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28 de jul. de 2011

All of You – Colbie foge do vintage

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**** (3,5/5)

Eu sempre fui defensor de Colbie Caillat como uma artista legítima, que compõe por si mesma e encontra personalidade própria até nos momentos mais vintage de sua discografia que, vamos combinar, não é a mais inovadora do século. Encarando a realidade, o grande porém na música da americana era que suas canções funcionavam melhor isoladas do que no contexto repetitivo que seus dois álbuns, especialmente o Breakthrough, estabeleceram. All ofYou tampouco é a obra-prima revolucionária do ano, mas é de fato gratificante ver Colbie sair de sua zona de conforto algumas vezes pelo simples prazer de nos trazer uma obra menos ingênua e enjoativa, com mais variedade musical e colorido temático, e ainda se esforçar pelo caminho para garantir que todo o álbum saia com a assinatura que os fãs aprenderam a reconhecer nela. Mais gratificante ainda é perceber que, com tão poucos tropeços quanto possível, Colbie se sai brilhantemente na tarefa.

A porção inicial do álbum, especialmente, é uma surpresa daquelas de fazer abrir um belo sorriso. Colbie abre o álbum com Brighter Than The Sun (Faixa 1), co-composição entre ela e Ryan Tedder (realmente ainda existe a necessidade de apresentações para o líder do OneRepublic e figurinha carimbada na discografia de quase todas as grandes cantoras pop do século?) que se sai com a assinatura do mesmo por todos os lados. Ainda assim, é um deleite ver que Colbie tem potencial vocal para carregar facilmente uma canção que sai um pouco de sua zona de conforto, com os elementos de R&B e aquela qualidade indefinível que Tedder sempre dá um jeito de incutir nas suas composições. Segunda faixa e primeiro single, I Do (Faixa 2) é um prazer culpado de menos de três minutos, com uma letra com algumas falhas latentes, mas ainda assim irresistível em toda a sua doçura. Quase o mesmo que se pode dizer de Favorite Song (Faixa 4), uma canção hip-hop com a participação de Common que empresta o feeling das guitarras reggae misturadas com os versos rapeados direto do repertório menos conhecido de Jason Mraz, mas tem tudo no lugar certo e, apostem, vai fazer algum barulho como terceiro single que claramente foi feita pra ser.

É curioso que entre essas três canções exista Before I Let You Go (Faixa 3) e, depois delas, What If (Faixa 5). A primeira brinca com o que se espera da Colbie Caillat vintage, mas ainda assim arquiva um tom ligeiramente mais denso tanto na letra, que retrata um relacionamento atrapalhado por uma terceira pessoa, quando no instrumental, que tem as primeiras intervenções de guitarra elétrica do álbum. Acaba, com seu refrão cativante, como umas das melhores faixas do All of You. A quinta faixa do tracklist, por outro lado, revive um velho paradoxo recorrente na discografia de Colbie. Não é uma canção ruim, e nem poderia ser, tão ajustada àquela formula do pop rock anos 2000 que a cantora ajudou a estabelecer, ao lado de Taylor Swift. Acontece que há Swift demais e Caillat de menos na canção. Algo na forma como Colbie carrega (competentemente) essa faixa feita nas perfeitas regras do gênero simplesmente não casa com a personalidade que ela demonstra nas sutilezas do restante de sua discografia.

Até mesmo numa composição absurdamente pop como Think Good Thoughts (Faixa 7) Colbie soa melhor na própria pele. Juntando as forças de dois grandes compositores da atualidade, Toby Gad e Kara DioGuardi (ele escreveu “If I Were a Boy”, e ela é responsável por 90% dos dissidentes do American Idol), o que temos é uma canção sem grandes surpresas nem grandes segredos. Verdade seja dita, a produção pega leve tanto na voz da Colbie, mais pura e agradável aqui do que nunca, quanto no arranjo da canção, levado todo por violão e bateria. A qualidade reggae da canção é delicada, feminina, leve e refrescante. E quem se importa se a mensagem e clichê? A de Dream Life, Life (Faixa 10) também é, mas Colbie e seu parceiro aqui, Rick Nowels, inserem uma qualidade peculiar na canção e na letra que fazem do bom e velho “aproveite o dia” algo de fato inspirador de novo. Talvez seja simplesmente o fato de que, dessa vez, Colbie não é otimismo o tempo todo.

É para isso que a canção-título, All of You (Faixa 9) está aqui: para surpreender com uma letra que é ao mesmo tempo romântica e lança algumas sombras sobre a história de uma amante declarando ao amado que quer conhecer todos os seus segredos. Talvez seja simplesmente a interpretação de Colbie, que trata de imbuir sua voz daquele country heartbreak que voltou tão fácil a moda com o Lady Antebellum solto por aí. E é notável o quanto o timbre da americana soa bem com essa inflexão. Outra pequena pérola é Shadow (Faixa 6), com a batida de violão do exímio guitarrista e compositor (e namorado da cantora) Justin Young, que se junta a amada para ceder a letra mais azeitada, de metáfora mais envolvente, de todo o álbum. Há aqui também aquela característica country da faixa-título, e esse ingrediente, como os outros, fizeram bem a mistura da cantora.

All of You fecha trabalhos com Make it Rain (Faixa 12), uma balada que leva a assinatura solo de Colbie na composição e, nenhuma surpresa, deixa mais da personalidade da cantora trasnparecer do que qualquer outra faixa do álbum. E é bom ouvi-la assim, honesta, simples, entendendo que música não precisa de complexidade para ser capaz de emocionar quando bem composta. O arranjo é crescente, sim, mas não força esse crescimento ao ouvinte. Sem esforço nenhum, Colbie nos entrega o seu melhor para fechar um álbum que se esforça para não ser, como algumas de suas tentativas anteriores, esquecível. E mesmo que tropece aqui e ali, é uma tentativa mais do que válida. E uma expansão de horizontes, o que é, sempre, um bom sinal.

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“Tell me everything/ Tell me every little thing/ I won’t run away/ No matter what you say/ I wanna hear your heart/ Every single beat in part/ The good and the bad/ I swear I won’t be mad/ It’s you I want/ All of you”

(Colbie Caillat em “All of You”)

24 de jul. de 2011

Sobre… – Ouvir música sem preconceitos

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O mainstream da indústria musical não presta. Talvez tenha prestado um dia, quando os Beatles, o bom e velho rock n’ roll e talvez até o Michael Jackson (ele era pop, mas era talentoso) faziam a cabeça de suas respectivas gerações e formavam o topo das paradas. Mas, electro pop? Techno? Sintetizadores, letras com “dance” envolvido? Hip hop? Faça-me o favor!

Sabem, eu já fui assim. É tão estranho olhar para trás na minha própria experiência musical e me dar conta de que, um dia, eu já questionei dessa forma burra a máquina que empurra os sucessos comerciais da indústria da música. Não estou dizendo que ela é infalível: é claro que, com o jeito que as engrenagens de produção giram hoje, gente sem talento nem ponto a provar chega ao topo. Mas, como disse o um dia equilibrado Felipe Netto (sim, eu sou daqueles que acham que ele virou o troll virtual que tanto criticou): “não gostar de algo só porque faz sucesso é tão burro quanto gostar de algo só porque faz sucesso”. Algo, nesse tempo todo, me fez passar do cara que só ouvia a última grande banda inglesa da semana para o cara que vive afirmando que arte pop é o que há de mais incrível e interessante por aí, se você só parar para prestar atenção. Mas não estou aqui para discutir o que foi que apertou esse gatilho.

A questão é que, tendo me juntado recentemente a rede social Last.fm (o meu perfil, para quem estiver interessado), eu me dei conta do quanto somos levados, hoje em dia, pela aparência ao definir o nosso gosto em geral, e especialmente o musical. É fácil perceber que, de certa forma, todo mundo se limita. Há quem só tenha o novo rock na playlist, o que ha de melhor em termos de Paramore, The Pretty Reckless, Beeshop, Parachute e afins. Há quem pareça que conegelou vinte, trinta, quarenta anos no passado. E tome Blondie, Cyndi Lauper, A-Ha, Elvis Presley, Beatles. Eu não quero julgar. Mas será mesmo que essas pessoas são só isso? Quero dizer, há algo de especial em se tratando de música, que faz com que uma infinidade de formas de expressão possam existir e co-existir, e as pessoas parecem não perceber que elas não precisam se anular. Eu não estou criticando ninguém. Todos, absolutamente todos os artistas que eu citei acima tem sua validade como expressões de um estado de espírito, ou vários. Mas não de todos.

E porquê, afinal? Por que de repente se tornou ilícito ouvir Pink Floyd, mas também se deleitar com as criações pop de Lady Gaga? Combinar num mesmo dia, digamos, The Smiths, Prince, Kerli, Linkin Park, Rihanna e Depeche Mode? O que há de errado em reconhecer o talento de composição de Eric Clapton com uma guitarra e, ao mesmo tempo, não deixar de admirar o trabalho de David Guetta quando põe as mãos em um sintetizador? Quem se define, se limita. E quem se limita, não aproveita as milhões de oportunidades que a música nos traz. Eu ouço, com mais ou menos freqüência, todos os artistas citados aqui nesse texto. E recomendo-os para quem quiser descobrir coisas novas, sair da sua zona de conforto, da sua aparência, da sua fachada, para começar a a abrir a mente para o fato de que nem todo o talento do mundo está confinado no universo do gênero pelo qual se é fascinado.

É claro, gosto musical vai ser sempre algo pessoal. Mas, acreditem em mim, ele jamais vai se esgotar de novas experiências se você começar a alimentá-lo. Eu jamais pensei que ouviria B.o.B., Eminem, Fresno, Sandy, Justin Timberlake, Ke$ha. Dessa última, aliás, eu já falei poucas e boas. Aproveito a oportunidade para me retratar e reconhecer o talento da garota como compositora e, vivendo e aprendendo, até como cantora. Para quem ainda nutre ódio da pobre coitada, eu indico “Hungover”, do álbum Animal. Funcionou na primeira audição comigo. Vamos nos limitar menos, sim? E que assim seja. Ou, como Lady Gaga diria: “amen, fashion”.

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“…I am in love/ With what we are/ Not what we should be/ And I’m/ I am starstruck/ With every part/ Of this whole story…

… So if it’s just tonight/ The animal inside/ Let it live and die/ Like it’s the end of time/ Like everything inside/ Let it live and die…

This is our last chance/ Give me your hands/ ‘Cause our world’s spinning at the speed of light/ The night is fading/ Heart is racing/ Now just come and love me like we’re gonna die!”

(Ke$ha em “Animal”)

22 de jul. de 2011

05 motivos pelos quais valeu a pena ficar com Harry até o fim.

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Não, se você está se perguntando, eu não vou falar de nada além de Harry Potter essa semana. O motivo é bem simples. Há muito tempo para comentar, nas próximas semanas, o desenrolar do novo filme da série do Cavaleiro das Trevas ou as novas peripécias europeias de Woody Allen. Mas não há mais tempo nenhum para falar do final de Harry Potter. A estreia já passou, e eu imagino que todo mundo já tenha visto o filme, chorado e sorrido com a jornada final dos personagens que, querendo ou não, acompanhamos por tanto tempo. Chega a dar orgulho por ter ficado com Harry até o fim, frase que virou jargão entre os fãs porque a autora J.K. Rowling a usou na dedicatória do último livro da série (“e para você, que ficou com Harry até o fim”). Mas, afinal, para quem deixou tudo para trás no meio do caminho, o que perdeu? Não custa nada contar para eles, em cinco motivos simples pelos quais valeram a pena ficar com Harry até o fim.

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5º motivo – A evolução de Daniel Radcliffe

O mundo do cinema tem péssimas experiências com atores que passam pela adolescência diante das câmeras. Não é preciso nem citar os casos Macaulay Culkin e Haley Joel. Quando Daniel começou a se mostrar um pouco mais saidinho, cabelos longos e meio desconcentrado em Cálice de Fogo, parecia que o escolhido para ser Harry Potter iria seguir o mesmo caminho. Acontece que, um belo corte nas madeixas e a direção de David Yates renderam, surpreendentemente, a performance intensa em A Ordem da Fênix. Desde então, Daniel só melhorou. E Relíquias – Parte II é um filme (quase) todo seu, que ele carrega tranquilamente.

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4º motivo – Afeiçoar-se aos coadjuvantes

Esse quarto motivo é mais comum entre quem acompanha a série literária, porque nela a galeria de incríveis personagens secundários de J.K. Rowling tem mais chance de brilhar, mas vamos nos acertar com o fato de que não é qualquer coadjuvante que faz uma plateia gritar com a frase de efeito “minha filha não, sua vadia!”. A Molly Weasley da excelente Julie Walters é só o começo. Saia perguntando por aí, e você vai achar gente que se indetifique com Remo Lupin, Rúbeo Hagrid, Sirius Black, Luna Lovegood, Neville Longbottom e até com uma parte do elenco de vilões, mais especialmente a bruxa má Bellatriz Lestrange, interpretada por Helena Bonham-Carter.

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3º motivo – Severo Snape (e Alan Rickman)

Tudo bem, vamos ser sinceros: independente de preferências pessoais, o melhor personagem a sair da mente de J.K. Rowling se chama Severo Snape. Outro fato, ninguém que não acompanhou a jornada da série até o fim é capaz de entender por que. Não é só uma questão de saber das reais intenções do personagem. É acompanhá-lo desde o início e tomá-lo como um enigma dos momentos iniciais até os finais. E ainda bem, no final das contas, que Alan Rickman foi escalado para esse papel. Era o que exigia um ator mais competente, mais dramático e, ao mesmo tempo, de mais nuances. Ele faz esse trabalho com a primazia de um gigante.

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2º motivo - (Re)aprender o valor do amor

“Não tenha pena dos mortos, Harry. Tenha pena dos vivos. E, especialmente, daqueles que vivem sem amor”. Assim, numa simples frase pincelada direto do livro, Steve Kloves depositou em quem deveria (o Dumbledore de Michael Ganbon) o peso de toda uma temática que, de uma forma ou de outra, propositalmente ou não, ficou meio perdida na transição livros-cinema. Em seu cerne, na filosofia de Dumbledore e na forma como conduziu a narrativa, J.K. Rowling nunca escondeu que Harry Potter é, essencialmente, sobre o poder do amor. E quem sou eu para discutir?

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1º motivo – Poder chamar Hogwarts de “lar”

Você pode achar que é o mais clichê do mundo, mas eu não poderia ligar menos para o fato de uma centena de outras sagas e fenômenos terem feito isso com seus fãs. Para mim, quando eu abro um livro ou vejo um filme da série Harry Potter, é quase como se eu não fosse mais tirado do meu mundo para ir para outro. Faz parte do meu subconsciente, da minha memória, da minha imaginação, a ideia de Hogwarts, como foi criada, excitante e toda cheia de segredos, é a ideia de um lugar para onde é possível fugir e se recompor. Chame do que quiser. Eu chamo de lar.

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Nenhuma história vive até que alguém esteja disposto a ouví-la. As histórias que amamos mais vivem em nós para sempre. Então, não importa se você volte através das páginas ou da tela grande, Hogwarts vai estar sempre lá para lhe dizer ‘seja bem-vindo ao lar’”

(J.K. Rowling na Trafalagar Square, na premiere londrina de Relíquias – Parte II)

17 de jul. de 2011

Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte II (The Deathly Hallows: Part II, 2011)

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Os leitores não podem nem imaginar o quanto é difícil para este que vos fala ser imparcial conforme vai desenhando essas linhas. Ou melhor, pode ser que muitos de vocês até imaginem. Não tem como ignorar que, nos últimos 10 anos, senão nos últimos 14 (o primeiro livro da série é de 1997),  Harry Potter se conslidou como mais do que um enorme sucesso de público, mais até do que a série que reviveu o gosto do mundo todo pela leitura. Na última década e meia, a verdade é que, sem exagero nenhum, Harry Potter foi aos poucos se tornando, entre filme e livro, o definidor de uma geração. A minha geração. E aí o mais desavisado começa a compreender, quem sabe pensando nos elementos que definiram a sua própria época, porque a crítica que segue pode não ser a mais confiável tecnicamente, e está muito mais escrita com o coração do que com o olho treinado de (aspirante a) crítico de cinema. O envolvimento com os personagens, a forma como vários dos momentos retratados em película aqui ressoam para toda uma rede de memórias, o fato de que este é simplesmente o último filme de uma série que eu e meio mundo acompanhamos por uma parte inteira das nossas vidas… Eu não vou deixar de levar nada disso em conta. E porque deveria? Cinema, afinal, não é só técnica. É emoção.

E há muita emoção envolvida em Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte II. Não dá pra dizer muito da premissa sem estragar as surpresas para quem não leu os livros: o trio protagonista se aproxima cada vez do confronto final (não deve ser mais segredo para ninguém, sediado na própria Hogwarts que muitos aprenderam a chamar de lar nesses quase 15 anos) com um Voldemort enfim mortal, destituído de suas horcruxes, pedaços de sua própria alma aprisionados em objetos específicos que Harry, Rony e Hermione vem caçando desde o começo do filme do ano passado. E ficamos por aqui. O que importa, mesmo, é que David Yates termina seu trabalho de quatro filmes na série sem sujar nada de sua reputação como o homem que deu a Harry Potter sua identidade visual e conceito climático. O trabalho do britânico é equilibradíssimo e, ainda que bem menos ousado do que suas incursões por Ordem da Fênix e especialmente Relíquias – Parte I (ele fez do primeiro um thriller político e, do segundo, um road-movie de suspense intenso), muito eficiente em criar a jornada mais épica e mais emocionalmente simbólica de toda a série. Como deveria ser.

Claro que ele tem toda a ajuda do material de Rowling, e não dá pra não sair um pouco dos meus limites e saudar o talento de uma criadora que embebe com o espírito de uma trama de mistério de Agatha Christie a aventura (e desventura) de Harry e companhia. Os conceitos morais são fortes, mas não maniqueístas, e a forma como Rowling busca os detalhes, acontecimentos e mecanismos das tramas anteriores para encaixar e azeitar esse final, além de primorosamente eficiente, é muito comovente. Mantenha os olhos completamente secos em algumas partes da incrível batalha final em Hogwarts ou mesmo no já lendário epílogo dos “Dezenove anos depois”, e você com certeza ganhou meu respeito (e uma recomendação: consulte o psicólogo). Desmerecer o trabalho de Steve Kloves, no entanto, seria injusto. Como roteirista de quase toda a série (sua única ausência foi em Ordem da Fênix, e foram justamente os fãs que clamaram pela sua volta), ele demonstrou respeito pelo material original na mesma medida em que jamais deixou de contribuir de forma muito talentosa para enriquecer a mitologia da série. Adições incríveis como a cena do aceno de varinhas para o cadáver de Dumbledore no sexto filme, a dança de Harry e Hermione em Relíquias – Parte I e os diálogos espirituosos que ajustam o clima para a batalha final são resposabilidade quase única de Gloves.

Quase porque essas adições serviriam de pouco, na verdade, se não fosse pelo elenco fenomenal que a série sempre reuniu. Não dá para não começar notando a evolução dos três protagonistas como interprétes ao decorrer dos oito filmes, nesses últimos 10 anos. Emma Watson, que sempre demonstrou ser a mais desenvolta dos três, nunca se deixa ficar em segundo plano e, mesmo que não tenha nenhum grande momento aqui, encontra formas inesperadas de brilhar com uma bem azeitada composição da personagem incrível que, nas mãos de Rowling, Hermione é. Rupert Grint não deixa por menos, e sua evolução é a mais díspar, por assim dizer. Seu Rony, nesse filme, ainda é aquele das caretas das primeiras incursões da série, mas é também um personagem falho e ainda assim adorável. Claro, Parte II é, assim como Ordem da Fênix foi, o filme de Daniel Radcliffe. É de fato indescritível a forma como, nos trejeitos e na imutável e ainda sim crescente interpretação que ele construiu em todos os filmes, Daniel incorpora a criação de Rowling com uma propriedade e com uma personalidade incríveis. É possível notar, para quem leu os livros, o ator dando seu toque pessoal ao personagem. Mas isso ocorre de forma tão certeira que, ao mesmo tempo, Daniel e Harry se tornam um, como toda boa performance deve fazer.

São tantos destaques a fazer no elenco coadjuvante que talvez eu deva me limitar a uma, e só uma: Alan Rickman. Podem pensar que é exagero de fã, mas sua incorporação do professor Snape, da forma como o personagem ganha o merecido destaque que talvez nunca tenha tido nos filmes, é simplesmente, na falta de palavras, material de Oscar. Da entonação nas frases a expressão facial e ao agonizar dos olhos em alguns momentos cruciais, Rickman incorpora o ser humano por trás do professor com tanta competência que é possível acreditar, mesmo, que ele sempre tenha estado ali, escondido. A história de Snape é surpreendente e comovente, e Rickman não tem medo de ser dramático quando é necessário. Numa análise fria, talvez seja a sua performance que faça de Parte II um filme realmente fácil de se gostar. Mas eu prometi que essa não seria uma crítica fria. E, como volto a deixar meu coração escrever mais do que minha mente, a verdade é que eu não sei como terminar as últimas linhas que eu vou poder escrever sobre algo inédito de Harry Potter.

É só esse sentimento de vazio. Essa estranha tristeza misturada com alegria (por constatar que não poderia ter terminado melhor), e com a peculiar nostalgia orgulhosa de poder olhar para trás, para uma série sobre um bruxo órfão que passou por cima de tudo o que a vida lhe impôs para aprender o valor do amor, e dizer: eu fiquei com Harry até o fim.

Nota: 9,5

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Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte II (Harry Potter and The Deathly Hallows: Part II, Inglaterra/EUA, 2011).

Dirigido por David Yates…

Escritor por Steven Kloves, baseado no livro de J.K. Rowling…

Estrelando Daniel Radcliffe, Rupert Grint, Emma Watson, Alan Rickman, Evanna Lynch, Ralph Fiennes, Helena Bonham-Carter, Maggie Smith…

130 minutos

3 de jul. de 2011

127 Horas (127 Hours, 2010)

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127 Horas tinha tudo para se tornar uma experiência burocrática. Não vou dizer que seria absolvida de todo o impacto que tem, uma vez que o mesmo é garantido pela própria história real de Aron Ralston, o alpinista que passou o tempo do título com o braço preso entre a parede de um cânion e uma rocha massiva e acabou tomando a medida mais desesperada para se salvar. Mas é fato que, na mão de um Ron Howard ou mesmo de um Steven Spielberg, diretores muito bons, mas que tendem a acomodação das fórmulas fáceis, 127 Horas seria um filme previsível de se assistir. Claustrofobia, comoção e sequencias espetaculares estariam no cardápio, como estão aqui, mas seriam servidos sem a energia de quem aceita um desafio. E isso seria o maior dos desfavores a uma trama que tem algo a dizer, muito envolvimento a entregar e ainda nos põe em contato, uma vez mais, com os limites do instinto de sobrevivência humano.

Sem menosprezar o nótável talento dos diretores citados, há um encaixe na forma como essa história é conduzida pelo roteiro, retratada pela fotografia e emoldurada pela trilha-sonora que faz de cada minuto, ao mesmo tempo, uma experiência visceral no sentido de emoção da trama e um exercício de criatividade conduzido minuciosamente pela batuta inglesa de Danny Boyle. Ao lado de Simon Beaufoy, dupla formada no multi-premiado Quem Quer Ser um Milionário?, o diretor inglês adapta as memórias em livro do próprio Ralston para um filme que não decepciona no que promete (uma lição de sobrevivência e um exercício de exploração do personagem) e ainda deixa no ar, em pinceladas suaves assistidas imensamente pela brilhante fotografia de Enrique Chediak e Anthony Dod Mantle (ambos com experiências na série Extermínio), a oposição entre a vida sem parada que levamos todos os dias e a situação extrema, mas estagnada, de Aron.

O último elemento, não menos importante, a se encaixar nesse mecanismo interno que faz de 127 Horas merecedor do barulho que causou é A.R. Rahman. Boyle o trouxe a reboque direto de Quem Quer Ser um Milionário?, e o indiano prova sua versatilidade aqui. Dotado de surpreendente passe-livre pela cultura pop, ele pincela Edith Piaf, Chopin, Sigur Rós e ainda chama a cantora Dido Armstrong para a belamente melódica “If I Rise”, uma das composições originais que dão ao filme de Boyle o movimento, a modernidade e a pulsação que a história poderia ter deixado faltar. Claro, o segundo provedor dessa mesma pulsação é James Franco, em uma performance muito inteligente que não se agiganta diante da tela ou do espectador. O ator prefere, habilmente, trabalhar uma performance versátil, que passa por uma gama grande de emoções sem carregar nas tintas que a própria trama garante serem bem marcantes. É um trabalho muito complementar ao filme em que se insere, e demonstra a notavel evolução que Franco passou desde que o vimos como Harry Osborne na franquia Homem-Aranha.

Os coadjuvantes não tem muito a fazer diante de tudo isso, mas vale o destaque para Clémence Poesy, a Fleur Delacour de Harry Pottter e o Cálice de Fogo, entregando mais uma performance muito sensível na pele de Rana, a ex-namorada que assombra os delírios de Ralston. No fim das contas, 127 Horas não é o grande filme do ano passado (como a própria Academia reconheceu, não o concedendo nenhuma das seis estatuetas a que concorria), mas é uma viagem intensa e comovente sem em nenhum momento deixar de ser criativa e pulsante. E que assim seja.

Nota: 7,5

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127 Horas (127 Hours, EUA/Inglaterra, 2010)

Uma produção da Cloud Eight Films, Decibel Films, Darlow Smithson Productions…

Dirigido por Danny Boyle…

Escrito por Danny Boyle, Simon Beaufoy, baseados no livro de Aron Ralston…

Estrelando James Franco, Kate Mara, Amber Tamblyn, Clemente Poesy…

94 minutos