por Caio Coletti
Mesmo que de sua forma muito peculiar, Sr. Turner é mais um dos grandes filmes de 2014 que desafia a predileção do espectador contemporâneo por plots super-inflados, satisfação narrativa imediata, acontecimentos verdadeiramente impressionantes em tela. Não há nada de errado em fazer um filme com muitas reviravoltas, que quer dizer grandes coisas e faz questão de dizê-las em alto e bom som, mas há algo de muito lindo na sutileza de cineastas como Mike Leigh (diretor deste) e Richard Linklater (de Boyhood), capazes de criar obras contemplativas, que exigem a atenção do espectador e, justamente por isso, podem ser melhor apreciadas por aqueles que lhe dão essa atenção, sem titubear. O novo filme do britânico Leigh, conhecido por dramas intensos como Vera Drake e comédias espertas como Simplesmente Feliz, é uma biografia de arte em muitos sentidos tradicional, que toma 2h30m do tempo de quem o assiste e não tem medo de preencher uma parte delas com momentos muito mais sensoriais do que simplesmente práticos para a trama.
Nada mais justo, inclusive, quando o biografado é o pintor inglês J.M.W. Turner, ele mesmo um mestre na arte de traduzir em tinta (e gema de ovo, e achocolatado, e farinha, e cuspe…) as sensações que as cores e as formas do mundo passavam. Conhecido primariamente como um pintor de paisagens, Turner ficou famoso como o mais proeminente de uma escola que precedeu os célebres impressionistas, com suas telas que traziam luz e movimento à cenas gigantescas de pôr-de-sol, tempestades e outras vistas naturais. O que Mike Leigh e seu diretor de fotografia, o contumaz colaborador Dick Pope (O Ilusionista), fazem de maneira genial é inserir o homem, o autor dessas imagens impressionantes, no mundo que ele retratou. Da longa tomada inicial que contempla um campo e um moinho até a perturbadora imagem de uma garota afogada perto do fim do filme, o trabalho de Pope é uma obra de arte para ser apreciada à parte, e ao mesmo tempo parte fundamental do que faz de Sr. Turner um filme tão belo.
No entanto, a satisfação que o filme traz não é nem de longe confinada a seus prazeres estéticos, uma vez que Leigh, um cineasta-roteirista por excelência, faz questão de incluir muitas reflexões e metareflexões dentro da história do seu biografado. Conhecido pelo método pouco convencional de preparação (Leigh faz workshops com os atores por meses, incluindo no roteiro final materiais improvisados por eles nessas sessões), o britânico amarra uma história que tem a mesma casualidade narrativa de suas empreitadas anteriores, mas uma completude temática muito mais definitiva. A intimidade que Leigh e o elenco ganha com os personagens permite que Sr. Turner seja uma visão de dentro para fora do mundo de um artista, retratando de forma espirituosa como o mundo da arte sempre foi governado por fofocas, intrigas e personalidades gigantescas colidindo. O filme parece questionar a forma como vemos uma obra de arte ao mesmo tempo que mostra o quão humanos são os artistas, que em grande parte fomentam essa percepção superficial e mesquinha da produção de cada um deles.
Para não se privar de uma discussão mais humana (e aqui é quando o leitor começa a entender porque Sr. Turner precisava dessa metragem incomum de 2h30m), Leigh olha para a vida do homem que biografa com a ambivalência típica do século XXI e seu apreço por anti-heróis. Extremamente sensível e uma presença transformadora quando precisa ser, Turner era também uma criatura de impulsos egoístas, capaz de negar a existência de sua própria família, e que colocava a preocupação com sua arte acima de qualquer conveniência ou trato social. É através da extraordinária performance de Timothy Spall, merecidamente premiado como Melhor Ator em Cannes, que Turner se torna um personagem tão recompensador quanto o filme em que está inserido, em uma conjunção de espíritos notável. O londrino, que ficou conhecido como o Rabicho da franquia Harry Potter, combina linguagem corporal incômoda, um constante grunhido que acompanha todos os diálogos do filme, e a expressividade delicada e intrinsicamente trágica de um ator que entende seu personagem de forma profundamente humana e com extraordinária compaixão. Leigh o cerca de outras performances brilhantes, especialmente das moças Dorothy Atkinson (Call the Midwife) e Marion Bailey (Him & Her), mas Spall brilha absoluto no centro do filme.
Por baixo de sua superfície classista, de forma muito parecida com o seu biografado, Sr. Turner esconde um mundo de maravilhas técnicas e profundidades temáticas. É um filme que precisa ser visto e reconhecido, mas que pede um cuidado e uma paciência que poucos espectadores serão capazes de dar-lhe – pena, porque assim como vários trabalhos do seu personagem-título, Sr. Turner é uma verdadeira obra-prima.
✰✰✰✰✰ (5/5)
Sr. Turner (Mr. Turner, Inglaterra/França/Alemanha, 2014)
Direção e roteiro: Mike Leigh
Elenco: Timothy Spall, Paul Jesson, Dorothy Atkinson, Marion Bailey, Lesley Manville, Martin Savage
150 minutos
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