O domínio narrativo e visual que a composição de um filme como Stoker exige é algo que poucos cineastas seriam capazes de manejar. De fato, esse seria um filme completamente diferente se não tivesse se tornado, depois de rodar os estúdios de Hollywood por pelo menos três anos, o primeiro projeto americano do diretor Chan-wook Park. Conhecido por sua “trilogia da vingança” (Oldboy, de 2003, ganhará refilmagem americana esse ano pelas mãos de Spike Lee), o vencedor de dois prêmios do júri em Cannes estreia em Hollywood com um roteiro que lhe dá a oportunidade de manipular a mídia cinematográfica e as sensações do espectador a favor de uma estranha, perversa e extravagante história de crescimento.
É preciso dar crédito a Wentworth Miller, conhecido do público na frente das câmeras como um dos protagonistas de Prison Break, que estreia como roteirista demonstrando não só eficiência, como principalmente auto-confiança. Stoker é antes de tudo um thriller hitchcockiano com ambientação moderna, e é mérito de Miller que esse aspecto do filme não fique enterrado por baixo dos simbolismos e maneirismos do seu diretor. A trama é bem amarrada e tem uma noção clara dos arcos de transformação e revelação de seus personagens, e mesmo que o início pareça um pouco vacilante quanto ao tom na narrativa, assim que decide firmar os dois pés no thriller psicológico-visual, o filme decola.
Nossa protagonista é a jovem India (Mia Wasikowska, que aos 24 anos ainda passa perfeitamente pelos 19 da personagem), cuja vida é virada de cabeça para baixo não só graças a morte do pai (Dermot Mulroney), como pela inesperada chegada de seu tio Charlie (Matthew Goode) ao velório. O irmão do defunto acaba ficando hospedado na casa onde agora moram India e a mãe Evie (Nicole Kidman), e aos poucos se infiltra na vida da família, de forma progressivamente mais bizarra. O roteiro espertamente escolhe fugir dos clichês da situação, articulando Charlie como uma força de mudança e um catalisador de revelações muito mais do que como um “creepy stranger” que se aproveita da situação frágil da família.
É verdade, grande parte do que faz Stoker um mistério tão compulsivo está no trabalho de Park, e não no de Miller. O diretor sul-coreano mostra ser de detalhismo impressionante em sua materialização e expansão das ideias do roteiro: Stoker é mais do que a soma de suas partes porque, em todos os momentos, todas essas partes trabalham como um conjunto. A fotografia de Chung-hoon Chung, parceiro de longa data do diretor, é melodramática e dinâmica como a trama e a direção exigem, realçando os simbolismos do roteiro. E Stoker é um dos filmes mais cheios de simbolismo dos últimos tempos: pianos, sapatos e cintos são “temas” recorrentes da observação de Chung e Park, construindo uma viagem matafórica visual dentro da viagem literal da trama, e integrada a ela. Se Chung não ganhar uma indicação ao Oscar no próximo ano, a Academia já pode começar a ser taxada como xenofóbica.
Park também arquiva uma coordenação meticulosa em outras áreas: o design de sets e o figurino são cuidadosamente trabalhados para emprestar a atmosfera contidamente delirante do filme, e a direção de atores é impiedosamente exata. O papel entregue a Mia Wasikowska foi reportadamente oferecido também a uma mão cheia das melhores e mais cotadas atrizes jovens de Hollywood (Carey Mulligan, Kristen Stewart, Rooney Mara, Emily Browning, Ashley Greene), e é testamento da competência da garota que não seja possível imaginar nenhuma delas no papel de India Stoker. Considere o espectador esse o último papel juvenil ou o primeiro papel adulto de Mia – ambas as considerações são possíveis –, o fato é que a moça arquiva uma interpretação sutilmente brilhante que segura o centro do filme com facilidade.
Ao lado de Mia, as performances coadjuvantes fazem jus as qualificações: coadjuvantes. Mas isso não as faz menos eficientes. Nicole Kidman é uma atriz tão fabulosa que seu véu transparente de emoções é capaz de expressar toda a ambiguidade, os tons de cinza, a frustração e o egoismo de Evie; Matthew Goode cumpre bem o papel de psicopata da vez com um olhar delirante e um sorriso assustador, além da lânguida linguagem corporal que se insinua para as duas personagens principais; Jacki Weaver, Alden Ehrenreich e Phyllis Sommerville desempenham seus pequenos papéis com eficiência bem dirigida e executada. Ajuda o fato de que a construção de personagem de Stoker é extremamente conectada com o conceito do filme de que nos tornamos aquilo que fomos moldados para nos tornar. Isso permite que a narrativa, a direção, o visual e até as interpretações vivam não só no tempo presente, mas na eterna cadeia de consequencias do passado.
**** (4/5)
Segredos de Sangue (Stoker, Inglaterra/EUA, 2013)
Direção: Chan-wook Park
Roteiro: Wentworth Miller
Elenco: Mia Wasikowska, Nicole Kidman, Matthew Goode, Jacki Weaver, Alden Ehrenreich, Phyllis Sommerville
99 minutos
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