por Caio Coletti
(Twitter – Tumblr)
Em texto publicado na Folha de S. Paulo em 11 de Abril último, Élcio Verçosa Filho, artista multimídia brasileiro na ativa desde 1995, defende que levamos o conceito de “tolerância”, em nosso pensamento contemporâneo, longe demais, constatando em sua conclusão que “gloriamo-nos em não estar nem aí”, hoje em dia, para o que é bom ou ruim, aceitável ou não, “grande” ou “pequeno” do ponto de vista do mérito. A sentença pode parecer inofensiva, mas é o primeiro passo para iniciar uma dicussão muito maior: conceitos irmãos (siameses, eu diria), tolerância e liberdade podem ser demais?
Filosoficamente contestada, a liberdade foi dividida pelo pensador Isaiah Berlin em dois preceitos diferentes na sua seminal obra Two Concepts of Liberty: a liberdade positiva seria aquela que garante ao indíviduo o direito e as condições de ser auto-suficiente para buscar a realização completa de seus desejos; a negativa envolve, segundo o conceito de Berlin, “uma resposta para a questão ‘qual é a área na qual o sujeito é ou deveria ser deixado livre para ser ou fazer o que ele pode ser ou fazer, sem a interferência de outras pessoas?’”. Outro filósofo, Gerald MacCallum, tentou conciliar os dois conceitos em um só: “x é/não é livre de y para fazer/não fazer ou se tornar/não se tornar z”. A questão, então, passa a ser a extensão que deve assumir esse “y”.
Colocado contra a parede em entrevista ao USA Today em 2003, quando ainda nem era pré-candidato republicano a presidência (em uma campanha da qual desistiu recentemente em favor da candidatura de Mitt Romney), o republicano Rick Santorum revelou que, segundo a sua visão, o “direito à privacidade” e, portanto, a liberdade na vida privada, era algo “inventado”. Ele explica: “esse direito foi criado em Griswold (caso histórico da justiça americana em que a Suprema Corte inconstitucionalizou uma lei de proibição ao uso de contraceptivos), e agora nós estamos o estendendo. (…) Você diz, bem, é minha liberdade individual. Sim, mas ela destrói a base da nossa sociedade, porque ela inclui comportamentos que são anti-éticos para famílias fortes e saudáveis. Que seja poligamia, adultério, homossexualidade, tudo isso é anti-ético para uma família saudável, forte e estável”.
O problema com a declaração de Santorum é o mesmo que o do artigo de Verçosa, ainda que as consequencias dos mesmos sejam tão desproporcionais: enquanto Santorum julga, deliberadamente, o que é uma “família saudável, forte e estável” (formada por um casal heterossexual e monogâmico, entre outras coisas), Verçosa parece nos querer dizer que sabemos, sim, o que é “bom” e o que é “ruim”. Em certo ponto do seu texto, ele chega a dizer que “sabemos, para além de toda pose relativista, que Bach é, no campo da música, maior, ‘mais grande’, mais digno de louvor e imitação que Michel Teló”. Acusa-nos, como geração, portanto, de tolerância demasiada. Sugere-nos, logo, que não toleremos quem ouça Michel Teló, e não Bach? Essa “intolerância” é condição fundamental para que possamos reconhecer a “grandeza” do compositor erudito? É preciso, mesmo, diminuir um para engrandecer o outro?
O preceito do “toleramos tanto que não reconhecemos mais o mérito” é falho em especial quando se o estende para outras áreas de influência. Lutando na justiça britânica pelo direito ao suicídio assistido, Tony Nicklinson, cujo caso o Estado de S. Paulo destacou em Março, deveria ser julgado por querer morrer? Deveria ser ser considerado menos digno de louvor que o jornalista Jean-Dominique Bauby, que sofreu da mesma síndrome e publicou o livro O Escafandro e a Borboleta, ditado apenas com o olho esquerdo? Até que ponto a falácia do “liberdade demais” resiste ao direito inviolável de uma pessoa fazer o que bem entender da própria vida?
0 comentários:
Postar um comentário