por Caio Coletti
Ela costumava povoar todos os seus sonhos. Os olhos fechados, a mente longe de qualquer lugar real, ele idealizava o seu rosto, o enchia de perfeição, de vida, de sorriso, de esperança. E a dava o brilho no olhar de uma mulher apaixonada. Na sua mente, os cabelos ruivos ardiam em fogo, a pele branca transpirava candura, e os olhos azuis transbordavam a doce essência do amor. O corpo esguio, o trato refinado, o sorriso discreto de uma dama de gelo cujo coração apenas ele poderia conhecer. Sim, ela era uma atriz. E o mundo todo acreditava em seu pálido, transparente fingimento de frieza e invulnerabilidade. Mas não ele, é claro. Ele tinha privilégios.
Ele conhecia a mulher de verdade por trás das fachadas. E talvez fosse por isso, por seu véu ser mais fácil de ultrapassar para ele do que para qualquer outro homem, ela era incondicional e inteiramente sua. Era um ideal, uma utopia. A rainha de gelo que se tornava numa princesa de fogo eternamente ardente apenas para aquele que amava. Conhecer, saber, prever todos os movimentos daquela mulher, aquela era sua conquista mais glorificada, e mais desconhecida, de todas. O mundo todo se perguntava o que ela, tão linda, vira nele. E os que não o faziam se questionavam porque ele, tão sensível, se juntara a ela, a inatingível.
Ora, ele conseguira atingi-la! Mas por quanto tempo? A questão lhe martelara na cabeça por anos a fio, no cenário difuso, no eterno jogo de agrados que se tornara a convivência dos dois. Ele mal podia se lembrar de como tudo aquilo, aquele relacionamento, aquela ligação estranha que ambos sentiam, havia começado, mas tinha certeza, agora, dos motivos pelos quais havia terminado. O que começara como um sonho se tornando realidade de súbito se transportara de volta para o mundo confuso dos desacordados como o mais funesto pesadelo. E ele a ouvia sedado, em coma, tentando assimilar as palavras que ela dizia naquela bela voz musical que ele idolatrava. Ela podia estar cantando, agora. Mas era uma canção sombria.
- Christian, eu tenho que partir – um acorde tenso soou após sua voz silenciar. – Eu sinto muito, mas esse lugar não é mais o bastante para mim – “você não é mais o bastante para mim”, ele pode ouvir o canto mais sombrio da sua consciência lendo as entrelinhas. Mas, por sua própria sanidade, resolveu ignorá-lo. – Eu vou partir. Não me pergunte para onde, não me peça para explicar. Eu não quero chorar. Eu simplesmente vou embora.
- Não – não era um lamento, e sua voz não era nem de longe a melodia que saíra dos lábios dela, mas era possível ouvir a resolução no seu tom. – Eu jamais permitiria que isso acabasse, mas você sabe que também não me colocaria na frente dos seus sonhos. Você vai estar longe, é claro que vai. Mas eu posso esperar por você. Para sempre.
Palavras sempre foram seu forte, mas não parecia estar na melhor de suas formas naquela noite, pois sua declaração de amor eterno simplesmente provocou um sorriso apagado nos lábios finos dela. E ele encarou aqueles olhos azuis que sempre foram uma fonte cristalina de amor para ele. Não importa o que ela falasse ou o que acontecesse, aqueles olhos lhe traziam a lembrança do quanto ela o amava. Ou talvez fosse apenas o quanto ele se sentia assim. Não sabia mais. E de repente aqueles olhos eram mais espelhos de sua própria e obsessiva paixão do que dos sentimentos dela. Não eram mais os olhos da sua amada, da sua Satine. Eram os olhos de uma atriz.
- Christian – ela quebrou o silencio, e de repente ele pôde ouvir a dissimulação na voz dela que seus amigos tanto tentaram avisá-lo sobre. – Eu te amo. Sempre vou te amar em alguma parte de mim. Mas não. Não me espere. Eu não vou voltar.
“Ela não quer mais isso!”, a voz no fundo de sua consciência o falou, acusadora, enquanto ele de repente via toda aquela beleza, todo aquele ideal que por tanto tempo ele tivera em seus braços, lhe fugindo. E o verdadeiro véu de sua Satine finalmente caiu. Ele não gostou do que viu, da pele branca reluzindo desonestidade, dos cabelos vermelhos pegando fogo em descaso e dos olhos azuis transbordando de desamor. Era a verdade que ele encarava agora, e não o algo belo que ela lhe mostrara por tanto tempo. Ela virou as costas, uma lágrima hipócrita caindo de seus olhos raivosos em segredo.
E ele viu o último relance daquele brilho azul que ele amara. A última nesga daquela pele branca que ele acariciara. O último rastro do perfume doce que o hipnotizara. E então, ele acordou. E a vida era real mais uma vez. Real e dolorosa, pois a sua Satine sempre existira, e sempre existiria. Mas apenas em seus sonhos.
[Christian]: All you need is love!
[Satine]: Love is just a game.
[Christian]: I was made for loving you baby, you were made for loving me.
[Satine]: The only way of loving me baby, is to pay a lovely fee.
(Ewan McGregor e Nicole Kidman – Christian e Satine – em “Moulin Rouge!”)
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