Uma das coisas que eu sempre digo sobre Katy Perry – e sou acompanhado nisso por alguns artistas do meio, vide o depoimento de Adele no Katy Perry: Part of Me – tem a ver com a cantora americana ser uma das mais talentosas contadoras de história da música pop hoje em dia. Isso fica mais evidente em baladas confessionais e inspiracionais, normalmente quando a moça resolve desacelerar o passo de estrela pop conquistando o mundo para, muitas vezes à violão-e-voz, se comunicar com o seu público de maneira mais direta. Nesses momentos, ouvir Perry é como sentar-se para assistir Forrest Gump; a “caixa de chocolates” é aberta, degustada e saboreada por cada um de nós através dos versos e das inflexões de voz da cantora, uma vocalista muito melhor do que lhe é dado crédito.
Prism, quarto álbum de Katy (contando o lançado sob o nome de batismo, Katy Hudson, em 2001), me abriu os olhos para uma nova faceta desse talento. Como contadora de histórias exímia, talvez a garota que “beijou uma moça e gostou disso” esteja nos conduzindo por uma jornada pessoal muito mais ampla com a sua carreira do que podemos imaginar. Aí entra um pouco de evolução natural, um pouco de respeito ao próprio amadurecimento, e um pouco de esperteza marketeira, é claro, mas é evidente o “arco narrativo” que existe se encadearmos, por exemplo, o Teenage Dream a esse novo disco. A Katy daqui, já tendo o mundo em suas mãos, nos prepara para o próximo passo, e essa é uma jornada excitante de se acompanhar.
Com a batida e o piano sincopado de “Brave”, da amiga Sara Bareilles, Perry cria “Roar”, sua primeira balada inspiracional verdadeiramente voltada para o público do piano-rock alternativo, e ensaia se tornar uma mistura pra lá de interessante desse estilo com o poderio pop fornecido por produtores como Dr. Luke e Cirkut, aqui misturando um sintetizador grave e insinuante com timbres de guitarra de arena, no refrão. Nos vocais, Katy mostra que aprendeu a duras penas os limites de sua voz, e o resultado é uma performance ao mesmo tempo sonoramente impressionante e perfeitamente manejável em uma apresentação ao vivo.
Uma Katy de calculado e bem interpretado monotom toma conta dos vocais em “This Is How We Do”, composta na medida para se tornar o grande hit do verão americano, mas adicionando toques de requinte que só Perry e o produtor Klas Ahlund poderiam inserir tão sutilmente. A grande jogada é a cantora se colocar como parte distanciada daquilo que narra: apesar do “we” do refrão, a Katy de “This Is How We Do” soa muito mais como uma hostess perfeitamente blasé e, ao mesmo tempo, mais do que pronta para celebrar a vida gloriosamente ridícula dessas wild kids ao seu redor. É a abordagem perfeita para a Katy amadurecida do Prism, que não abre mão de ser divertida.
A outra colaboração de Perry e Ahlund é igualmente geniosa: com os sintetizadores claramente inspirados pelo dream pop alternativo (o momento em que isso fica mais claro é nas primeiras incidências do refrão, em quedas de tom) e a batida deep house noventista finalmente recolocada ao lado dos toques de soul que a completam, “Walking On Air” não é só um potencial hit, como uma das mais visionárias e interessantes incursões pop de Perry. Aqui, ela mostra que não só é uma boa observadora das tendências, como também tem algo para ensinar a elas: deve ter ouvido os teclados de Calvin Harris e pensado que faltava um toquezinho de CeCe Penniston naquilo tudo. Acertou na mosca.
Abrindo com um riff de toques orientais que acompanha quase toda a música, “Legendary Lovers” prenuncia o surgimento da melodia mais forte do Prism, com seu refrão poderoso que sintetiza os clichês espiritualistas que Perry habilidosamente mistura com sua alegoria amorosa/sexual – menos atrevida e mais sofisticada nesse novo álbum: “Take me down to the river/ Underneath the blood orange Sun/ Say my name like a scripture/ Keep my heart beating like a drum”. Além de grudenta, a faixa é climática e ganha pontos ao usar bem as referências eletrônicas num contexto mais estranho à música pop, especialmente a de Katy.
“Birthday” é como o delicioso elo perdido entre Prince do começo dos anos 70 e Mariah do começo dos 90. Tem a malícia, o baixo funkeado e os falsetes do primeiro, misturados com a batida francamente pop, as seções de sopro e as extravagâncias vocais da segunda, com dois “Happy Birthday” à moda Marilyn Monroe jogados no meio dessa salada. “Dark Horse” é uma mistura das mais bem engendradas do Prism, dos versos insinuantes que seguem com o tema espiritual do álbum (“Make me your Aphrodite/ Make me your one and only”) ao refrão abertamente pop, com notas altas que Perry alcança sem dificuldades, e à pincelada final de trap music nas bridges.
Do bloco oitentista chegam “Ghost” e “Love Me”. A primeira é uma balada amarga como toda e qualquer break-up song precisa ser, com Katy remanescendo a mensagem de texto com a qual Russell Brand rompeu o casamento de pouco mais de um ano com a cantora, lamentando que não tenha visto esse lado “cruel” dele desde o início, e clamando que agora ele não passa de um “fantasma” de seu passado. O golpe de misericórdia: “I see through you now”. A segunda é quase uma súplica de Perry para si mesma. Começa com um lamento (“I lost myself in fear of losing you”), e passa por uma afirmação de cabeça erguida (“Now, I don’t negotiate with insecurities”), mas em última instância é a tentativa desesperada de frear um impulso de sacrifício de si pelo outro. O sabor não é amargo porque Perry recorre ao clichê do “amar a si mesmo para que alguém te ame”, que não deixa de ser extremamente verdadeiro, especialmente quando vem adoçado pela produção de Bloodshy, um dos maiores arquitetos da música pop texturizada eletronicamente no século XXI.
Os únicos tropeços do álbum são “International Smile”, que sofre de falta de personalidade frente as outras faixas, e se encaixaria muito melhor no Teenage Dream, e “This Moment”, uma tentativa nada produtiva de colar as harmonias do hit “Dancing On My Own”, de Robyn, em uma balada inspiracional baseada em princípios de auto-ajuda. Por outro lado, não é a toa que “Unconditionally” é a preferida pessoal de Perry no álbum: além de ecoar as melhores baladas de sua própria carreira, tão bem representadas por outros singles como “Thinking of You” e “The One That Got Away”, a canção mostra que ainda vive uma vocalista cheia de particularidades e floreios dentro da moça que estoura os pulmões quase diariamente para cantar “Firework”. Com requintes de Alanis Morrisette – uma inspiração que Perry nunca negou – a cantora enriquece a já belíssima letra: “All your insecurities/ All the dirty laundry/ Never made me blink one time”.
“By The Grace of God” fecha o Prism em missão parecida com a de “Roar” ao abri-lo: trazer, ainda que através de filtros pop, a voz de Katy para um gênero e uma expressão diferentes, próxima do adulto alternativo e do piano pop. Não a toa, nas duas faixas o instrumento é bem proeminente, ainda que “By The Grace of God” tenha subtons temáticos bem diferentes, se estruturando como inspiracional de uma maneira diversa. Mais franca e aberta sobre a separação pela qual passou, Perry escreve sobre depressão e até contemplação de suicídio, e não é nenhum pecado fazê-lo sob o filtro de R&B clássico que Greg Wells coloca na canção. Essa polivalência ainda estrutura Perry como uma artista pop. E não é que o Teenage Dream não o tenha feito, mas por mais bem que aquele álbum tenha trazido à Katy que é a maior estrela de todas as rádios Top 40 do mundo todo, Prism faz muito mais pela artista que vive dentro dela.
***** (4,5/5)
Prism
Lançamento: 18 de Outubro de 2013
Produção: Katy Perry, Dr. Luke, Max Martin, Klas Ahlund, Benny Blanco, Bloodshy, Cirkut, Greg Kurstin, Greg Wells, StarGate
Duração: 48m39s
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