por Caio Coletti
Só mesmo um diretor norueguês poderia trazer O Jogo da Imitação à vida de maneira tão comprometida. Cineastas com laços em nações envolvidas (mesmo que perifericamente) na história estariam mais do que inclinados a enchê-la de sentimentalismo, pompa grandiosa e teses sociais – Morten Tydlum não. Responsável pelo elogiado Headhunter, ele aborda o roteiro do estreante Graham Moore com literalidade refrescante, traduzindo sem concessões o que o escritor procura passar com essa história, e entregando uma trama de Segunda Guerra Mundial com uma visão única (o que, nesses tempos cansados do épico de guerra, não é pouco). Tydlum trabalha com o diretor de fotografia Oscar Faura (O Impossível) para dar cores e climas diferentes para cada uma das três linhas narrativas que compõem o filme, e no caminho cria um drama muito envolvente sobre a resistência humana.
A história real acompanha Alan Turing (Benedict Cumberbatch), matemático britânico que se candidata, logo no começo da Segunda Guerra Mundial, a um trabalho que todos consideravam impossível: quebrar o código Enigma, sistema criptográfico de comunicação utilizado pelos alemães. Enquanto vemos a trajetória que levou ele e um time de outros matemáticos a ter um papel instrumental no fim da guerra, também observamos um Alan mais velho sendo investigado por um policial (Rory Kinnear, ótimo como de costume), curioso quanto aos motivos pelos quais os registros militares do moço são confidenciais. Por fim, o círculo críptico do roteiro de Graham Moore se fecha com a história de um jovem Alan (Alex Lawther) e sua primeira paixão de infância, o encantador Christopher (Jack Bannon, um ator mirim pra se observar).
Com essa estrutura que, tão esperta quanto previsivelmente, se assemelha a um enigma – uma espécie de código para o espectador decifrar –, O Jogo da Imitação é ótimo entretenimento, uma quieta e dramática, mas estranhamente empolgante, trama de espionagem e ciência. É também, no entanto, um estudo de personagem aguçado, lançando um olhar moderno sobre uma história antiga, revelando os seres humanos envolvidos nela através de suas características atemporais. O foco do filme é em Turing, mas aqueles que povoam o mundo ao seu redor são caracterizados com igual ou maior delicadeza por Moore: Matthew Goode brilha como o carismático Hugh; Charles Dance exercita sua melhor expressão de desprezo como o Comandante condescendente da operação secreta; e Mark Strong (sempre subestimado) é puro charme escorregadio como o classudo agente do MI-6 que ajuda Turing e cia.
No entanto, a força de O Jogo da Imitação, mesmo com todas as suas virtudes técnicas, está na história extraordinária que tem para contar, e nos dois protagonistas que garantiu para contá-la. Cumberbatch faz um trabalho sutileza absurda, ao mesmo tempo em que não abre mão da expressividade que é característica dos trabalhos de sua meteórica carreira até aqui. O trabalho de voz, como de costume, é fundamental para carregar as características do personagem no início do filme, quando ele ainda é um mistério para o espectador. O timing cômico do ator britânico é perfeito enquanto Turing tropeça e gagueja pelas frases do roteiro, e especialmente no traquejo social mais que deficitado do personagem – ainda assim, ao mesmo tempo, Cumberbatch injeta no personagem uma certa dignidade, uma ambição desmedida e uma sagacidade aguda que fazem bem-vinda companhia ao seu ego inflado. É impossível acusá-lo de interpretar uma variação dos gênios anti-sociais que fez em O Quinto Poder e Sherlock, porque ele trata Turing como um ser humano completamente novo, e portanto exige que o façamos também.
Keira Knightley, é claro, também está em plena forma como a garota charmosa, genial e desafiadora que se torna a melhor amiga de Turing na operação. É deixado implícito que, assim como o próprio matemático, Joan Clarke teve que enfrentar muitos obstáculos para conseguir o que quis – de fato, é possível apontar que esse é o próprio tema de O Jogo da Imitação, o filme otimista mais devastadoramente triste de que se tem notícia há décadas. Enquanto mostra seus cientistas correndo contra o relógio (e não conta um inimigo específico), a câmera de Tydlum e o roteiro de Moore observam o mundo ao redor deles desmoronar. Em uma sequência particularmente marcante, vemos o antes, o durante e o depois de um bombardeio em uma cidade britânica. Em outra, um tanque passa por cima do capacete de um soldado largado na lama.
O Jogo da Imitação quer mostrar que há algo em comum entre a história pessoal de Alan, a formidável experiência que ele conduziu durante a guerra e a própria vitória contra a opressão esmagadora do nazismo. Em cada um desses casos, o ser humano foi capaz de apresentar sua face mais aterrorizante – no preconceito, na descrença, na resistência ao novo e na violência contra o outro –, mas não foi esse lado nosso que venceu, no final das contas. Seja no arrependimento do policial interpretado por Rory Kinnear, seja nas milhões de vidas que Turing salvou durante a Guerra, ou no imenso legado que ele deixou para que esse mesmo equipamento que eu uso para digitar essas palavras exista, O Jogo da Imitação é uma história de triunfo do intelecto, da invenção, e do não-convencional. De todos os ângulos que uma história como essa poderia render, nenhum seria mais poderoso do que esse.
✰✰✰✰✰ (5/5)
O Jogo da Imitação (The Imitation Game, Inglaterra/EUA, 2014)
Direção: Morten Tydlum
Roteiro: Graham Moore, baseado no livro de Adrew Hodges
Elenco: Benedict Cumberbatch, Keira Knightley, Matthew Goode, Rory Kinnear, Allen Leech, Matthew Beard, Charles Dance, Mark Strong
114 minutos
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