por Caio Coletti
Ao considerar o começo de uma resenha de Birdman, mais recente e badalada obra do mexicano Alejandro González Iñárritu (Babel, Biutiful), é preciso levar em conta tudo aquilo que o filme coloca em relação ao vícios e valores da própria crítica de arte. Pode parecer que este que vos escreve esteja se curvando às vontades de um cineasta tão passível de falhas quanto qualquer outro, mas qualquer crítico que se preze não vai querer desrespeitar Birdman quando sair da acachapante sessão de cinema que o filme proporciona. O filme de Iñárritu é uma reflexão tão poderosa sobre a forma com a qual contamos histórias e entretemos aqueles à nossa volta, e ao mesmo tempo o é de uma maneira tão pouco impositiva (ainda que assumidamente pretensiosa – é um paradoxo!), que talvez seja melhor mesmo não colocá-lo nos rótulos que ele tanto abomina. Birdman nos chama a entender de verdade as intenções daqueles que se proclamam artistas, dessa forma tão egocêntrica, então porque não lhe dar esse prazer?
Antes de qualquer coisa, o que o filme realizado pelo mexicano parece querer nos dizer é que essa tal intenção conta muito mais, às vezes, do que o resultado. É uma filosofia perigosa se levada aos extremos: até que ponto o amadorismo e a pouca criatividade produtiva de um artista pode ser relevada em virtude da mensagem que ele quer passar? Até que ponto a história, e tudo o que vem atrelado a ela, conta mais do que a execução? Birdman bate o pé e diz que essa tal linha a não ser ultrapassada é uma invenção da crítica, e não se aplica absolutamente à relação de uma obra com o seu público. Por isso o filme nunca esclareça de maneira definitiva as questões que levanta sobre o talento do seu protagonista e a qualidade da produção que ele se desdobra para concluir – porque isso tudo não importa, no final das contas, frente à colossal e frenética história humana que o filme quer contar.
Ao mesmo tempo, não é como se Iñárritu siga a própria filosofia: Birdman é um triunfo de técnica tanto quanto (ou até mais que) é um triunfo de narrativa. Fotografado com criatividade incansável por Emmanuel Lubezki (Oscar por Gravidade) e editado de maneira hercúlea por Douglas Crise e Stephen Mirrione, parceiros de longa data do diretor, o filme nos leva para uma montanha-russa de tensão e propulsão narrativa ao fazer parecer que a coisa toda é feita em um único e impossivelmente longo take. Com algumas poucas exceções no começo e no final da metragem, Birdman nos conduz por corredores apertados de um teatro da Broadway, pela Times Square lotada e por bares sofisticados de Nova York como uma versão de duas horas daquele tracking shot famoso do final de um dos episódios de True Detective. O resultado é excitante de se acompanhar – além de oferecer desafios absurdos para a encenação e o trabalho dos atores, que Iñárritu e seu elenco espetacular contornam com graciosidade. A trilha-sonora percussiva de Antonio Sanchez trata de dar ritmo e ajudar na continuidade dessa tour de force cinematográfica.
A trama acompanha Riggan Thomson (Michael Keaton) um ator esquecido que, 20 anos antes de quando o conhecemos, interpretou o icônico super-herói que batiza o filme em três grandes sucessos de bilheteria. Agora, tentando se provar um artista sério, ele está prestes a estrear na Broadway com uma adaptação de Raymond Carver escrita, dirigida e estrelada por ele próprio. Birdman brinca com a ambição do projeto de seu protagonista tanto quanto se esforça para justificar a sua própria ambição técnica, e trata de colocar uma série incontável de pedras no caminho de Riggan para que a provação pela qual ele passa seja verdadeiramente exasperante: do problemático co-astro interpretado por Edward Norton à filha recém-saída da reabilitação feita por Emma Stone, o protagonista de Birdman acumula problemas o bastante para que sua lenta descida ao inferno seja não só tematicamente oportuna, como também narrativamente justificável.
O filme de Iñárritu é espertamente metaficcional em muitos sentidos, o que rima bem com a estranha sátira que ele quer ser. Poucas jogadas de casting foram melhores nos últimos anos do que a de Michael Keaton para o papel de Riggan – dividindo um passado tão comum com seu personagem, o ex-Batman de Tim Burton entrega uma atuação rica em subtexto e honestidade, mas principalmente faz transparecer em tela um esforço de atuação que a maioria dos intérpretes prefere esconder. É possível ver Keaton lutando contra as próprias limitações como ator, e tentando achar a linha exata onde seu personagem termina e ele mesmo começa, e há muita coragem (além de muito entendimento do espírito do filme no qual ele está inserido) no ato de deixar isso transpirar para a tela.
Gravitando ao redor dele, uma série de atores e atrizes também brincam com suas próprias imagens: Edward Norton imerge em Mike da forma como Mike imergiria em qualquer personagem que lhe fosse dado, explorando sua persona pública de astro arrogante e profissional problemático com um timing cômico e uma noção de cena impecáveis; Emma Stone liga as duas contrastantes características de Sam em um só desempenho, combinando características visuais que desbancam sua imagem de queridinha de Hollywood e desviando o tempo todo a atenção de seus olhos (por incrível que pareça), justamente onde mora a agonia de sua personagem, através de uma atuação muito hiperbolicamente expressiva – e devastadoramente eficiente; Naomi Watts reflete seu próprio momento da carreira ao interpretar uma atriz em busca de papéis mais substanciais que possam lhe trazer algo além de popularidade, e o faz com a precisão de tom que vem caracterizando suas atuações nos últimos anos; em papéis menores, Andrea Riseborough (sempre impecável), Amy Ryan e Zach Galifanakis fazem maravilhas com o roteiro e a reflexão muito aguda que Birdman traz.
Sim, porque existe uma segunda camada na elaboração temática do filme de Iñárritu, e provavelmente existam muitas outras que este humilde crítico deixou passar. Além de refletir como nos posicionamos diante da arte, Birdman reflete, de forma diretamente colateral, como nos posicionamos diante das pessoas a nossa volta. A pergunta que nomeia a peça produzida por Riggan (“Do quê falamos quando falamos de amor?”) também permeia o filme no qual ela está inserida, através da análise cuidadosa, e ao mesmo tempo bastante afetuosa, das falhas de comunicação e da bagunça de sentimentos que existe em cada personagem. Nesse sentido, Birdman é até um filme muito típico para Iñárritu, que continua obcecado por esse desastre natural que é o íntimo humano, e pela forma como confundimos amor com admiração, amor com atenção, amor com violência. Enérgico, significativo, impressionante e inteligente como pouco ou nenhum filme foi em 2014, Birdman ainda é uma história profundamente humana e sincera. E é por isso, e não por tudo o mais que faz de bom e ruim, que o filme não merece ser colocado em rótulos que só vão limitá-lo.
✰✰✰✰✰ (5/5)
Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) (Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance), EUA/Canadá, 2014)
Direção: Alejandro González Iñárritu
Roteiro: Alejandro González Iñárritu, Nicolás Giacobone, Alexander Dinelaris Jr, Armando Bo
Elenco: Michael Keaton, Edward Norton, Emma Stone, Naomi Watts, Andrea Riseborough, Amy Ryan, Zach Galifanakis, Lindsay Duncan
119 minutos
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