ATENÇÃO: esse review contem spoilers!
Se há uma característica que distingue todas as boas séries no ar atualmente, é que em cada uma delas existe uma nuance absolutamente particular. No formato televisivo convencional, de episódios semanais, uma trama triunfa quando evolui ao ponto de poder se desenvolver dentro de uma linguagem própria, criar lógicas e códigos morais e visuais internos para se guiar (e guiar o espectador). O relacionamento de lealdade do espectador para com a série depende muito do quanto os showrunners são competentes para criar esse mundo completo, que funciona de acordo com as próprias regras.
Person of Interest, para citar um exemplo de procedural – mais sobre esse “gênero” e sua relação com Almost Human nos próximos parágrafos – já no decorrer da primeira temporada se mostrou capaz de torcer a perspectiva sobre a sua premissa em uma infinidade de maneiras novas, procurando sempre seguir a lógica paranóica e comunitária, ao mesmo tempo, que estabeleceu. O problema de Almost Human nesses dois primeiros episódios exibidos pela Fox no último final-de-semana é que, enquanto não tem experiência o bastante para definir qual será sua abordagem ao universo que constrói e que tipo de “internalidade” será sua linha-mestra, a série resolve substituir esse sentimento por… nada.
Eu não quero ser pessimista em relação a nova série de J.J. Abrams e J.H. Wyman, primariamente porque eu acho que ela tem pessoas talentosas o bastante envolvidas com ela para se constituir, nas próximas semanas, como algo bem melhor do que foi apresentado até agora. Ao mesmo tempo, não posso deixar de dizer que essas duas horas iniciais de Almost Human não tem absolutamente nada de realmente particular para se apoiar. Pelo contrário, são uma colagem de referências, estilos e clichês da ficção científica, que minimamente funcionam pela pura força de vontade do elenco e da produção, uma das mais apuradas da TV atualmente.
Para começar, temos as referências óbvias: Eu Robô, Blade Runner e Fringe. O mundo cyberpunk de 2048 é claramente inspirado pela obra do escritor Phillip K. Dick, enquanto a premissa de um robô mostrando a um humano o quão sensitivo ele pode ser vem direto das viagens sentimentais de Asimov. A mistura deve empolgar os fãs de ficção científica (este que vos fala é um deles, então posso falar!), mas a verdade é que o conceito é melhor que a trama: um policial que passou 2 anos em coma e carrega uma perna sintética (Karl Urban – no papel do policial, não da perna) ganha um parceiro andróide (Michael Ealy) de uma linha obsoleta, e é incumbido por sua superior (Lili Taylor) de investigar uma série de crimes atribuidos a uma organização conhecida como Insyndicate, responsável pelo incidente que o deixou apagado – e pela morte de seu parceiro na época.
Fringe entra na mistura devido a forma como a série articula desde já um “grande mistério”, envolvendo tanto a tal Insyndicate (cujos objetivos nunca são deixados claros) quanto a ex-namorada do protagonista, que aparentemente estava na equipe que o nocauteou anos atrás. O senso de gore e de pulp também são emprestados da série materna de J.H. Wyman, que assina o roteiro do episódio piloto. Nas mãos dele, os personagens principais ganham formas interessantes, ainda que o detetive de Urban seja um herói estoico e cínico daqueles que precisa reagir a outros bons personagens para funcionar. Isso é um crédito quando ele divide a cena com Ealy, em estado de graça com uma vivaz atuação para um personagem já de antemão cheio de nuances. Um dos maiores problemas de Almost Human, no entanto, é que o time de coadjuvantes não parece se impor para além de ferramentas de trama.
É no segundo episódio, “Skin”, que fica mais claro que muito disso a série herda dos procedurals clássicos como CSI e NCIS. Não por acaso, o episódio é escrito por um colaborador dessa última, Cheo Hodari Coker, o que significa que uma parte do material emocional de personagens funciona, e uma boa parte da trama da semana não. Pese aí uma trilha-sonora mão-pesada, e a decisão mais uma vez nada particular de explorar a sexualidade e a mortalidade como temas. De Blade Runner a AI, essas foram as duas grandes questões da ficção científica, especialmente a que envolve andróides, e não há nada de errado nisso – afinal, esses também são grandes temas da natureza humana –, mas Almost Human precisa se posicionar em meio a esses clichês para se revelar como a série de personalidade que pode ser.
Observações adicionais:
- Urban e Ealy são seriamente ótimos em cena juntos. A química funciona, os diálogos exploratórios e intrusivos passam batidos pela natureza do personagem de Ealy, e muitas das partes mais interessantes de “Skin” acontecem quando os dois estão conversando, sozinhos, no carro.
- Há mais do que um pouco de Ridley Scott na forma como o diretor Michael Offer filma as sexbots em “Skin”.
**** (3,5/5)
Próximo Almost Human: 01x03 – Are You Receiving? (25/11)
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