20 de ago. de 2013

Sobre complexo de Deus, jornalismo e Lady Gaga, ou uma crítica estatística e pessoal a André Forastieri

774px-Michelangelo,_Creation_of_Adam_04Detalhe de Creation of Adam, de Michelangelo

Os adeptos a séries médicas já devem ter ouvido o termo “complexo de Deus”. O God complex é caracterizado por um sentimento inabalável de certeza na própria opinião, uma recusa absoluta de se reconhecer errado (mesmo que só eventualmente), um sentimento todo-poderoso de infalibilidade. Como frequentemente são responsáveis por salvar ou tirar vidas, os profissionais da medicina precisam ficar atentos ao próprio ego para não desenvolverem alguma coisa assim e, do nada, virarem pacientes. Os psicólogos de plantão precisam ser avisados, no entanto, que não são só os médicos que sofrem do “complexo de Deus”. Alguns jornalistas também.

Sou estudante de Jornalismo e confesso que já conheço alguns que poderiam ser enquadrados nesse diagnóstico, mas meu principal contato com esse tipo de jornalista que eu pretendo nunca me tornar é, para o meu próprio choque, em sites e publicações consagradas. E se posso falar pela minha universidade em específico, o curso faz um trabalho bem incisivo em nos dar a noção de que não somos e nem devemos nos considerar Paladinos da Justiça e da Verdade (em maiúsculas para sublinhar a insuportável pretensão do próprio termo). A neutralidade jornalística? Mito. É virtualmente impossível escrever um texto sem tomar um lado. A escolha de cada palavra significa assumir uma ótica de se olhar a situação, e não outra.

Por outro lado, aprendo que o compromisso do jornalista é sim com os fatos. Com o que lhe foi dito, por quem foi dito. Quando há números comprovados, com eles. O jornalista não molda a realidade para encaixar-se em sua opinião, e não omite fatos e números que falam contra ela. O trabalho jornalístico tem a ver com apresentar uma versão de um acontecimento que deixe seu leitor, espectador ou ouvinte decidir por si mesmo quem está certo. Não é pecado jornalístico advogar uma opinião, desde que se dê espaço para advogar pela outra.

Ao trazer toda essa envergadura e premissa moral para o meu atual campo de atuação, o jornalismo de entretenimento online, as linhas são um pouco mais difusas – mas ainda estão lá. A expressão direta da opinião é enormemente valorizada no mundo dos blogs e sites de entretenimento, mas o posicionamento de quem a escreve não deve nunca fugir do que pode ser comprovado, e jamais omitir dados que possam dizer o contrário. Logo, se um lançamento pop que não me agradou estoura nas paradas, resta escrever um review ruim que inclua a informação de que o público abraçou aquela composição com unhas e dentes. E o mesmo ao contrário. Uma canção que eu gostei e vendeu mal “deveria ter vendido mais”. Reconhece-se o desempenho estatístico e irrefutável e insere-se a opinião.

Tudo isso para chegar no exemplo de mau jornalismo em questão, este artigo do colaborador do R7 e jornalista de carreira notável no ramo do entretenimento (uma informação que me chocou bastante, e que pode tirar a credibilidade do meu argumento aqui, mas que eu não omiti, percebam bem) André Forastieri. Eu não sei se o senhor Forastieri considera que a internet não é lugar para se fazer jornalismo de respeito, mas se não considera, aquele título de “jornalista” embaixo do nome exibido em seu blog deveria ser retirado, porque esse texto é tudo, menos jornalismo. Pode ser que seja só uma implicância com Lady Gaga, porque impossível negar que outras investidas dele em assuntos como política e imprensa foram quase excepcionalmente inteligentes e cristalinas.

Pessoalmente, eu gosto da artista pop Lady Gaga. Tenho CD, DVD, biografia e livro de fotos assinado por Terry Richardson. Fui ao show. Qualquer um que me conheça, ou mesmo que leia minhas ruminações aqui n’O Anagrama, sabe disso. Não acho que isso não devesse transparecer nos meus textos, porque acho-a genial, e quero que as pessoas leiam minha visão do porquê acho-a genial. Não quero que elas aceitem essa visão de bate-pronto, mas acharia brilhante se o que eu escrevo as fizesse mastigar um pouco a refeição pop de Gaga. Mesmo que elas entrem aqui achando o gosto da refeição ruim, e saiam sem mudar de opinião.

Nunca neguei que o público não abraçou a maioria dos lançamentos do Born This Way, último disco da moça, de 2011. “Marry The Night”, o último single, estagnou na posição de #29 do Billboard Hot 100. O álbum só rendeu duas canções que chegaram ao top 3. Vendeu 6 milhões de cópias, o que é um número bastante significativo na era de pirataria em que vivemos, mas ainda é metade das vendas do combo The Fame/The Fame Monster. A turnê, apesar de ter sido uma das mais lucrativas de 2012, não lotou os estádios para os quais foi desenhada. A essa altura do campeonato, é impossível negar a influência de Gaga como figura definidora do pop internacional e ditadora de tendências, vide a enxurrada de canções direcionadas a levantar a auto-estima do público jovem inseguro de sua própria identidade depois do lançamento de “Born This Way” (o single). Impossível também negar, no entanto, que ela não reina sozinha no Olimpo dos artistas com “sucesso certo”. Talvez nem mesmo reine soberana.

C093B0136AB0289CE64C2EA6677EE5André Forastieri

O que André Forastieri faz em seu artigo, no entanto, é declarar o fracasso total do último empreendimento de Gaga no mundo pop, o single “Applause”, que se seguirá do terceiro álbum de estúdio, ARTPOP, no dia 11 de Novembro. Álbum com o qual, segundo o jornalista, “ninguém se importa”. O Google Trends indica, no entanto, que o título do álbum da moça (que não é um termo comum, uma vez que o movimento artísitico de Andy Warhol e companhia se escreve “pop art”), está ligeiramente acima do nome do recentemente nomeado Papa Francisco I em volume de buscas em inglês no site (dá pra conferir aqui). Isso, claro, é uma informação só para o caso de você, leitor, e seus amigos terem discutido alguma outra coisa além de Lady Gaga na última semana.

O jornalista Forastieri continua, redigindo um texto que é tudo, menos jornalístico, ao afirmar que o novo single “não está vendendo”. O iTunes Charts americano, no entanto, coloca “Applause” como um terceiro single mais vendido do momento, atrás de “Roar” de Katy Perry e “Blurred Lines” de Robin Thicke (prova aqui, muito embora a informação no texto reflita o chart no momento em que este que vos fala o consultou, e portanto está sujeita a mudanças). A Billboard prevê que Gaga vai vender em torno de 200 a 225 mil cópias do single, um número similar ao conseguido por Adele na faixa “Skyfall”, que chegou no final do ano passado em um ambiente bem mais competitivo que o atual, e mesmo assim cravou o #8 na parada da Billboard. Com apenas Katy Perry com prospectos de vendas maiores que os seus, as chances são que Gaga encontre seu caminho para o Top 3 na próxima quarta feira (tudo que eu disse aqui pode ser corroborrado por esse artigo da própria Billboard).

“Applause” não vai alcançar o êxito de uma “Born This Way”, que estreou com vendas em torno de 600 mil cópias, um número que nem “Roar”, a papa-tudo dessa semana na Billboard, provavelmente vai arranhar (as previsões são de 475 mil para Katy Perry), mas não é um fracasso. Eu me pergunto quando uma canção Top 3 da Billboard Hot 100 começou a ser chamada de fracasso. Para efeitos de comparação, “Scream”, parceria entre Michael Jackson e a irmã Janet, não passou do #5, e ainda é considerada uma das canções pop mais bem-sucedidas dos anos 90.

Procurando outros textos do senhor Forastieri aqui e ali no blog do R7, fica bem claro que o dito jornalista tem uma visão de música pop que quase deixa de considerá-la música. E ele tem todo o direito de ter, diga-se de passagem, e de se enterrar em suas coleções de vinis do U2 e do Metallica. Assim como eu tenho todo o direito de argumentar de volta, e de me enterrar nos meus CDs da própria Gaga. Difícil saber se Forastieri sempre considerou o movimento pop todo uma grande bobagem totalmente voltada para o lado mercadológico, ou se pensa que os anos corromperam a proposta de Andy Warhol e companhia. Ou se mal entende qual era essa proposta, na pior das hipóteses. Em um dos muitos textos anteriores que ele linka no artigo sobre Gaga, ele diz que qualidade musical não tem nada a ver com pop (aqui, no segundo parágrafo).

De certa forma, esse tipo de opinião legitima exatamente a missão da artista no mundo pop. A percepção geral das pessoas em relação a esse meio não mudou muito desde que Madonna surgiu 25 anos atrás, e mesmo que o pop tenha ganhado as galerias de arte e especialistas do mundo todo, muita gente ainda se recusa a aceitar que entretenimento feito para as massas também tem o direito de provocar e instigar a mente de quem o recebe. A missão de Gaga sempre foi, desde os primórdios do The Fame – e não só recentemente, como o moço sugere no finalzinho do seu artigo – levar a performance pop de volta para as galerias de arte. O fato de que esse empreendimento ficou mais descarado na proposta do novo álbum deve estar incomodando quem acha que o pop deve se reduzir a própria (presumida) mediocridade.

E daí que vem a vontade de taxar “Applause” como um fracasso. Dois dos melhores e mais influentes álbuns de Madonna, o Erotica e o Bedtime Stories, venderam em torno de 6 milhões de cópias, só o bastante para não serem considerados flops em sua época. Para os padrões da indústria fonográfica atual, com os quais Forastieri não parece se importar o bastante para realizar o mínimo de pesquisa exigida para a função de jornalista, esse mesmo número é bem mais significativo. O autor do artigo deve achar que, se reconhecer isso, a própria fundação do que escreveu vai vir por terra. Está errado.

O senhor Forastieri tem todo o direito de escrever que acha que Gaga não representa a música pop da forma que deveria. Pode escrever, inclusive, que essa tal música pop é só lixo mercadológico. Pode contestar a escolha de colocar diversas das peças performadas e usadas por Gaga em museus de arte por aí. Pode dizer que “Applause” tem números modestos se comparados ao começo da carreira da artista. Pode até dizer que ela sofre da “síndrome de Marilyn Monroe”, muito embora a própria construção da sentença em que ele usa essa expressão devesse dar calafrios nas feministas da mesma forma que a mim. O que ele não pode fazer é deixar de escrever tudo o que fala contra essa opinião.

A partir do momento em que um texto tem só uma voz e só uma todo-poderosa visão que não admite que qualquer número ou consideração de especialistas fale contra ela, paramos de falar de jornalismo e começamos a falar de conversa de bar. A partir do momento em que a sua opinião começa a valer mais do que as fontes de informação que você tem a obrigação de buscar como jornalista, talvez seja a hora de consultar um psicólogo. Você não está mais fazendo um bom serviço ao público. Aliás, lembra que era você que deveria servir o público com fatos e informações, e então opiniões que eles deveriam considerar antes de adotar? Lendo outros textos no blog do senhor Forastieri, fica claro que, assim como eu, ele sabe muito bem disso. E esse Complexo de Deus em certos momentos começa a cheirar como implicação infantil. Eu, sinceramente, não sei o que é mais patético.

Caio

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