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Review: Liga da Justiça

É verdade: o novo filme da DC seria melhor se não tivesse uma Warner (e um Joss Whedon) no caminho.

31 de jan. de 2017

Diário de filmes do mês: Janeiro/2017

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por Caio Coletti

Nem todos os filmes merecem (ou pedem) uma análise complexa como a que fazemos com alguns dos lançamentos mais “quentes” ou filmes que descobrimos e nos surpreendem positivamente. É levando em consideração a função da crítica e da resenha como uma orientação do público em relação ao que vai ser visto em determinado filme que eu resolvi criar essa coluna, que visa falar brevemente dos filmes que não ganharam review completo no site. Vamos lá:

inferno

Inferno (EUA/Hungria, 2016)
Direção: Ron Howard
Roteiro: David Koepp, baseado no livro de Dan Brown
Elenco: Tom Hanks, Felicity Jones, Omar Sy, Irrfan Khan, Sidse Babett Knudsen, Ben Foster
121 minutos

Há um motivo pelo qual, apesar dre formulaicas e dotadas da profundidade de um pires, as novelas de Dan Brown funcionam tão bem: elas são envolventes, abarrotam o leitor de informação e criam a impressão de um suspense que, na realidade, o escritor não move um dedo para criar. É difícil notar que os livros de Dan Brown são ruins, e só por isso eles são entretenimento (no sentido de “distração”, mesmo) de primeira. É difícil traduzir isso para o cinema, e a dupla Ron Howard (direção) e Akiva Goldsman (roteiro) foi apenas parcialmente bem-sucedida na missão – é impossível não notar que as histórias de Brown perdem o peso, e consequentemente o impacto imediato que distrai de sua fórmula manjada, quando transportadas de um livro de 500 páginas para um filme de duas horas. Em Inferno, que chega sete anos depois de Anjos e Demônios, Goldsman passa o bastão no roteiro para David Koepp, que toma mais liberdades com o material original e, surpreendentemente, acaba criando um produto ainda mais inano por causa disso. Inferno não só “drena a gordura” do livro original (e, de novo, Brown sem “gordura” não é nada), como subverte as ideias marginalmente interessante que mantinham o leitor interessado em mais essa jornada de Robert Langdon por uma (ou algumas) capitais europeias tentando impedir um plano maligno.

Dessa vez, trata-se do bilionário Bertrand Zobrist (Ben Foster), que escondeu em algum lugar um vírus geneticamente criado para infectar e matar metade da humanidade, a fim de resolver o problema que Zobrist vê como o grande mal da atualidade: superpopulação. Ao lado da garota-prodígio Sienna Brooks (Felicity Jones), o simbologista passeia por Florença, Veneza e Istambul a fim de impedir o plano de Zobrist – ou será que não é bem assim? Como de costume, a trama nos passa uma “rasteira” previsível perto do final, e o filme desperdiça bons atores em papeis mal-escritos, enquanto Howard briga com um orçamento consideravelmente menor do que o dos outros capítulos da saga, o que impede Inferno de ter o visual polido e a bela fotografia de Anjos e Demônios, por exemplo. Aparentemente, Hollywood é capaz de tirar a alma até do mais culpado dos prazeres.

✰✰ (2/5)

busan

Invasão Zumbi (Busanhaeng, Coreia do Sul, 2016)
Direção e roteiro: Sang-ho Yeon
Elenco: Yoo Gong, Soo-an Kim, Yu-mi Jung, Dong-seok Ma, Sohee, Eui-sung Kim
118 minutos

A história do subgênero de zumbis dentro do cinema de terror é recheada de críticas sociais. Em A Noite dos Mortos-Vivos (1968), de George A. Romero, os zumbis representavam a paranoia da invasão comunista que se espalhava no Ocidente. Em The Walking Dead (2011-), representam a queda das regras de civilidade antigas da sociedade, para o bem ou para o mal. Em ambas as obras, e quase todas as dignas de nota entre elas, os mortos-vivos são apenas catalisadores da mudança humana, e da realização de que frequentemente nos colocamos como nosssos piores inimigos. Invasão Zumbi, filme sul-coreano que virou fenômeno por todo o mundo, aplica essa lógica ao nascimento de uma ideologia individualista que vê o outro como ameaça, e não como semelhante. É um tapa na cara do discurso anti-imigração que vemos crescer com consequências trágicas ao redor do mundo, e não deixa de ser um posicionamento político – o grande vilão do filme não é um zumbi, e sim um oficial do governo, que é movido pelo medo e pelo egoísmo a influenciar uma parte dos sobreviventes a se voltar contra outra; a lição que o protagonista falho precisa aprender é justamente que a união e solidariedade entre seres humanos é fundamental para a sobrevivência; e nossos grandes heróis são um pai de família que usa sua força para ajudar aqueles a sua volta e uma garota pré-adolescente capaz de oferecer seu assento a uma velha senhora mesmo quando está fugindo de zumbis.

Pode ser que o diretor/roteirista Sang-ho Yeon não seja sutil, mas quem disse que sutileza é fundamental para o cinema de gênero? Invasão Zumbi esfrega na nossa cara sua ideologia enquanto desfila competência e criatividade na direção, concepção visual e construção narrativa, já que é essencialmente uma incansável perseguição que nunca esgota suas formas de dificultar a vida dos protagonistas. Com 118 minutos, Invasão Zumbi é tão angustiante como thriller que parece ter muito mais – tal e qual o recente O Homem nas Trevas, é um exercício de masoquismo que recompensa o espectador com um final bem construído e uma experiência cinemática excepcionalmente inventiva. É o melhor filme do subgênero em anos, e vai ser difícil superá-lo.

✰✰✰✰ (4/5)

hell or high water

A Qualquer Custo (Hell or High Water, EUA, 2016)
Direção: David Mackenzie
Roteiro: Taylor Sheridan
Elenco: Ben Foster, Chris Pine, Jeff Bridges, Dale Dickey, Gil Birmingham, Katy Mixon
102 minutos

Eu queria muito ter amado A Qualquer Custo. David Mackenzie, o diretor britânico desse filme distintamente americano, é um dos meus cineastas preferidos em atividade, graças a seu trabalho incrível em Os Sentidos do Amor e Enarcerado. Taylor Sheridan é o roteirista que virou astro com Sicario, um filme que genuinamente me impressionou com sua construção de personagem e clima. Ben Foster, Chris Pine e Jeff Bridges estão entre os atores que eu sempre tenho prazer de ver em cena, especialmente a dupla de intérpretes mais novos, que parece criminalmente subestimada na maioria das vezes. Mesmo com tudo isso a seu favor, A Qualquer Custo ainda ficou devendo algo para mim quando seus créditos subiram, após 102 minutos de um faroeste moderno apropriadamente árido, espetacularmente fotografado e muito bem atuado, mas anêmico. Sheridan, em seu habitual cinismo e pendor para histórias sombrias, se esquece de fazer o mesmo que fez em Sicario, e nos dar uma jornada de personagem na qual o filme investe tempo e peso o bastante para que nos importemos com o que acontece nesse cenário desolador. A Qualquer Custo não é só um filme pessimista – é um filme frio, e o diretor Mackenzie, apesar de competente como de costume, parece visivelmente desconfortável com isso.

A trama acompanha dois irmãos (Foster e Pine), residentes de uma parte dos EUA coberta de poeira, em que o sistema bancário agiu como um câncer e deprivou os moradores e homens de negóciso de cada centavo que tinham no bolso. Nesse cenário, o personagem de Pine precisa de dinheiro para garantir que o banco não tome posse do rancho da família, onde foi encontrado petróleo – por isso, pede ajuda para o irmão recém-saído da cadeia, e os dois partem roubando pequenas quantias de bancos enquanto um policial astuto, às portas da aposentadoria (Bridges), os persegue. A fúria de Foster e a contumaz e cuidadosa construção de personagem de Bridges aprofundam personagens para muito além do roteiro, enquanto A Qualquer Custo caminha resoluto para sua conclusão contundente, mas nada expressiva.

✰✰✰✰ (3,5/5)

ice age

A Era do Gelo: O Big Bang (Ice Age: Collision Course, EUA, 2016)
Direção: Mike Thurmeier, Galen T. Chu
Roteiro: Michael J. Wilson, Michael Berg, Yoni Brenner
Elenco: Deni Leary, John Leguizamo, Ray Romano, Seann William Scott, Josh Peck, Simon Pegg, Queen Latifah, Keke Palmer, Jennifer Lopez, Jessie J, Max Greenfield, Adam Devine, Jesse Tyler Ferguson, Stephanie Beatriz, Nik Offerman, Michael Strahan, Wanda Sykes
94 minutos

A Era do Gelo nunca foi a franquia de maior qualidade no cenário da animação, mas não merecia o final cínico de uma continuação puramente mercadológica como O Big Bang, quinto filme da franquia, que decepcionou (relativamente) nas bilheterias. Isso porque, essencialmente, A Era do Gelo costumava funcionar como cinema graças ao afeto que nutria por seus personagens e pelas relações familiares que eles formavam. A simplicidade dessa premissa no primeiro filme foi esticada de forma perigosa, porém hábil, nos capítulos seguintes, até O Big Bang, que parece jogar qualquer pretensão narrativa para o alto e deixar as ideias mais piradas dos animadores ganharem asas – no pior sentido. É claro que a linha do tempo da saga está cada vez mais bagunçada, mas esse não é nem mesmo o maior problema, especialmente frente à história pouco inspirada do filme, que coloca os heróis como responsáveis por evitar a queda de um asteróide eletromagnético na Terra com a ajuda da doninha Crash, vista no terceiro filme (o dos dinossauros), tudo enquanto Manny e Ellie precisam lidar com Amora prestes a se casar e sair de casa.

As pinceladas temáticas nunca foram tão óbvias quanto aqui, enquanto os personagens antigos parecem cansados e manjados, visto que o roteiro não nos apresenta nada de novo ou interessante sobre eles – enquanto os filmes anteriores nos introduziam a facetas diferentes de Manny, Sid e Diego, ou pelo menos a consequências novas das personalidades que conhecíamos, O Big Bang repete conflitos previsíveis que nunca são entre os protagonistas, mas sim deles com terceiros. Com a animação mais desleixada da série, O Big Bang diverte em determinadas seções de sua história, especialmente ao apresentar alguns novos personagens, mas perde o frescor até nos segmentos estrelados pelo mascote Scrat, que nunca pareceram mais fora do lugar na saga.

✰✰✰ (2,5/5)

gott

A Garota no Trem (The Girl on the Train, EUA, 2016)
Direção: Tate Taylor
Roteiro: Erin Cressida Wilson, baseada na novela de Paula Hawkins
Elenco: Emily Blunt, Haley Bennett, Rebecca Ferguson, Justin Theroux, Luke Evans, Edgar Ramirez, Laura Prepon, Allison Janney, Lisa Kudrow
112 minutos

Eu sabia que Emily Blunt estaria incrível em A Garota no Trem. Para uma atriz da estatura da britânica, agarrar um papel como o de Rachel, uma recém-divorciada alcoólatra que mente para sua colega de quarto sobre ter sido demitida, é uma oportunidade única, e ela não a desperdiçou – mas se Blunt é a espinha dorsal de A Garota no Trem, toda desespero e arrependimento, é surpreendente notar que Haley Bennett e Rebecca Ferguson são o coração do filme. Na pele da jovem Megan, a quem Rachel observa do seu trem todos os dias, até o momento em que ela desaparece sem deixar traços, Bennett arquiva uma complexa e sedutora atuação que conseque o feito de não perder de vista, ao mesmo tempo, a banalidade pura da personagem e sua transcendência. Como Anna, a atual mulher do ex de Rachel, Ferguson é uma revelação, indo muito além do carisma e fisicalidade que demonstrou em Missão: Impossível 5 para superar, na base da sutileza, suas duas exepcionais companheiras de cena. Mesmo soberbamente atuado como é, no entanto, A Garota no Trem não consegue escapar de sua frivolidade como thriller maniqueísta, que pouco ou nada tem da complexidade do filme/livro mais relacionado com sua fama, o Garota Exemplar de Gillian Flynn e David Fincher.

A direção pesada de Tate Taylor não ajuda. O cineasta, responsável por Histórias Cruzadas, tem o hábito de reunir grandes elencos e deixá-los brilhar como nunca antes, mas também a mania de enterrá-los por baixo de uma direção burocrática. O roteiro fragmentado de Erin Cressida Wilson (Secretária) procura arredondar as pontas afiadas da novela original, mas encontra poucos caminhos para aprofundar a trama ou as personagens para além do que as atrizes são capazes de fazer. Filmado e musicado de forma eficiente, A Garota no Trem é como aquele produto tecnicamente perfeito que poderia ser transformador, caso se permitisse. Não é o que acontece, não importa o quanto o trio principal tente.

✰✰✰✰ (3,5/5)

peregrine

O Lar das Crianças Peculiares (Miss Peregrine’s Home for Peculiar Children, Inglaterra/Bélgica/EUA, 2016)
Direção: Tim Burton
Roteiro: Jane Goldman, baseada na novela de Ransom Riggs
Elenco: Eva Green, Asa Butterfield, Samuel L. Jackson, Judi Dench, Rupert Everett, Allison Janney, Chris O’Dowd, Terrence Stamp, Ella Purnell
127 minutos

Muito já foi dito sobre o motivo pelo qual os filmes de Tim Burton já não são mais os mesmos. Há uma parte do público que acha simplesmente que a “nova fase” do cineasta não é compreendida pelo gosto cinematográfico atual, e outra parte que acusa o diretor de cinismo corporativo por emprestar seu estilo visual para super-produções que não representam sua verdadeira voz cinematográfica. Eu gosto de pensar que Burton simplesmente não tem mais histórias para contar – aos 59 anos, 30 deles na ativa no cenário cinematográfico, o americano de Brubank, Califórnia esgotou seus impulsos criativos em filmes como Edward Mãos-de-Tesoura, Ed Wood, A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça, Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas e Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet. Quantos diretores você conhece que tem mais de uma mão cheia de grandes filmes em seu nome? Em retrospecto, é a partir desses filmes que vamos nos lembrar de Burton como artista, e suas investidas mais recentes, este O Lar das Crianças Peculiares incluído, são o resultado da apropriação de seu estilo por Hollywood – Burton não se improta em fazê-los porque eles lhe dão uma desculpa para continuar fazendo o que ama, e ele não pretende conjurar inspiração onde ela não existe.

Dito isso, O Lar das Crianças Peculiares tem uma trama adorável emprestada (e bastante modificada) do livro original de Ransom Riggs, uma protagonista excentricamente memorável na pele de Eva Green, e um senso de diversão kitsch que passa mais perto de Beetlejuice do que de Alice no País das Maravilhas. O resultado é um agradável conto infanto-juvenil, que adere a vários clichês do gênero, mas não incomoda por isso. A história acompanha um garoto (Asa Butterfield), que perde o avô (Terrence Stamp) e descobre que os contos fantásticos sobre crianças super-poderosas contados por ele eram verdade, sendo recrutado para lutar contra um nefasto vilão (Samuel L. Jackson) que ameaça a sobrevivência de todo esse “mundo paralelo”. Para quem ainda espera o retorno do Burton de verdade, esse não é o seu filme; para quem ainda não superou a onda de adaptações infanto-juvenis, talvez seja.

✰✰✰ (3/5)

hidden

Estrelas Além do Tempo (Hidden Figures, EUA, 2016)
Direção: Theodore Melfi
Roteiro: Allison Schroeder, Theodore Melfi, baseados no livro de Margot Lee Shetterly
Elenco: Taraji P. Henson, Octavia Spencer, Janelle Monae, Kevin Costner, Kirsten Dunst, Jim Parsons, Mahershala Ali, Aldis Hodge, Glen Powell
127 minutos

Estrelas Além do Tempo era uma história que precisava ser contada. A trama baseada em história real envolve três mulheres negras que trabalharam com a NASA durante a época da corrida espacial contra os russos, ajudando nas primeiras missões para além da orbita da Terra. Nessa época ainda segregada dos EUA, as mulheres negras empregadas na NASA só podiam ser “computadores” – ou seja, faziam a matemática bruta enquanto os homens (brancos) levavam o crédito pelas teorias e realizações. Katherine Johnson, Dorothy Vaughan e Mary Jackson quebraram esse tabu, cada uma de sua própria maneira, e o filme de Theodore Melfi tem o mérito de trazer essa história à luz, e de escalar as pessoas certas para interpretá-la. Para além de sua importância como documento histórico, no entanto, Estrelas Além do Tempo poucas vezes ultrapassa o patamar de “um filme correto”, e dificilmente fez por merecer seu lugar entre os indicados a Melhor Filme desse ano. Na direção, Melfi adiciona tanta leveza e ritmo ao filme que a densidade da história e do roteiro ficam quase perdidos, não fosse a atuação centrada das três protagonistas.

Ao contrário do que faz em Empire, Taraji P. Henson sabe que, como Katherine Johnson, precisa controlar seus impulsos iconoclastas e entregar uma atuação discretamente emocional, e brutalmente eficiente. É o que ela faz, especialmente na única cena de catarse de sua personagem, e no charmoso desenvolvimento de seu romance com o Coronel Johnson (Mahershala Ali). Octavia Spencer empresta a mesma honestidade e comunicatividade à Dorothy Vaughan que marcou suas melhores personagente – é impressionante ver o quanto a atriz dialoga fácil com as expectativas do espectador. Por fim, Janelle Monae é uma revelação como Mary Jackson, muito mais do que em seu papel em Moonlight, imbuindo a personagem com uma força de caráter e uma versatilidade emocional que o outro filme não lhe permitiu mostrar. Dois trios tão excepcionais de mulheres, um na frente das câmeras e outro por trás da história verdadeira, mereciam um filme que ousasse, criasse e brilhasse mais.

✰✰✰✰ (3,5/5)

moana

Moana: Um Mar de Aventuras (Moana, EUA, 2016)
Direção: Ron Clements, John Musker
Roteiro: Jared Bush
Elenco: Auli’i Cravalho, Dwayne Johnson, Rachel House, Temuera Morrison, Jermaine Clement, Nicole Scherzinger, Alan Tudyk
107 minutos

O ambiente criativo dentro da Walt Disney Studios, hoje em dia, é claramente o melhor que existe dentro de Hollywood. Caso contrário, os filmes da Pixar, Marvel e da própria Disney Animation não tomariam os riscos calculados que tem resultado em sucessos de bilheteria sem precedentes. Ao dizer isso, não quero dizer que não exista uma cultura corporativa dentro da Disney, mas que ela funciona em harmonia com o lado criativo e entende que diretores, roteiristas e animadores precisam ter uma voz, porque o público raramente compra um produto sem alma. Moana, a nova aventura de princesa da Disney, demonstra isso com excelência – sua correção étnica e política quase impecável, além de seu hábil desvencilhar dos clichês estabelecidos décadas atrás pelo subgênero de princesas dentro da Disney, mostram que uma equipe criativa inteligente e conectada com a sensibilidade moderna está por trás do filme. Ao mesmo tempo, essas concessões ao público são minuciosamente calculadas, a fim de evitar que o filme perca um público mais conservador (por isso que a Disney ainda não teve um personagem LGBT, por exemplo), ou os fãs mais radicais que ainda se prendem às tradições da franquia. Em Moana, esse equilíbrio essencialmente cínico é apaziguado por pelo menos um excelente trabalho artístico: o de Lin-Manuel Miranda na composição das canções originais.

De “How Far I’ll Go” a “We Know the Way”, as músicas de Moana são as melhores da Disney em muito tempo. A mistura hábil de música pop e Broadway que Miranda, com seu mega-sucesso Hamilton, representa, cai muito bem à história, que acompanha a filha do chefe de uma aldeia que redescobre o passado velejante de seu povo e assume a missão de se juntar ao semideus Maui (Dwayne Johnson) para restaurar a segurança de seu modo de vida. A cultura das ilhas do pacífico é explorada pelo roteiro, mas realmente vendida pelos visuais espetaculares do filme, especialmente em sua passagem final – enquanto isso, a música de Miranda e a carismática performane de Dwayne Johnson carregam o filme para um confortável território cosmopolita. Belamente realizado e equilibrado, Moana é mais um acerto (ainda que moderado) da Disney.

✰✰✰✰ (4/5)

28 de jan. de 2017

10+ filmes que Sundance 2017 viu (e você também deveria)

sundance

por Caio Coletti

O Festival de Sundance acontece desde 1978, em uma cidadezinha de Utah, no coração dos EUA – já é o maior festival de cinema independente americano, e a cada ano que passa a sua seleção de filmes de outros países e documentários ganha mais destaque. Acompanhar a seleção de Sundance é invariavelmente encontrar algumas pérolas indies sobre as quais falaremos o ano todo, e é a oportunidade de conhecer, também, talentos emergentes que podem estar borbulhando por baixo do radar de Hollywood. Em tempos de Oscar, é bom lembrar que existe (muito) mais cinema por aí do que o que a Academia escolhe reconhecer.

manifesto

Manifesto (Julian Rosefeldt, Austrália/Alemanha)

Julian Rosefeldt primeiro idealizou e realizou Manifesto como parte de uma instalação artística que constituía em uma sala cheia de telas de TV, cada uma delas passando um curta-metragem diferente estrelado pela atriz Cate Blanchett. Nos curtas, ela encarnava personagens dos mais diversos, de um trabalhador desleixado de fábrica a uma rebelde rock n’ roll e uma engomadinha âncora de jornal. O texto era tirado direto de manifestos artísticos e sociais dos mais diversos, desde aquele fatídico de Karl Marx até os de movimentos menos conhecidos da história da arte.

O Manifesto que estreou no Festival de Sundance é uma condensação dessa experiência em 2h10min de filme, uma experiência cinematográfica e intelectual que merece o termo surrado tour de force, e confirma Blanchett como talvez a maior intérprete da nossa era.

Confira o trailer

roxanne

Roxanne Roxanne (Michael Larnell, EUA)

Durante os anos 80, você não sabia nada de hip hop se não conhecesse Roxanne Shanté. Emprestando o nome de um sucesso do trio U.T.F.O., ela se tornou a MC mais respeitada e temida de sua época aos 14 anos, gerando uma série de gravações de hop hop ao redor do mundo, réplicas e tréplicas para suas canções provocativas e intensas. O filme Roxanne Roxanne finalmente traz essa história para o cinema, com a estreante Chanté Adams entregando uma performance explosiva no papel principal. O trabalho do roteirista/diretor Michael Larnell promete impulsioná-lo ao estrelato após o filme de estreia, Cronies, fazer pouco barulho.

Mahershala Ali, indicado ao Oscar pelo papel em Moonlight, tem papel coadjuvante no filme, assim como Nia Long, mais conhecida pelo papel em Vovó… Zona.

"Roxanne's Revenge"

band aid

Band Aid (Zoe Lister-Jones, EUA)

A atriz Zoe Lister-Jones, mais conhecida pelo papel na série Life in Pieces, estreia na direção com esse curioso romance musical em que um casal briguento tem uma ideia genial: transformar suas discussões em música. Com a ajuda de um amigo baterista, os dois formam uma banda e descobrem que a química que pouco tem na vida diária sobra nos palcos e estúdios. Carregado de deliciosas canções originais, Band Aid promete ser o Sing Street de 2017.

Além de Jones, o elenco conta com Adam Pally (Happy Endings), Fred Armisen (Portlandia), Jamie Chung (Gotham), Brooklyn Decker (Grace and Frankie) e Colin Hanks (Fargo).

Veja entrevista com a diretora

crown heights

Crown Heights (Matt Ruskin, EUA)

Baseado em uma história real, o drama Crown Heights promete ser a grande história com carga racial de Sundance 2017. Em 1980, Colin Warner foi condenado por um assassinato por arma de fogo que ele não cometeu – por anos, seu único defensor foi o melhor amigo, Carl King, que perseguiu todo tipo de pistas e recursos judiciais para tentar inocentá-lo. A poderosa história é tratada pelo roteirista e diretor Matt Ruskin, até então conhecido como produtor de Conexão Escobar e outros thrillers.

Lakeith Stanfield (Straight Outta Compton) encarna Colin Warner, com Nnamdi Asomugha (Hello My Name is Doris) no papel de King. Nestor Carbonell (Bates Motel), Bill Camp (The Night Of), Zach Grenier (The Good Wife) e Brian Tyree Henry, revelação da série Atlanta, estão no elenco.

Confira entrevista com o diretor

patti cake$

Patti Cake$ (Geremy Jasper, EUA)

Um conto da improvável amizade entre uma rapper branca de New Jersey que usa o pseudônimo Killa P e um metaleiro de nome igualmente bizarro, Basterd, Patti Cake$ não deveria funcionar. No entanto, o filme de estreia do diretor de clipes Geremy Jasper (Florence + The Machine, Selena Gomez) tem recebido críticas positivas e já é um dos produtos mais aguardados a sair de Sundance nesse ano. A história de Killa P ainda passa por sua avó doente, seu trabalho temporário como garçonete e sua vontade de deixar New Jersey para trás ao lado do melhor amigo, Jheri.

Danielle Macdonald, até então conhecida por um papel minúsculo em American Horror Story, entrega uma performance-revelação na pele de Patti, enquanto Bridget Everett (Inside Amy Schumer) cuida da comédia e do drama como a mãe sempre alcoolizada da protagonista. Mamoudou Athie, o Grandmaster Flash de The Get Down, completa o elenco.

Confira entrevista com o diretor

axolotl

Axolotl Overkill (Helene Hegemann, Alemanha)

Helene Hegemann dirige e escreve a adaptação de sua própria obra, traduzida no Brasil como Axolotle Atropelado, um conto surrealista de excesso e narcisismo. Lançado quanto Hegemann tinha apenas 18 anos, o livro causos controvérsia por ter partes “recortadas” de outras obras, ao que a autora admitiu mais tarde – versões subsequentes vem com créditos das passagens usadas por Hegemann. Na trama, acompanhamos a jovem Mifti, que tenta escapar da memória de uma ex-amante mais velha se entregando a um submundo de drogas e sexo.

Uma das jovens atrizes mais cotadas de sua geração na Alemanha, Jasna Fritzi Bauer se entrega ao papel de Mifti como a concepção de Hegemann exige. Arly Jover, conhecida pelos papeis em Hollywood (Blade, Millennium) encarna Alice, a onipresente ex-namorada da protagonista.

Veja mais imagens

hero

The Hero (Brett Haley, EUA)

Dos grandes atores de sua geração, Sam Elliott é talvez o único que ainda não teve um papel à altura na velhice, que o trouxe de volta para a percepção do público. Isso deve mudar com The Hero, que o coloca na pele de um astro de faroestes antigos em decadência tentando consertar a relação com a filha ao mesmo tempo em que busca um último papel para cimentar seu legado. O diretor Brett Haley já deu um papel de primeira para outra atriz mais velha sumida, Blythe Danner, no romance Reaprendendo a Amar (2015).

Laura Prepon, a Alex de Orange is the New Black, está no elenco ao lado de Krysten Ritter (Jessica Jones), Nick Offerman (Parks and Recreation) e Todd Giebenhain (Raising Hope).

Veja entrevista com o diretor

ingrid

Ingrid Goes West (Matt Spicer, EUA)

Uma comédia sobre obsessões virtuais, Ingrid Goes West retrata a saga da personagem título, interpretada por Aubrey Plaza (Parks and Recreation) para se tornar a melhor amiga da estrela das redes sociais Taylor Sloane, vivida por Elizabeth Olsen, a Feiticeira Escarlate dos filmes da Marvel. Absolutamente obcecada, Ingrid se muda para perto de Taylor e se aproxima dela com uma “identidade falsa” – tudo corre bem até que o irmão mais novo de Taylor, Nicky (Billy Magnussen, de Caminhos da Floresta), começa a descobrir a farsa.

Matt Spicer estreia na direção com Ingrid Goes West, que tem O’Shea Jackson (Straight Outta Compton), Pom Klementieff (Oldboy) e Wyatt Russell (Anjos da Lei 2) no elenco.

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lowery

A Ghost Story (David Lowery, EUA)

Para respirar após fazer um semi-blockbuster (Meu Amigo o Dragão), o diretor e roteirista independente David Lowery filmou, praticamente em segredo, o excêntrico mistério dramático A Ghost Story, em que um homem contempla a passagem do tempo e o luto daqueles que deixou para trás após morrer repentinamente. Com um visual único e uma narrativa dispersa, Lowery usa clichês batidos (o fantasma do seu filme de fato está coberto com um lençol branco, como uma fantasia de Halloween) e os renova com a sua abordagem única.

Casey Affleck e Rooney Mara, que estrelaram Amor Fora da Lei, filme anterior do diretor, se reúnem nessa nova experiência comandada por Lowery. Brea Grant (Dextrer) também está no elenco.

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landline

Landline (Gillian Robespierre, EUA)

Após sua excepcional estreia na direção em Obvious Child, Gillian Robespierre retorna com uma dramédia sobre três mulheres de família na última era pré-celulares, os anos 90. A irmã mais jovem Ali descobre que o pai está tendo um caso, e conta para a mãe, Pat, que entra em depressão por não ter a família perfeita que pensou ter. Enquanto isso, a engomadinha irmã mais velha Dana descobre que tem um lado selvagem.

Jenny Slate, que estreou o filme anterior de Robespierre, retorna como Dana. Edie Falco (Nurse Jackie) é Pat, e Abby Quin (The Sisterhood of Night) interpreta Ali. Ao redor desse forte trio protagonista, gente como John Turturro, Finn Wittrock, Jay Duplass e Ali Ahn.

Menções honrosas:

- The Yellow Birds (Alexandre Moors, EUA) – Bartle (Alden Ehrenreich) e Murph (Tye Sheridan) enfrentam os horrores da Guerra do Iraque enquanto Bartle é atormentado por uma promessa que fez à mãe de Murph (Jennifer Aniston). Roteiro de David Lowery (Amor Fora da Lei).

- The Big Sick (Michael Showalter, EUA) – Kumail Nanjiani (Silicon Valley) reconta a história das diferenças culturais de seu relacionamento de longa data com uma garota americana. Zoe Kazan, Holly Hunter e Ray Romano estão no elenco. Do diretor de Hello My Name is Doris.

- Mudbound (Dee Rees, EUA) – Dois soldados retornam da 2ª Guerra e tem de lidar com racismo e os ajustes à vida civil. Carey Mulligan, Garrett Hedlund, Jonathan Banks, Jason Clarke e Mary J. Blige no elenco. Segundo filme de Dee Rees, após o elogiadíssimo Pariah.

- The Polka King (Maya Forbes & Wallace Wolodarsky, EUA) – Astro do ritmo polka monta um esquema duvidoso para ganhar dinheiro que acaba o fazendo ser preso. Jack Black, Jenny Slate, Jason Schwartzmann, Jacki Weaver e  J.B. Smoove no elenco,

- XX (Várias diretoras, Canadá/EUA) – Antologia de terror toda dirigida, escrita e estrelada por mulheres. Novo curta de Karyn Kusama (O Convite) entre os segmentos. Melanie Lynskey, Kyle Allen e Christina Kirk no elenco. A cantora St. Vincent dirige um dos curtas.

- Não Devore Meu Coração (Felipe Bragança, Brasil) – Cauã Reymond estrela história de amor entre jovem brasileiro e índia paraguaia, em um thriller tenso passado na fronteira. Felipe Bragança escreveu Praia do Futuro e Heleno.

- Pop Aye (Kirsten Tan, Tailândia/Singapura) – Um arquiteto desencantado com a vida reencontra, por acaso, seu bichinho de estimação da infância: um elefante que agora é maltratado pelo circo. Ele sequestra o “amigo” e pretende devolvê-lo para seu hábitat.

- Where is Kyra? (Andrew Dosunmu, EUA) – Michelle Pfeiffer retorna às telas como uma mulher que perde o emprego e tenta viver com a pensão da mãe doente. Kiefer Sutherland está no elenco do filme do diretor de Mother of George.

- Thoroughbred (Cory Finley, EUA) – Anya Taylor-Joy e Olivia Cooke são duas amigas de infância que se reúnem para tramar o assassinato do padrasto de uma delas. Anton Yelchin e Paul Sparks estão no elenco.

- Bitch (Marianna Palka, EUA) – Esmagada pelas pressões da vida doméstica e profissional, mulher surta e assume a identidade de uma cachorra raivosa (literalmente). Jason Ritter (Parenthood) está no elenco.

24 de jan. de 2017

Review: Moonlight é uma obra-prima discreta, mas absolutamente fundamental

moonlight

por Caio Coletti

Em um contexto contemporâneo em que temos acesso à produção cinematográfica do mundo todo (seja pela Netflix ou por meios mais “escusos”), a verdade é que o Oscar parece cada dia mais obsoleto. É uma premiação que se pretende cosmopolita e moderna, mas segue sendo reflexo limitado, tanto por sua culpa quanto por culpa da era em que vivemos, da excelência artística que observamos todos os anos. Talvez por isso, em edições mais recentes, tenha sido tão mais fácil observar como o Oscar deixa escapar tantos filmes, e mesmo entre os que detecta em seu radar, acaba quase nunca premiando aqueles que o futuro vai ver como definidores da nossa época. Moonlight seria uma pequena surpresa se levasse Melhor Filme no dia 24 de fevereiro sobre o favorito La La Land, mas não deveria ser – isso porque, de qualquer ângulo possível, Moonlight é a grande obra-prima americana de 2016.

As marcas de uma obra-prima não são difíceis de se identificar, na verdade. Para quem mantém os ouvidos colados na evolução do zeitgeist cinematográfico, é fácil capturar um filme que converse ao mesmo tempo com as angústias sociais do seu país de origem (e, em um mundo globalizado, do inconsciente coletivo global) e com o estado da evolução cinematográfica como arte e expressão naquele momento. É impossível assistir Moonlight, por mais que ele seja uma obra própria e particularíssima, sem se lembrar de Boyhood, que escancarou uma discussão cinematográfica do tempo dentro da narrativa, e propôs formas novas de estruturar uma história buscando um paralelo com as fases da vida de seu protagonista. Moonlight não usa a mesma técnica de Boyhood, mas dialoga com o filme de Linklater em sua consideração sobre tempo e formação de identidade.

Ao mesmo tempo, o filme de Richard Jenkins, que escreveu o roteiro baseado em uma peça nunca produzida de Tarell Alvin McCraney, é muito urgente para o momento que os EUA, e também o resto do mundo, vivem. Um momento em que a discussão racial, seja na vertente da representatividade cinematográfica ou na vertente de problemas sociais relacionados à marginalização dos negros, é provavelmente a mais importante da nossa sociedade. Um momento em que histórias sobre esses indivíduos, e especialmente histórias realistas e corajosas sobre esses indivíduos, são mais do que necessárias. Moonlight é urgente porque cutuca feridas da comunidade negra americana com delicadeza e particular discrição, provocando reflexão sobre aspectos complicados da vivência e sobrevivência de uma parcela da população cruelmente marginalizada.

A história acompanha Chiron, que é interpretado por três atores em três fases da vida, que servem de “atos” do filme, traindo sua origem teatral. Quando criança, ele é conhecido como “Little”, e encontra em um traficante de drogas (Mahershala Ali) uma figura paterna quando a mãe, Paula (Naomie Harris), se torna cada vez mais distante pelo vício. Na adolescência, Chiron é apenas Chiron, e lida com provocações na escola graças a sua personalidade quieta e reservada, traída como um sinal de sua homossexualidade pelos colegas. Na vida adulta, sob o apelido de Black, após um acontecimento fatídico, reencontra sua primeira paixão, Kevin (André Holland) – e quanto menos falarmos das circunstâncias que cercam Chiron nessas três fases, mais plena será a experiência do espectador com Moonlight.

O filme de Barry Jenkins é um discreto triunfo técnico, com uma fotografia que abusa de cores e sombras. A impressão é que o diretor de fotografia James Laxton (Marcados Pela Guerra) trata cada um dos sujeitos em frente à câmera como suas musas particulares, tamanho é o fascínio que deixa transparecer. Laxton é o grande responsável por Moonlight parecer um épico de Shakespeare, com todas as emoções e complexidades que isso implica, mesmo sob a mise-en-scene modesta e inteligente de Jenkins. Na trilha, Nicholas Britell (A Grande Aposta) busca não quebrar o tom do filme com cordas ultra-dramáticas, mas encontra uma expressão serena que é muito característica do protagonista da história, que parece esconder profundidades em gestos singelos.

Alex R. Hibbert, Ashton Sanders e Trevante Rhodes encarnam Chiron durante o filme, e é impressionante a linha clara que suas interpretações desenham, sem parecerem três personagens distintos. Sanders, especialmente, faz um trabalho emocionalmente intenso na pele do Chiron adolescente, tanto que os coadjuvantes do filme escolhem outros “atos” para brilharem. Naomie Harris, na pele da mãe do protagonista, tem sua grande cena no terceiro ato, externando uma frustração e complexidade que deixou habilidosamente escondida nos momentos de fúria anteriores do filme; e Mahershala Ali deixa sua marca no primeiro ato, o único em que aparece, caminhando na moralidade complicada de um traficante que também age como protetor do filho de uma viciada em drogas. Poucas figuras paternas foram mais decididamente ambíguas (e afetivas) nos últimos anos – não por acaso, o exemplo que me vem à mente é Mason Sr. (Ethan Hawke) em Boyhood.

Ao discutir sexualidade em um contexto negro, Moonlight aborda uma construção de identidade que é ao mesmo tempo única e familiar. A masculinidade que aprisiona Chiron, e a forma como ele lida com seus desejos afetivos através da vida, é reconhecível para qualquer espectador homossexual que veja o filme de Barry Jenkins, mas é ao mesmo tempo minuciosa e específica à experiência negra. Nesse equilíbrio distintamente cinematográfico entre o pessoal e o universal, Moonlight começa e termina em notas tocantes, que evocam esperança sem recorrer a um idealismo bobo. Em pleno 2017, dizer que cinismo e otimismo podem caminhar juntos é uma mensagem poderosa, pela qual Moonlight vai ser lembrado por muitos e muitos anos, com ou sem a aprovação do Oscar.

✰✰✰✰✰ (5/5)

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Moonlight: Sob a Luz do Luar (Moonlight, EUA, 2016)
Direção: Barry Jenkins
Roteiro: Barry Jenkins, Tarell Alvin McCraney
Elenco: Alex R. Hibbert, Ashton Sanders, Trevante Rhodes, Naomie Harris, Janelle Monáe, André Holland, Mahershala Ali
111 minutos

18 de jan. de 2017

Review: Artificial e genuíno, La La Land encarna a própria contradição do cinema

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por Caio Coletti

Em certo momento de La La Land, o pianista Sebastian (Ryan Gosling) tenta convencer a aspirante a atriz Mia (Emma Stone) de que não gostar de jazz é simplesmente um refrão usado por pessoas que não se interessam por entender a história do jazz. Conforme ele aponta as muitas canções e ideias diferentes sendo escritas no improviso pelos músicos no palco, Sebastian finaliza: “Isso é conflito, é compromisso, e é muito, muito excitante!”. Pode parecer (e pode até ser, sinceramente) um pouco presunçoso tentar entender os gostos e desgostos alheios, mas a forma como La La Land expõe a rejeição geral por esse ritmo e linguagem de outras eras não deixa de ser um comentário metaficcional sobre outro gênero, esse cinematográfico, muito odiado gratuitamente: o musical.

Em seu coração, La La Land é um filme-tratado muito mais do que um filme-história. É uma celebração pura de tudo o que uma nova geração de cinéfilos não suporta nos musicais, e uma tentativa de trazê-lo para a modernidade sem perder a pureza de sua linguagem. “Como você vai ser revolucionário se é tão tradicionalista?”, pergunta o personagem de John Legend em certo momento, tecendo mais uma camada desse meta-comentário essencial para o roteiro de Damien Chazelle. É aparente que Chazelle ama todas as particularidades do gênero, e seu esforço para nos apresentar e guiar pelo prazer da artificialidade do musical, pelo encantamento de seu ritmo, cor e energia cinemática única, é admirável. Tanto na direção quanto no roteiro, ele faz um trabalho estupendo.

A chave aqui é como Chazelle usa uma estrutura simples, uma história de amor e idealismo, a torna contemporânea e encantadora, e coloca nas entrelinhas uma reflexão mais profunda sobre o meio de arte que está exercendo. La La Land é sobre “os tolos que sonham”, sim, como Emma Stone canta naquele que é provavelmente o número musical pelo qual o filme será lembrado no futuro – “Audition (The Fools Who Dream)” tem o potencial para entrar no panteão de grandes baladas de musicais com “On My Own” (Os Miseráveis) e “Defying Gravity” (Wicked), por exemplo). É sobre comunicar uma paixão, seja ela artística, pessoal ou uma mistura das duas coisas. É sobre como esses conceitos se entrelaçam no cinema musical e na linguagem própria que ele carrega.

Com extensas cenas de dança filmadas virtualmente sem cortes, do primeiro número (“Another Day of Sun”) até a deliciosa brincadeira romântica entre os dois protagonistas em um pico de Los Angeles, La La Land subverte as expectativas de um público de musical que esqueceu das origens do gênero. De Fred Astaire a Gene Kelly, a história do musical cinematográfico não é uma de 20 canções por filme, engendradas perfeitamente nos momentos emocionais da história. Em seu cerne, o gênero é um que recompensa a paciência e a apreciação do espectador com esses momentos, que aparecem aos poucos, espalhados por um filme cuja arte está nos detalhes da fotografia, edição e atuações.

Dos assovios e cordas leves da trilha incidental de Justin Hurwitz, que complementa as canções originais da dupla Benj Pasek e Justin Paul, até as cores vivas, neons e simetrias da fotografia de Linus Sandgren, passando pelo trabalho espirituoso de Mary Zophres no figurino, tudo em La La Land remonta a essa era dos musicais antigos. Chazelle adiciona uma crítica à modernidade cínica, que parece contaminar colegas diretores de sua geração, no roteiro, e o resultado da mistura é uma obra-homenagem que encontra uma forma engenhosa de não se tornar analógica.

Talvez a performance de Emma Stone seja mesmo o elemento em que a magia do filme fique mais óbvia. Apesar do esforço de Ryan Gosling, é óbvio que ela é a estrela de La La Land, e não é só em sua qualidade e carisma que ela se destaca, mas sim na mistura delicada de passos de dança bem coreografados e uma espontaneidade impossível de fabricar. Por toda a sua excelência técnica, Stone e o filme que ela protagoniza triunfam mesmo graças a forma como conseguem encontrar em si mesmos a contradição que sempre foi fundamental ao cinema, uma forma de arte tão irremediavelmente artificial, e tão absurdamente tocante e fundamental mesmo assim. La La Land acredita na alma que encontramos dentro da teatralidade, do plástico, do digital – e se você não acredita também, bom, o que está fazendo aqui?

✰✰✰✰✰ (5/5)

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La La Land: Cantando Estações (La La Land, EUA, 2016)
Direção e roteiro: Damien Chazelle
Elenco: Ryan Gosling, Emma Stone, Callie Hernandez, Rosemarie DeWitt, J.K. Simmons, Jason Fuchs, Finn Wittrock, John Legend
128 minutos

17 de jan. de 2017

As 15 melhores atuações femininas na TV em 2016

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por Caio Coletti

A TV é delas. Enquanto a mídia televisiva se expande (nunca se produziu tantas séries, em tanta multiplicidade de plataformas e canais, quanto hoje), fica claro que a sensibilidade e as histórias femininas são mais bem recebidas nesse ambiente do que no cinema. Em termos de diversidade, a TV dá show em Hollywood, e é por essa incrível variedade de estilos, cores, tamanhos e idades que as damas da TV brilham mais forte do que nunca. Aqui vão as 15 melhores atuações femininas na TV em 2016, de acordo com este humilde seriador.

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15. Taraji P. Henson em Empire (Fox)

O final da segunda temporada de Empire, que foi exibida no comecinho de 2016, foi uma bagunça. A história saiu dos trilhos e os roteiristas nunca conseguiram colocá-la de volta, mas a vantagem de um novelão desavergonhado como o da Fox é que nunca é tarde demais para uma correção de curso, e o terceiro ano fez exatamente isso. Nos 9 episódios exibidos até agora, Empire voltou a abrir espaço para Taraji P. Henson brilhar como Cookie, para muito além de sua caracterização glamourosa – enquanto a série explora o passado da personagem, Henson a aprofunda e empresta propósito à atitude feroz com a qual imbuiu a matriarca dos Lyon. Ela é a personificação do “cada vez melhor”.

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14. Sarah Jessica Parker em Divorce (HBO)

Para alguém que passou uma boa parte de sua carreira interpretando a cosmopolitana obsessiva Carrie Bradshaw em Sex and the City, Sarah Jessica Parker raramente se importa com o exterior de suas personagens. Em Divorce, ela compõe sua Frances de dentro para fora, achando formas sutis de externar suas neurosas, seja para efeitos de humor ou drama – com a ajuda de um ótimo Thomas Haden Church, ela cria uma dualidade perfeita para espelhar com honestidade o processo de separação contemporâneo. É fácil se relacionar com ela, mas Parker sabe que interpreta um ser humano cheio de falhas, e não se esconde delas.

Grace and Frankie

13. Lily Tomlin em Grace and Frankie (Netflix)

Não é fácil se manter como uma das intérpretes mais vitais em atividade aos 77 anos, mas Lily Tomlin conseguiu. A veterana comediante ganhou material à sua altura na segunda temporada de Grace and Frankie, uma melhoria em todos os sentidos em relação à primeira, lançada em 2015. A comédia da Netflix encontra profundidades e honestidades inesperadas na história dessa recém-divorciada hippie que desenvolve uma amizade tocante com a mais improvável das “companheiras de quarto”. Jane Fonda está incrível na série, mas Tomlin é o coração da trama, e a temporada tece realizações e decepções amorosas e profissionais que dão oportunidades a ela poucas vezes dadas a atrizes de sua idade.

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12. Fiona Dourif em Dirk Gently’s Holistic Detective Agency (BBC America/Netflix)

Fiona Dourif é filha de Brad Dourif, mais conhecido por seu papel de longa data como a voz do boneco Chucky na saga Brinquedo Assassino. Como atriz, Fiona demonstra energia maníaca e senso kitsch parecido, mas habilidades infinitamente superiores, ao pai – seu papel em Dirk Gently’s Detective Agency, incrível adaptação da BBC America/Netflix para a série de livros de Douglas Adams, é talvez a melhor demonstração disso que tivemos até agora. Na pele da “assassina holística” Bart Curlish, Dourif sobra em linguagem corporal, expressividade e carisma, afeiçoando o espectador com essa personagem que é muito mais vítima do que algoz.

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11. Chrissy Metz em This is Us (NBC)

Isso é o que chamamos de revelação. Embora esteja a anos tentando emplacar sucesso, a atriz Chrissy Metz encontrou o papel de sua vida na série This is Us, hit-surpresa da NBC que conquistou o público ao falar francamente de questões familiares e preconceito (de todos os tipos). Graças à sensibilidade, humor e sutileza de Metz, Kate ainda é a nossa Pearson preferida, uma doce e complicada garota que merece o amor que recebe e enfrenta os obstáculos no caminho com classe e vulnerabilidade. É uma atuação corajosa, claramente pessoal, e muito inteligente, que fez merecer seu lugar na lista – e, idealmente, nas indicações ao Emmy 2017.

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10. Alison Wright em The Americans (FX)

The Americans não tratou bem Martha, personagem de Alison Wright na série desde a primeira temporada. Secretária do FBI, ela foi usada (e até se casou) com o agente soviético Philip, protagonista da série, e no quarto ano a “operação” foi por água abaixo. Com o passar dos sete episódios em que aparece, Martha vê a vida virar de cabeça para baixo, e enquanto os roteiristas exploram as entranhas dessa mulher solitária e generosa, observamos Wright aflorar em uma performance que estava esperando anos para acontecer. Ela é brutalmente eficiente, como The Americans sempre exige de seus intérpretes.

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9. Robin Wright em House of Cards (Netflix)

No quarto ano de House of Cards, Robin Wright resolveu pedir aos produtores o mesmo salário que seu companheiro de elenco, Kevin Spacey – conseguiu, e com a “puxada de orelha” de Wright veio uma consciência de que Claire Underwood é tão, senão mais, essencial para House of Cards quanto Frank. Wright aceita o desafio de uma storyline mais densa, se segurando mesmo frente a uma tremenda atriz como Ellen Burstyn, que interpreta a mãe de Claire. Faminta, engenhosa e absurdamente resiliente, Claire, ao contrário de Frank, é uma vilã pela qual amamos torcer, e que podemos compreender – e Wright é parte fundamental disso.

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8. Issa Rae em Insecure (HBO)

Que achado que é Insecure, comédia que a HBO estreou ao lado de Divorce. Ao contrário da companheira de horário, no entanto, Insecure não tem star-power para se apoiar – Issa Rae, criadora e protagonista, é conhecida por trabalhos na internet, como a websérie The Misadventures of Awkward Black Girl (2011-2013). Na estreia na TV, ela encarna uma versão ligeiramente modificada de si mesma – a Issa da série é uma assistente social que caminha aquela deliciosa linha entre confiança empoderadora e humanidade falha e identificável. Na sua pele, Rae aparece franca, aberta e astuta, encontrando um humor natural que auxilia na construção da trajetória da personagem.

M.K. (TATIANA MASLANY)

7. Tatiana Maslany em Orphan Black (BBC America/Space)

Já no quarto ano de malabarismo artístico e multiplicação entre várias personagens, os feitos de Tatiana Maslany poderiam não impressionar como faziam antes – mas a atriz parece levar seu entendimento de cada uma dessas personas mais longe conforme as temporadas se seguem. No quarto ano, Orphan Black se abriu para temáticas fascinantes de reação à opressão, e Maslany encontrou em cada uma de suas performances uma forma de refletir isso. Seja na criação da estreante M.K. ou no episódio espetacular em que explora os cantos mais obscuros de Sarah, a atriz canadense está tão conectada com a realidade de suas personagens quanto sempre esteve. Pode não ser mais novidade, mas ainda é de se aplaudir de pé.

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6. Lena Headey em Game of Thrones (HBO)

O caso de Lena Headey é particularmente impressionante em 2016 porque ela sempre foi espetacular como Cersei Lannister em Game of Thrones, mas nunca tão espetacular quanto nessa sexta temporada. A série dá a Cersei muito mais o que fazer aqui, após sua temporada de “contrição” nas mãos do Alto Pardal (Jonathan Pryce) – ela é uma mulher puxada ao limite, e Headey nos faz entender a amargura e a desilusão que criam a fundação para a violência de Cersei. Quando ela diz “basta”, é impossível não se identificar com o sentimento, e a liberdade que existe em detonar (literalmente) seus inimigos. Cersei é uma mulher que se escondeu atrás do poder a vida inteira, e nunca isso foi refletido de forma tão agonizante quanto nos olhos de Headey.

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5. Keri Russell em The Americans (FX)

Há 4 temporadas, Keri Russell constrói uma Elizabeth Jennings inabalável e gelada em The Americans. Até então, essa era a sua genialidade: encontrar as rachaduras e vulnerabilidades em uma mulher de aço, e ao mesmo tempo não tirá-la desse status poderoso. No 4º ano, o que a série faz é desconstruir a repressão emocional da personagem, e uma Russell grávida (à época das filmagens) explora as sensibilidades e decepções de uma agente da KGB conflitada com a natureza do seu trabalho e de sua ideologia, especialmente quando ela atinge sua família. Nunca vimos Russell tão à flor da pele, e o resultado é ainda mais potente do que estamos acostumados.

6 thandie

4. Thandie Newton em Westworld (HBO)

Em uma crítica ouvi dizer que o brilhantismo da atuação de Thandie Newton em Westworld está em seu tempo. Nas mãos dos showrunners Jonathan Nolan e Lisa Joy, a Maeve interpretada pela atriz britânica se revela aos poucos, e esse florescimento está em cada detalhe da interpretação de Newton. Ela tem a habilidade e encher e dominar uma sala mesmo quando está nua e exposta, cercada por dois homens armados que podem, essencialmente, “desligá-la” a qualquer momento. Com esse comando de cena, Newton atravessa a história e as emoções (artificiais, mas muito reais) de Maeve com naturalidade e excelência, acertando cada nota no caminho e revelando a humanidade dentro do artificial.

3 caitlin

3. Caitlin Fitzgerald em Masters of Sex (Showtime)

O final de Masters of Sex não foi exatamente inesperado, uma vez que a série não dava o retorno desejado para a Showtime desde a 2ª temporada, mas foi um tanto abrupto. Com 10 episódios ao invés de 12, o quarto ano tentou fechar histórias (em alguns casos, sem muito sucesso) e reafirmar-se como análise da relação de poder masculino/feminino dentro da sociedade. Em  Libby, personagem de Caitlin Fitzgerald, fez isso com maestria, e é incrível como a atriz, que construiu uma performance sutil e completa até aqui, agarrou a oportunidade de revelar uma Libby que descobre, aos poucos, quem verdadeiramente é. A beleza está em observar uma atriz encontrando sua personagem ao mesmo tempo em que a personagem encontra a si mesma.

PENNY DREADFUL (Season 3)

2. Eva Green em Penny Dreadful (Showtime)

Em sua performance final como Vanessa Ives, Eva Green encontrou dentro da alma da personagem o que nem mesmo os espectadores mais fiéis poderiam prever que continuava escondido lá. A impressão com Green em Penny Dreadful é que ela entrega seu corpo a cada cena, e é essa presença física que nos cativa para entender as profundidades emocionais de Ives, que entra para o panteão de personagens inesquecíveis da TV. Na terceira temporada, em sua solidão e em sua entrega às forças do mal que a perseguiam desde o começo, Green encontra redenção, vulnerabilidade e afinidade com as trevas e a luz de uma mulher complicada e fundamental de se ter em tela no século XXI.

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1. Sarah Paulson em The People v. O.J. Simpson: American Crime Story (FX)

A interpretação mais importante do ano veio de onde já havíamos aprendido a esperar excelência, mas não nesse nível. Com Marcia Clark, a advogada que teve o ingrato trabalho de acusar o astro do futebol americano O.J. Simpson de assassinato, Sarah Paulson foi muito além das correntes de suas personagens regulares em American Horror Story, agarrando com unhas e dentes a oportunidade de construir uma mulher real, de pulso forte, que merecia melhor do que recebeu. O discurso da atuação de Paulson é tão atual quanto perfeitamente histórico, funcionando em vários níveis ao mesmo tempo e encontrando uma maneira de fazer justiça a uma mulher que a merecia. Como florescer de uma das melhores atrizes de sua geração, e como trabalho importante de correção social, merece o topo da lista.

12 de jan. de 2017

Review: Sob o controle de Denis Villeneuve, A Chegada só é épico em sua emoção

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por Caio Coletti

Há poucos meses atrás, finalmente me convenci a assistir Sicario, filme mais recente do diretor Denis Villeneuve. A partir de um roteiro inteligente e cínico de Taylor Sheridan, o diretor canadense criou um épico árido, brutal e complexo, à altura da história – com a ajuda do diretor de fotografia Roger Deakins, Sicario é  de belamente seco, e espetacularmente triste. Quando entrei no cinema para minha sessão de A Chegada, novo filme do cineasta, a sensação dada pelos trailers e pela divulgação em torno do filme era que essa seria uma ficção científica naquela mesma veia de realismo e pragmatismo, usando sua plasticidade para envolver o espectador em uma história destrutiva. Não foi isso que eu encontrei.

A Chegada é maior, mais passional e melhor que Sicario. É um filme recheado de alma, cuja tristeza existe dentro de um ambiente de celebração do espírito humano e suas intrincadas e complicadas decisões e relações. É um filme sobre comunicação, apropriadamente, e como ela cria e destrói pontes entre nós. É a história de Louise (Amy Adams), uma linguista contratada pelo governo americano para lidar com a chegada de uma nave alienígena no planeta. O estranho objeto voador em questão é apenas um de muitos que aterrissaram ao redor do mundo, e Louise recebe a ajuda do matemático Ian (Jeremy Renner) para tentar se conunicar com os aliens.

O que Villeneuve empresta de seus outros filmes aqui é a sensação incômoda de que algo está fora do lugar. Por meio de sugestões e climatizações (na fotografia e na trilha-sonora, por exemplo), o diretor nos prende em um ambiente que por vezes parece claustrofóbico, nos fazendo viver na cabeça de sua protagonista enquanto noções de tempo e espaço se misturam. Mérito à edição esperta de Joe Walker, à fotografia sóbria de Bradford Young e especialmente ao roteiro de Eric Heisserer, que costura uma protagonista feminina poderosa por sua compreensão daqueles ao seu redor e pequenos atos de bravura.

Pouco seria de A Chegada, no entanto, sem Amy Adams. Ótimos intérpretes que são, coadjuvantes como Jeremy Renner, Forest Whitaker, Michael Stuhlbarg e Tzi Ma são apagados pela presença efervescente de Adams em tela, agarrando um papel que usa e abusa a sua melhor característica como atriz: a reatividade. O rosto de Adams é expressivo e fascinante mesmo enquanto ela só tenta entender a linguagem dos alienígenas ou explica termos técnicos para os militares que a acompanham na missão. É óbvio que, com seis indicações ao Oscar (pode apostar na sétima esse ano), Adams é uma das melhores de sua geração – o que A Chegada faz perceber é que ela pode muito bem ser a melhor, mesmo que seja só em “tirar leite de pedra”.

Temperamental e controlado, A Chegada entrega tudo o que o espectador menos esperaria da “grande ficção científica do ano”. Gravidade, A Origem, Interestelar e outros grandes filmes nos ensinaram a esperar épicos com significados profundos e metafísicos, que exploravam o universo e a nossa relação com eles, na ficção contemporânea. Ao invés disso, A Chegada só é épico em sua emoção, e volta os olhos para as nossas escolhas, percepções e falhas muito mais do que para a forma como nos relacionamos com o mundo – é um filme que usa de sua reviravolta de trama para aprofundar a análise muito humana que faz de sua protagonista e da corajosa decisão que a define, lá no final do filme.

Nas mãos de Denis Villeneuve, o filme entrega essa “curva” emocional com controle absoluto, tecendo cenas memoráveis pelo caminho. A grande virtude do canadense como cineasta talvez seja o absoluto domínio que ele tem do ambiente quando está contendo uma história – de forma pouco usual no cenário cinematográfico atual, fértil diretores/autores, Villeneuve está sempre servindo à trama, e à melhor forma de nos envolver nela. Em A Chegada, o efeito é absoluto: o espectador se perde dentro da tela, e o suspiro quando os créditos sobem é tanto de satisfação quanto de lamento por tudo ter acabado.

✰✰✰✰✰ (5/5)

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A Chegada (Arrival, EUA, 2016)
Direção: Denis Villeneuve
Roteiro: Eric Heisserer, baseado em conto de Ted Chiang
Elenco: Amy Adams, Jeremy Renner, Forest Whitaker, Michael Stuhlbarg, Tzi Ma
116 minutos

10 de jan. de 2017

Diário de filmes do mês: Dezembro/2016

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por Caio Coletti

Nem todos os filmes merecem (ou pedem) uma análise complexa como a que fazemos com alguns dos lançamentos mais “quentes” ou filmes que descobrimos e nos surpreendem positivamente. É levando em consideração a função da crítica e da resenha como uma orientação do público em relação ao que vai ser visto em determinado filme que eu resolvi criar essa coluna, que visa falar brevemente dos filmes que não ganharam review completo no site. Vamos lá:

1

Perfeita é a Mãe! (Bad Moms, EUA, 2016)
Direção e roteiro: Jon Lucas, Scott Moore
Elenco: Mila Kunis, Kathryn Hahn, Kristen Bell, Christina Applegate, Jada Pinkett Smith, Annie Mumolo, Oona Laurence, Emjay Anthony, David Walton, Clark Duke, Jay Hernandez, Wendell Pierce
100 minutos

Jon Lucas e Scott Moore não são grandes diretores ou roteiristas. Eles são os caras que criaram Se Beber, Não Case, a franquia de comédia mais improvável (e indesejável) da última década, afinal. A química que faz de Perfeita é a Mãe! uma comédia esperta, única e importante é entre a dupla de criadores e seu elenco. Eles deixam elas moldarem as personagens que saíram de suas páginas com alguma liberdade, e o resultado é muito mais uma ode à individualidade dessas mulheres do que uma ode ao seu status como mães. Na trama, vemos um trio de jovens mães se reunindo por acaso quando uma delas decide que está “cansada” de tentar ser perfeita enquanto o marido a trai com uma atriz pornô via internet. A jornada na qual Mila Kunis, Kristen Bell e Kathryn Hahn embarcam a partir daí tira risadas fáceis de situações óbvias (mas que não deixam de funcionar), e confia no trio de atrizes para adicionar profundidade à graça que o filme já faz sobre a pressão que colocamos nas mães em nossa sociedade.

A sorte dos diretores é que as três protagonistas são ótimas nessa missão, e Perfeita é a Mãe! ganha um apelo emocional muito maior do que jamais teria direito de ter. Hahn e Bell são especialmente prodigiosas no timing cômico, enquanto Kunis adiciona tempero ao papel mais “certinho” do filme – ao redor delas, gente como Christina Applegate e Jada Pinkett Smith se diverte com personagens desenhadas com cores generosas. Por seu próprio tema, Perfeita é a Mãe! é subversivo e saboroso, mas é ao encontrar os rostos certos para suas personagens simbólicas que a comédia se torna uma das mais divertidas, ainda que eventualmente descartáveis, do ano.

✰✰✰✰ (3,5/5)

2

O Último Capítulo (I Am the Pretty Thing that Lives in the House, EUA/Canadá, 2016)
Direção e roteiro: Oz Perkins
Elenco: Ruth Wilson, Paula Prentiss, Lucy Boynton, Bob Balaban
87 minutos

O cinema de horror no século XXI é muito, muito mais do que os fãs mais superficiais do gênero poderiam atestar. Para além do básico bem executado de James Wan mora um leque enorme de estilos, abordagens e reflexões sobre o gênero. Oz Perkins é autor de mais um componente dessa diversidade, o filme O Último Capítulo, lançado diretamente na Netflix no final do ano passado. “Climático” não é a palavra certa para definí-lo, porque a verdade é que O Último Capítulo é todo atmosfera, e quase nada narrativa. Ao invés de nos contar uma história, Perkins dança ao redor dela, e nos prende em um ambiente sufocante com sua protagonista, a enfermeira Lily (Ruth Wilson, ótima), contratada para cuidar da idosa escritora de terror Iris Blum (Paula Prentiss). A assombração do filme está nos detalhes mais sutis, e Perkins filma em câmera aberta para percebermos as pequenas coisas fora do lugar dentro da casa (uma cadeira de cabeça para baixo é especialmente enervante). Silencioso, obstinadamente lento e genioso, o filme é também uma reflexão intensa sobre a morte.

Por meio da narração de Lily e da natureza “apagada” de sua história, O Último Capítulo quer nos dizer coisas profundas sobre como nos tornamos memórias distantes de nós mesmos quando morremos, e sobre como essas memórias só produzem fantasmas se os vivos se lembrarem de nós. Perkins captura o clima melancólico e disperso dessa reflexão, e usa técnicas rudimentares para chegar em um resultado preciso e inteligente. Em 87 minutos, o filme não se estende demais, deixando o espectador à deriva em suas excentricidades – passa devagar, mas dura pouco, e deixa uma marca.

✰✰✰✰ (4/5)

3

Dois Caras Legais (The Nice Guys, EUA, 2016)
Direção: Shane Black
Roteiro: Shane Black, Anthony Bagarozzi
Elenco: Russel Crowe, Ryan Gosling, Angourie Rice, Matt Bomer, Margaret Qualley, Yaya DaCosta, Keith David, Beau Knapp, Lois Smith, Kim Basinger
116 minutos

O que Shane Black faz não existe mais na grande Hollywood. Comédias de ação não estão em alta, eu sei, mas não é nem disso que eu estou falando – o roteirista e diretor, que criou a franquia Máquina Mortífera e escreveu, entre outros, O Último Grande Herói, funciona melhor no caos do que no ambiente impecavelmente organizado do clímax de um blockbuster moderno. O fato de que o deixaram fazer Dois Caras Legais é incrível – passado nos anos 70, o filme parece ter sido feito naquela época também,  e o resultado é uma comédia de estrutura familiar, mas conteúdo e personagens únicos o bastante para nos engajar. Russell Crowe é um “acertador de contas” profissional que cruza caminhos com Ryan Gosling, um detetive particular decadente, e os dois (com a ajuda da filha de Gosling, feita pela ótima Angourie Rice) precisam resolver o mistério do assassinato de Misty Mountains, uma estrela pornográfica. Você sabe o que acontece depois: segredos pessoais são revelados, a dupla improvável começa a se dar bem, e uma vilã do mundo corporativo está por trás de tudo.

Crowe se diverte ao encarnar a persona mal-humorada que se tornou sua marca nessa fase da carreira, mas a revelação aqui é Gosling, que mostra insuspeito timing cômico e excelente construção de personagem na pele do amalucado, suspeito e sempre embriagado Detetive March. Gosling respira vida ao filme, que demora um pouco para se encontrar em sua narrativa e feeling, culminando em um delicioso clímax que coloca o melhor da direção caótica de Shane Black para funcionar e nos pega de surpresa com o quanto passamos a nos importar com esses personagens. Sorrateiro, o roteirista criou um filme irreverente e despretensioso, que merece uma olhada.

✰✰✰✰ (3,5/5)

4

Pets – A Vida Secreta dos Bichos (The Secret Life of Pets, EUA/Japão, 2016)
Direção: Chris Renaud, Yarrow Cheney
Roteiro: Cinco Paul, Ken Daurio
Elenco: Louis C.K., Eric Stonestreet, Kevin Hart, Jenny Slate, Ellie Kemper, Albert Brooks, Lake Bell, Dana Carvey, Hannibal Buress, Bobby Moynihan, Steve Coogan
87 minutos

Ao contrário da maioria das empresas de animação hoje em dia, a Illumination não tem muitas pretensões artísticas – e isso tem funcionado muito bem. Foi assim que a empresa se viu no topo das bilheterias com Meu Malvado Favorito, Minions e, em 2016, Pets – A Vida Secreta dos Bichos. São, geralmente, aventuras perfeitamente divertidas que conseguem entreter crianças e adultos sem a necessidade de passar uma mensagem mais profunda ou mostrar um nível de sofisticação tremendo. Com um elenco de timing cômico afiado e uma trama que estica até as barreiras bem flexíveis do absurdo que aprendemos a esperar de uma animação com animais falantes, Pets é tecnicamente impecável e prazerosamente inventivo, embora não seja (nem queira ser) um grande filme. Se você só quer assistir uma animação em 2016, não assista Pets – se quer assistir 10, talvez seja uma boa ideia arranjar um espacinho para essa.

Na trama, um simpático cachorrinho dublado por Louis C.K. tem sua vida abalada quando sua dona traz para casa um segundo cão, esse interpretado por Eric Stonestreet. Enquanto tenta se livrar do companheiro indesejado, o protagonista se perde em Nova York e seus amigos, os outros animais de estimação da vizinhança, correm procurá-lo. Jenny Slate é particularmente hilária como a poodle que é apaixonada pelo protagonista, enquanto Albert Brooks e Dana Carvey entregam performances vocais marcantes para um falcão e um cachorro idoso, respectivamente. O segredo com Pets é não esperar uma mensagem profunda – são 87 minutos bem gastos e agradáveis no cinema, e às vezes isso é o bastante.

✰✰✰ (3/5)

5

Sing Street (Irlanda/Inglaterra/EUA, 2016)
Direção e roteiro: John Carney
Elenco: Ferdia Walsh-Peelo, Kelly Thornton, Maria Doyle Kennedy, Jack Reynor, Aidan Gillen, Lucy Boynton
106 minutos

Há algo sobre os anos 80 que faz histórias de amadurecimento parecerem mais encantadoras. Talvez seja o fato de que a cultura jovem da época dominava a narrativa pop de uma forma bem diferente da qual domina hoje em dia. Com The Cure, o new romantic, Boy George e Duran Duran, a efervescência cultural da década borbulha em Sing Street, musical do diretor John Carney (Apenas Uma Vez) que o vê retornando às suas raízes independentes após Mesmo Se Nada Dar Certo (2013). Saem de cena sentenças equivocadas sobre o mercado fonográfico e entra um encantamento mais genuíno pela música e pela estética que vem com ela. Esse não é um filme ingênuo sobre como ser bem-sucedido no showbusiness – é um filme sobre como a arte muda a vida das pessoas, e esse é um tipo de idealismo que eu estou disposto a comprar. À frente do filme está o jovem Ferdia Walsh-Peelo, que entrega uma interpretação exemplarmente sensível na pele de um garoto que é transferido para uma escola muito mais severa e monta uma banda para impressionar a aspirante à modelo que conhece em um de seus primeiros dias, interpretada por Lucy Boynton. Em casa, seu irmão mais velho, que desistiu da faculdade, lhe ensina sobre música, enquanto os pais estão absortos demais em problemas maritais para notar qualquer coisa.

A alienação e complicada relação familiar que Carney retrata aqui é talvez seu mais bem-sucedido empreendimento no filme, guiando Maria Doyle Kennedy e Aidan Gillen por uma relação de marido e mulher conturbada enquanto Jack Reynor rouba cenas com uma atuação focada e genuína. A frustração do irmão do protagonista, interpretado por Reynor, é o que dá combustível para o filme seguir em sua jornada musical e narrativa, enquanto composições deliciosamente grudentas alimentam a banda fictícia do filme e Carney nos guia por observações artísticas precisas e marcantes. Nessa altura de sua carreira, é óbvio que Carney ama música – mas Sing Street é o primeiro filme em que isso é traduzido de verdade.

✰✰✰✰ (4/5)

6

(Des)encontro Perfeito (Man Up, Inglaterra, 2015)
Direção: Ben Palmer
Roteiro: Tess Morris
Elenco: Lake Bell, Simon Pegg, Phoebe Waller-Bridge, Sharon Horgan, Ken Scott, Harriet Walter, Henry Lloyd-Hughes, Rory Kinnear, Olivia Williams
88 minutos

Em um cenário cinematográfico, e especialmente um cenário de comédias românticas, em que conceitos tremendamente sexistas ainda reinam, Man Up (ignorem o título brasileiro) é um achado. Trata-se da história de duas pessoas que se encontram pelo acaso e se moldam e transformam mutuamente, descobrindo e explorando pontos fortes e fracos do outro enquanto se desenrolam de uma confusão que pode parecer previsível, mas não é tanto assim. A fórmula ganha um toque de modernidade pelas mãos da roteirista Tess Morris e do diretor Ben Palmer, que criam uma comédia ágil, hilária e envolvente com a ajuda de sua dupla de atores improvável. Lake Bell, americana, 36 anos, é um par curioso para Simon Pegg, britânico, 45 – conhecidos por projetos e estilos diametralmente opostos, os dois se conectam com facilidade surpreende e criam performances complementares de uma forma que só dois grandes atores poderiam. É um daqueles casais que deixa o público com vontade de ver mais, como um Tom Hanks & Meg Ryan mais ácido, ou um Alan Rickman & Emma Thompson menos complicado.

Visto que eles são tão eficientes, Palmer se vê livre para experimentar na direção, enquanto Morris pinta personagens improváveis ao redor da dupla central, que ajudam a colorir o filme, cujo ponto final é uma surreal e deliciosa sequência que não deve surpreender ninguém, mas encantar todo mundo. Man Up lida com temas espinhosos para outros filmes do gênero (por exemplo, aborda a diferença de idade dos protagonistas ao invés de fingir que ela não está lá), e coloca os defeitos de seus protagonistas à frente, explorando de verdade como suas diferenças os fazem complementares ao invés de apenas repetir o bordão “os opostos se atraem”. É um bem-vindo respiro de ar fresco para o gênero.

✰✰✰✰ (3,5/5)

7

Florence: Quem é Essa Mulher? (Florence Foster Jenkins, Inglaterra, 2016)
Direção: Stephen Frears
Roteiro: Nicholas Martin
Elenco: Meryl Streep, Hugh Grant, Simon Helberg, Rebecca Ferguson, Nina Arianda, Stanley Townsend
111 minutos

Vamos tirar uma coisa do caminho: Florence: Quem é Essa Mulher? é estupendamente atuado. Não há nada que Meryl Streep não saiba fazer, como já não é novidade para cinéfilos de plantão, e cantar mal não é exceção. Como a terrível cantora (mas maravilhosa mulher) Florence Foster Jenkins, ela engaja, emociona e faz rir ao habitar a personagem com a classe e a expressividade de sempre. Ao lado dela, Hugh Grant entrega uma de suas mais inteligentes e sutis performances, enquanto Simon Helberg constrói um personagem memorável nos trejeitos e na vida emocional rica que empresta a ele, e Nina Arianda é um dos elementos mais divertidos do filme. A direção de Stephen Frears é sofisticada como de costume, e o roteiro de Nicholas Martin faz crônica simples, mas eficiente, da vida e espírito de uma mulher formidável em tudo, menos em seu talento artístico. Dito todos esses elogios, Florence: Quem é Essa Mulher? em raros momentos ultrapassa a marca de “competente”.

Assim como o filme anterior de Frears, o também ótimo Philomena, é um drama contido de momentos emocionais raros e eficientes, que conta uma história real que merece ser ouvida – no entanto, a sua falta de arroubos narrativos, que passa por classicismo britânico, é também seu calcanhar de Aquiles. Florence confia em sua história, seus atores e seus personagens, e em certa medida é uma aposta acertada, que cria uma experiência narrativa agradável e recompensadora. É também, no entanto, uma aposta segura, daquelas que faz sentir que talvez algo a mais pudesse ser tirado daqui com um diretor que ousasse deixar o espírito da Florence Foster Jenkins real voar mais alto que os puros fatos de sua história.

✰✰✰✰ (3,5/5)

8

O Bom Gigante Amigo (The BFG, EUA/Índia, 2016)
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Melissa Mathison, baseada no livro de Roald Dahl
Elenco: Mark Rylance, Ruby Barnhill, Penelope Wilton, Jermaine Clement, Rebecca Hall, Rafe Spall, Bill Hader
117 minutos

Há algo de especial em O Bom Gigante Amigo, mas há algo de não-realizado também. Adaptando uma amada história do mesmo autor de A Fantástica Fábrica de Chocolate, Steven Spielberg parece ansioso para voltar a um mundo imaginativo (e digital) após investidas em dramas sóbrios – tão ansioso que releva um roteiro falho de sua velha colaboradora Melissa Mathison (E.T.). O resultado é um espetáculo de efeitos especiais dirigido com maestria, mas pouco empolgante ou encantador. Há algo de desajustado e mal concebido no mundo criado e renderizado por Spielberg e sua equipe, mas o diretor encontra momentos de brilhantismo mesmo assim: a cena da perseguição na casa do Bom Gigante Amigo, feita em um único take, é mais classicamente Spielberg que qualquer coisa nos seus últimos filmes, assim como o momento em que os protagonistas vão “caçar sonhos” em um lago mágico. É difícil imaginar algum outro diretor dando vida a essa história, mas talvez ela não estivesse destinada a uma adaptação mesmo, porque O Bom Gigante Amigo é, acima de tudo, descartável.

Isso mesmo considerando uma esperta performance de captura digital de Mark Rylance, recém-saído de seu Oscar por Ponte dos Espiões, também de Spielberg. Expressivo, engraçado e envolvente, o ator britânico interage de forma adorável com a jovem e talentosa Ruby Barnhill. Fora dos dois protagonistas, o roteiro de O Bom Gigante Amigo falha em criar um único coadjuvante memorável (e mantenha em mente que o filme tem uma participação proeminente da Rainha da Inglaterra, feita por Penelope Wilton), e como resultado parece um filme estranhamente vazio, um exercício de nostalgia para Spielberg que não funciona muito bem para mais ninguém.

✰✰✰ (3/5)

9

Meu Amigo o Dragão (Pete’s Dragon, EUA, 2016)
Direção: David Lowery
Roteiro: David Lowery & Toby Halbrooks
Elenco: Bryce Dallas Howard, Robert Redford, Oakes Fegley, Oona Laurence, Wes Bentley, Karl Urban, Isiah Whitlock Jr
103 minutos

Mais uma aposta da Disney em 2016, Meu Amigo o Dragão pode ser visto como o oposto de O Bom Gigante Amigo, no sentido em que é verdadeiramente especial por conta de seu diretor e roteiro. David Lowery, que impressionou com o longa Ain’t Them Bodies Saints, pinta um retrato bucólico dos EUA com uma fotografia que é uma obra de arte, uma trilha-sonora folk e uma história encantadora que, essa sim, reproduz a magia de filmes infantis de outros tempos. Na trama, um jovem fica órfão após um acidente de carro de sua família, e acaba passando anos na floresta, acompanhado apenas de um dragão que todos os habitantes da cidade mais próxima tratam como mito. Os personagens aqui são simplistas, facilmente compreensíveis, mas isso não os faz maniqueístas ou mal-construídos – atores como Bryce Dallas Howard, Robert Redford, Wes Bentley e Karl Urban emprestam seus rostos e carismas a uma reunião de personagens que provém o suporte necessário para a trama brilhar e os efeitos, ainda que criados por um orçamento bem menor que o normal (US$65 milhões), encantarem.

O olhar do diretor Lowery, sua sensibilidade para esse conto belo e descomplicado, é o que faz Meu Amigo o Dragão uma preciosidade do cinema infanto-juvenil de 2016. Em meio a épicos auto-centrados, animações sem mensagem e um diretor veterano indulgente e fora de forma, esse pequeno filme brilha com um idealismo, uma paixão e uma sinceridade tremendas. Quem se entregar a Meu Amigo o Dragão vai encontrar uma fábula marcante, uma aventura empolgante, e um pedaço de cinema tremendamente bem balanceado. Não dá para pedir mais.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)