estreante Abraham Attah, o filme de Fukunaga encontra o ponto de equilíbrio para justificar algumas atitudes que mostram que, embora a inocência da infância seja violada pela história do menino, a dignidade humana ainda sobrevive ali em alguns resquícios.

A naturalidade da performance do menino, recrutado pela equipe do filme em Gana, se confronta com o espetacular (e assustador, e revoltante, e de certa forma patético) magnetismo da atuação de Elba, o único ator reconhecível do filme. A presença imponente do intérprete de Heimdall nos filmes da Marvel esconde uma complexidade insuspeita, um entendimento do personagem que ultrapassa o cenário em que ele se encaixa sem nunca fazê-lo parecer desconectado da realidade do filme. O Commandant é um déspota egoísta como tantos outros, mas há nele também um gosto desprezível por se aproveitar das mentes e personalidades mais frágeis, um senso de si inflado que é brilhantemente destronado pelo terceiro ato do filme. É difícil acreditar que Attah possa chegar à competição do Oscar, infelizmente, mas se Elba estiver fora da lista no ano que vem, a injustiça será dupla.

Fukunaga dirige, escreve e fotografa seu próprio filme, um feito do qual poucos diretores podem se gabar. O resultado do empreendimento de multitasking é um conjunto bastante coeso e, ao mesmo tempo, bastante indulgente às experiências e vícios do seu autor. Conhecido por dirigir a primeira temporada de True Detective, Fukunaga abusa dos takes longos, os famosos tracking shots épicos que viraram mania no cinema de autor contemporâneo. O recurso é particularmente efetivo, embora um pouco confuso, na chocante cena em que Agu e os outros soldados do seu regimento invadem e depredam um casarão – mas o virtuosismo técnico insistente e chamativo de Fukunaga às vezes entra na frente da história, como acontece na estranhíssima sequência em que o equilíbrio de cores é alterado para que uma ofensiva militar por uma floresta passe por uma viagem de ácido e drogas. Em geral, o trabalho do diretor está em seu melhor quando observa, sem aparente alarde, momentos como Agu andando perdido pela floresta depois do massacre em seu vilarejo, ou uma reunião das crianças-soldado embaixo de um caminhão na chuva. O diretor não ousa fazer de Beasts of No Nation um filme belo, e ainda bem, mas arquiva alguma sofisticação dentro da narrativa brutal pela qual se movimenta.

Poucas expressões definiriam menos a sensação de assistir Beasts of No Nation do que misery porn. Não houve prazer ligado ao ato de ver o sofrimento de um outro que, por mais longe que esteja de mim, eu pude acompanhar por 2 poderosas horas de cinema. Não houve sensação de conforto ou ego massageado ao terminar a sessão, ao ouvir os medos e certezas de Agu nos últimos diálogos – houve um profundo desgosto pelos sistemas de opressão que levam o ser humano a agir dessa forma, e uma reafirmação da crença de que qualquer ato de guerra, de violência, é vil e cruel, e que acreditar o contrário é o mesmo que pessoalmente alvejar cada uma das crianças representadas no filme. Beasts of No Nation nos pergunta se queremos ser como o Commandant, que torna crianças em alguma outra coisa muito menos pura, e precisa incomodar para fazer essa pergunta com a contundência que faz.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

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Beasts of No Nation (EUA, 2015)
Direção: Cary Joji Fukunaga
Roteiro: Cary Joji Fukunaga, baseado no livro de Uzodinma Iweala
Elenco: Abraham Attah, Idris Elba, Ama K. Abebrese, Emmanuel Nii Adom Quaye
137 minutos

1 de dez. de 2015

Diário de filmes do mês: Novembro/2015

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por Caio Coletti

Nem todos os filmes merecem (ou pedem) uma análise complexa como a que fazemos com alguns dos lançamentos mais “quentes” ou filmes que descobrimos e nos surpreendem positivamente. Particularmente, também, eu não me dou a escrever críticas grandes de filmes que considero ruins ou irrelevantes, porque não vejo sentido em remoer demais os erros de uma produção cinematográfica. É levando em consideração a função da crítica e da resenha como uma orientação do público em relação ao que vai ser visto em determinado filme que eu resolvi criar essa coluna, que visa falar brevemente dos filmes que não ganharam review completo no site. Vamos lá:

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Quarteto Fantástico (Fantastic Four, EUA/Alemanha/Inglaterra/Canadá, 2015)
Direção: Josh Trank
Roteiro: Jeremy Slater, Simon Kinberg, Josh Trank
Elenco: Miles Teller, Michael B. Jordan, Kate Mara, Jamie Bell, Toby Kebbell, Reg E. Cathey, Tim Blake Nelson
100 minutos

Os primeiros minutos de Quarteto Fantástico pertencem a um filme bem diferente da miscelânea de decisões narrativas que se seguem na 1h40 do filme, considerado universalmente um dos piores do ano. O diretor Josh Trank, que vem direto do elogiado filme alternativo de super-heróis Poder Sem Limites (2012), tenta naquelas cenas de abertura fundar a criação mais característica (e caricata) da Marvel da era do outro em um contexto realista e em um encantamento científico baseado em truques do cinema indie que funciona às mil maravilhas. Nos momentos em que um Ben Grimm  e um Reed Richards ainda na infância se encontram e o segundo mostra uma de suas experiências para o novo melhor amigo, parece que Quarteto Fantástico vai ser um olhar interessante sobre esses personagens. Parece também que o filme de Trank, co-escrito por Jeremy Slater (Renascida do Inferno) e Simon Kinberg (Sherlock Holmes) não vai deixar de incutir um humor que, embora muito mais humano do que as tentativas nada sutis dos dois filmes estrelados por Jessica Alba e Ioan Gruffudd, talvez funcione até melhor. O problema é que todas essas promessas são destruídas porque o filme se aventura em uma narrativa grandiosa e um ritmo estranhíssimo, e o diretor Trank não sabe fingir que está interessado nessas seções bem o bastante. É visível quando o cineasta toma o controle de novo – o body horror da sequência em que o quarteto acorda depois da desastra viagem inter-dimensional que os rendeu poderes é pungente e acertadíssimo, auxiliado pela edição espetacular de Elliot Greenberg (Quarentena) e Stephen E. Rivkin (Avatar).

Esses raros flashes de brilhantismo são ofuscados, e em larga margem ainda, pelos passos burocráticos e apressados da narrativa de “origem” dos heróis, e o resultado final é um amontoado descompensado de ideias nunca levadas à cabo de forma completa. A tentativa de resvalar na ficção científica pulp na (intencionalmente?) hilária sequencia em que o quarteto visita a tal “outra dimensão” para a qual viajam, é uma boa ideia, especialmente por dialogar com os quadrinhos, mas o diretor Trank e o fotógrafo Matthew Jensen (Filth) não tem tempo para estabelecer o tom ou a abordagem, assim como, inclusive, acontece com todas as múltiplas “seções” e “misturas de gênero” que o filme, em seus modestos 100 minutos, ainda tem que conciliar com um clímax apressadíssimo desenhado pelo estúdio. O fracasso retumbante de crítica e público de Quarteto Fantástico provavelmente significa que a Fox não vai tentar tão cedo ressuscitar a franquia – a boa notícia é que talvez a performance comercial pobre faça o estúdio desistir dos personagens de vez e vendê-los de volta para a Marvel, que até agora não errou na caracterização de um personagem dos quadrinhos.

Caso aconteça mesmo, quem sabe não seria uma boa ideia dar espaço para os jovens atores que agarraram os papeis aqui? Mara e Teller podem desenvolver um pouco mais de química se o tempo de tela (e o roteiro) os deixar, e são atores mais do que capazes por si mesmos; Michael B. Jordan e Jamie Bell são escolhas inteligentes para um Quarteto com mais personalidade, mas sem perder o bom-humor; o vilão Toby Kebbell, por outro lado, provavelmente é um casting para se repensar. Ou não, vai saber. Apressado, equivocado e tremendamente irregular, Quarteto Fantástico começa e termina sem nos deixar conhecer de verdade a visão que Trank e os atores tinham para os personagens – o que é uma pena, se tratando de um grupo tão comprovadamente talentoso.

✰✰ (2/5)

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Circle (EUA, 2015)
Direção e roteiro: Aaron Hann, Mario Miscione
Elenco: Julie Benz, Mercy Malick, Carter Jenkins, Molly Jackson, Michael Nardelli, Sara Sanderson, Lisa Pelikan
87 minutos

A ficção científica independente, ou melhor, o cinema independente americano como um todo, nunca esteve em um melhor momento. Com o apoio constante de plataformas de streaming e uma base de fãs crescente construída em filmes pequenos, festivais e até webseries, cineastas e escritores iniciantes tem ganhado atenção com filmes em que uma premissa geniosa se estende em todo um longa-metragem. Cada vez mais, o cinema independente confia em gimmicks, em uma premissa inerentemente intrigante cujo desenvolvimento, fator de imprevisibilidade e satisfação final dependem totalmente da competência dos cineastas em questão. Para a sorte do instigante Circle, a dupla Aaron Hann e Mario Miscione (que ganharam os primeiros fãs com a websérie The Vault, que tinha uma premissa parecida) tem bastante competência para compensar pelas falhas de valores de produção e desenvolvimento cinematográfico. O filme do duo de diretores/roteiristas não é nenhum Coherence (ainda o melhor exemplar do estilo), mas não escapa das particularidades da observação social que faz, e reúne um elenco sólido para sustentar uma trama toda baseada em diálogo, discussões de poder e preconceitos. Esses filmes parecem-se, invariavelmente, com um episódio estendido de Além da Imaginação, mas Circle é daqueles que fazem jus à referência, seja com o seu desfecho iconográfico ou com o pessimismo inerente do desenrolar do roteiro. Hann e Miscione tem uma visão sombria sobre a humanidade, e Circle reflete e faz valer essa visão sem pudores, o que já é um ponto a mais para o filme.

Para a premissa: 50 estranhos acordam em uma sala completamente escura, cada um deles parado em pé em um círculo vermelho, e descobrem que a cada poucos minutos um raio de energia mortal acerta um dos integrantes do círculo, em um ato que a princípio parece aleatório – logo eles descobrem, no entanto, que esse macabro jogo de roleta russa na verdade é controlado por eles mesmos, que podem votar em quem deve morrer em seguida (para ajudar, só a própria pessoa consegue ver seu voto). Circle merece algumas revisões, só para notar como a premissa permite interpretações interessantes de tramas e reviravoltas inesperadas. Ao contrário de Coherence, em que o espectador era deixado completamente no escuro, um observador não-participante, em Circle nós somos, como plateia, o 51º integrante do círculo, e não importa se escolhamos um “lado”, assumamos uma “torcida”, ou não, de todas as lealdades e verdades dos personagens, só sabemos com certeza a nossa. É uma operação esperta operada pelos diretores, mesmo que o trabalho de fotografia, trilha-sonora e edição não exatamente acompanhem essa percepção profunda dos dispositivos cinematográficos que os diretores demonstram.

Para ser o melhor que poderia, Circle precisaria de mais gente talentosa atrás das câmeras – mas ainda do jeito que está, merece e muito os fugazes 87 minutos que rouba do espectador.

✰✰✰✰ (3,5/5)

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Nocaute (Southpaw, EUA, 2015)
Direção: Antoine Fuqua
Roteiro: Kurt Sutter
Elenco: Jake Gyllenhaal, Rachel McAdams, Forest Whitaker, Oona Laurence, 50 Cent, Naomie Harris
124 minutos

A comoção em torno de Jake Gyllenhaal não é tão recente quanto parece – desde a ascensão à fama do californiano, com Donnie Darko (2001), passando pelos papeis notáveis em Brokeback Mountain (2005), Soldado Anônimo (2005) e Zodíaco (2007), muitos críticos já apontavam a importância de Gyllenhaal dentro do rol de atores da sua geração (o moço está atualmente com 35 anos). Depois da performance devastadora em O Abutre, no entanto, e do subsequente esquecimento que o Oscar dispensou a sua atuação, a percepção pareceu se solidificar com o público também: já é hora de prestar atenção em tudo que Jake Gyllenhaal faz. Nocaute, o primeiro projeto do ator pós-Abutre, ganhou notoriedade graças ao intenso, e intensamente propagandeado, treinamento físico do ator para o papel do boxeador BIlly Hope, que passa por um inferno particular após uma tragédia que mata sua esposa, Maureen (Rachel McAdams). A forma física de Gyllenhaal é de fato impressionante nos 124 minutos do filme de Antoine Fuqua (Dia de Treinamento), mas ainda mais legal é constatar que a massa de músculos tensos, distendidos e fatigados que o corpo do ator apresenta não serve só ao propósito físico de um filme boxe – pelo contrário, Gyllenhaal faz da linguagem corporal seu maior trunfo, acertando em cheio a forma de andar meio rígida, vagarosa e curvada de alguém para quem a exaustão física e a dor são constantes, e se aproveitando dessa característica para nos comunicar a insegurança e a inadequação do personagem que está interpretando em particular. Case isso com o jeito balbuciante com o qual o ator entrega as falas do roteiro de Kurt Sutter (Sons of Anarchy) e com a recusa categórica de descambar sua atuação para o lado do melodrama, e você tem uma performance perfeita.

O importante a se entender aqui é que Nocaute não quer reinventar a roda. Nas mãos de um diretor apenas moderadamente talentoso como Fuqua, com o material comovente mas by-the-books entregado por Sutter, cuja ressonância emocional não é acompanhada por muita criatividade narrativa, o filme é um eficiente drama de boxe que se diferencia de muitos outros pelo retrato inteligente de um personagem e sua relação com a violência, com a agressividade e com as pessoas ao seu redor que o permitem ser assim sem lidar com as consequências. Se Gyllenhaal é a estrela do filme, seu método particular de focar nas questões mais físicas e fundamentais do personagem é um contraste perfeito para a atuação espetacular de Forest Whitaker, pegando um personagem batido (o treinador humilde com métodos revolucionários) e injetando-o com tanta humanidade, sutileza e astúcia que fica difícil não se envolver com ele. O mesmo vale para a pequena Oona Laurence, e para as ligeiramente mal-utilizadas Naomie Harris e Rachel McAdams – todos esses talentos ajudam a fazer de Nocaute um filme difícil de dispensar, mas nenhum deles consegue elevá-lo para além da previsibilidade.

✰✰✰✰ (4/5)

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O Agente da U.N.C.L.E. (The Man from U.N.C.L.E., EUA/Inglaterra, 2015)
Direção: Guy Ritchie
Roteiro: Guy Ritchie, Lionel Wigram
Elenco: Henry Cavill, Armie Hammer, Alicia Vikander, Elizabeth Debicki, Luca Calvani, Sylvester Groth, Hugh Grant, Jared Harris
116 minutos

2015 foi um ano movimentado para o gênero da espionagem. Ethan Hunt voltou a ativa no elogiadíssimo (ainda que só por ter muito divertido) Missão: Impossível – Nação Secreta; lançado recentemente, Ponte de Espiões, do mestre Steven Spielberg, vem ganhando reviews espetaculares; e lá no comecinho do ano Kingsman, investida britânica de Matthew Vaughn (X-Men: Primeira Classe), também provocou frisson e criou fãs que já querem uma sequência. No meio de tudo isso, Guy Ritchie e seu O Agente da U.N.C.L.E. afundaram na bilheteria – uma pena, porque comparado com o bastante similar (em tom e abordagem) Kingsman, a obra do diretor dos dois Sherlock Holmes estrelados por Robert Downey Jr é bem melhor que a encomenda. Adaptação reverente e bem-humorada de uma série clássica dos anos 60, U.N.C.L.E.conta com tons de comédia muito mais francos que as tiradas cínicas de Kingsman a história de um agente da CIA (Henry Cavill, o Superman) e um da KGB (Armie Hammer, de O Cavaleiro Solitário) que precisam se unir em uma operação conjunta para derrotar italianos fascistas que pretendem espalhar terror atômico, liderados pela femme fatale feita por Elizabeth Debicki, uma presença tão imponente e bem-vinda aqui quanto foi em O Grande Gatsby. Para completar o time, a nova estrela Alicia Vikander (Ex Machina) empresta charme e linguagem corporal leve para a mecânica russa cujo pai está envolvido nas tramoias dos vilões.

Cavill e Hammer são o centro nervoso do filme, mas a verdade é que U.N.C.L.E. não tem um centro nervoso tão pulsante assim. Seus protagonistas, assim como os coadjuvantes, são tipos e representações visuais, veículos para comédia e poderio físico cuja vida interna é temperada largamente pelas performances dos atores – Cavill está especialmente bem encarnando um galã à moda antiga com os trejeitos e as medidas todas certas, mas Hammer e sua raiva contida também tem espaço para brilhar. Ritchie, que antes de ser cooptado por Hollywood fazia filmes de gângster importantes no cinema independente britânico (vide Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes, de 1998), se diverte à beça no roteiro, co-assinado com o parceiro Lionel Wigram, que escreveu Sherlock Holmes. A maioria das gags, especialmente as visuais, funcionam muito bem, e o filme tem um charme e um ritmo diferentes do que nos acostumamos a esperar de Hollywood. O único problema é que o estúdio (ou o próprio Ritchie, consciente demais de suas obrigações de diretor de blockbuster) tenta fazer de U.N.C.L.E. muitas coisas que ele não está exatamente apto para ser, entre elas um filme de ação sério com perseguições elaboradas e sem-humor (destaque – negativo – para a do clímax do filme).

Caso se comprometesse em ser uma sátira esperta e afiada, com um ótimo elenco e a dose certa de cinismo e reverência, U.N.C.L.E. poderia ser genial, e entrar para o rol dos melhores filmes de Ritchie – mas o diretor britânico agora é um títere de Hollywood (embora seja um dos mais talentosos), e Hollywood nunca se permite ser inteligente demais.

✰✰✰✰ (3,5/5)

DOPE_OFFICIAL_POSTER

Um Deslize Perigoso (Dope, EUA, 2015)
Direção e roteiro: Rick Famuyiwa
Elenco: Shameik Moore, Kiersey Clemons, Tony Revolori, Zoë Kravitz, Bruce Beatty, Blake Anderson, Quincy Brown, Roger Guenveur Smith
103 minutos

Rick Famuyiwa faz filmes desde 1999, quando saiu sua obra de estreia, intitulada The Woods, que muitos críticos apontaram como tendo muito em comum com o novo Dope, que foi sensação no Festival de Sundance de 2015 e trouxe o nome do diretor, de 42 anos, à luz dos holofotes. Por quê agora? Garantidamente, Dope é uma história envolvente e um filme com aparentemente interminável criatividade nas mangas, mas a visibilidade do cinema americano feito por negros, com personagens negros e temas comuns às pessoas negras das regiões mais periféricas das cidades do país é latente nos últimos anos. Num movimento parecido com a onda de diretores dos anos 90 que produziu filmes como Faça a Coisa Certa (Spike Lee) e Os Donos da Rua (John Singleton), mas todo particular em sua diversidade e mistura de gêneros típica de uma geração mais nova, cineastas como Ava DuVernay (Selma), Justin Simien (Querida Gente Branca) e Gina Prince-Bythewood (Nos Bastidores da Fama) estão contando histórias que não figuravam, até agora, na paleta de opções mais proeminente do cinema americano. Dope faz parte dessa tendência, e ao mesmo tempo, como cada um dos filmes anteriormente citados, é um animal próprio – uma comédia de ação energética e cheia de brincadeiras conceituais e técnicas, quase todas baseadas na edição genial de Lee Haugen (Dear Sidewalk), com um olho espetacular para cores e um elenco esperto o bastante para entender tanto seus personagens quanto a vibe toda particular do filme de Famuyiwa, que apropria estéticas indies mas nunca se deixa encaixar demais nesse nicho.

Na trama, Malcolm (Shameik Moore), um geek de um bairro de periferia de Los Angeles, lida com problemas ao mesmo tempo similares e totalmente diferentes dos nerds brancos que vemos em tantos filmes de high school por aí. Ele corre por fora do tráfico de drogas que movimenta seu bairro, até uma série de acontecimentos surpreendentes em uma boate (a primeira de muitas dessas “fatalidades” nas quais o filme confia) o colocarem bem no centro do palco de uma briga de traficantes. O filme brinca com a noção de que seu protagonista se considera, de alguma forma, “diferente” dos outros negros com os quais divide o bairro, e o jovem protagonista Moore (Canção do Coração) entende como interpretá-lo com os olhos argutos, a sutileza e o comportamento hesitante e quieto de um adolescente em confronto com muitos pontos de vista e conflitos sociais. O discurso do roteiro de Famuyiwa, acusado por alguns de ser político, prolífico ou óbvio demais, não precisa ser julgado dessa forma – em seu cerne, é uma história criminal tremendamente densa e bem-amarrada, com bom-humor e ironia, e a clareza de afirmar as complexidades sociais que cercam esses personagens e seus caminhos para lugares em que, por conta da cor da pele, são ou não são bem-vistos. Dope é um dos melhores roteiros de 2015, e é realizado com a energia que falta, e muito, a muitos exemplares do cinema independente da atualidade.

✰✰✰✰ (4/5)