por Caio Coletti
Cinema é uma arte de impressão. Cada filme com suas duas horas de duração (ou mais, ou menos, mas em média isso) tem a oportunidade única de causar uma impressão no espectador, em um momento que nunca vai ser repetido não importa quantas vezes esse mesmo espectador reveja o filme. Garantidamente, um filme pode mudar a forma como você pensa e vê o mundo, e talvez até todos os grandes filmes, ainda que sutilmente, devam provocar esse tipo de auto-reflexão. O cinema ultrapassa o domínio da impressão pura, mas é nele que começa, e é nele que tem a liberdade de ser tudo aquilo que pode ou quer ser. Por esse motivo, mais simples do que pode parecer, O Grande Gatsby se destaca como uma das peças de cinema mais notáveis do ano até agora.
É uma falácia recorrente a crítica sempre que o bissexto Baz Luhrmann entrega um filme aos cinemas a de que o diretor australiano joga peso demais no aspecto visual da produção e de menos no desenvolvimento da história. Crítica injusta. Luhrmann sem dúvida nenhuma é um cineasta que articula suas criações se aproveitando o máximo possível do elemento visual, e até criou um estilo de mise-en-scene quase imediatamente identificável (o ocasional ritmo frenético quando a história lhe pede, o constante conflito entre o antigo e o contemporâneo, o peso teatral dado aos momentos verbais), o que não é um feito que muitos diretores alcançaram. Mas o ponto fundamental aqui é que a estruturação visual de Luhrmann funciona em função do roteiro, e não o contrário.
Ajuda, é claro, e fundamentalmente, que o diretor assine todos os seus scripts (sempre em parceria com Craig Pierce). Dessa forma, um talento pode funcionar de mãos dadas com o outro bem melhor do que se Luhrmann se colocasse a serviço de construir um mundo que não fosse, absoluta e inescapavelmente, seu. Em Gatsby, como em Moulin Rouge! (ou até de forma mais notável), tudo se completa e se encaixa: as festas luxuosas de Jay e a trilha sonora que brinca com o soul, o hip hop e o eletrônico; a ambientação na era de ouro da economia americana e as ações idiossincráticas dos personagens em tela; as atuações com tintas modernas e a exposição da incombatível hipocrisia do sonho americano. A fundação em que Luhrmann trabalha é extremamente sólida. O que o diretor faz é torná-la mais, usemos o seguinte termo, impressionante. E sua fotografia, direção de arte, trilha sonora, figurinos, encenação e estilo diretivo transpiram sobre a história para lhe emprestar sofisticação e despojo que, paradoxalmente, andam de mãos dadas.
Não deve mais ser novidade para ninguém, mas vamos lá: O Grande Gatsby acompanha a trajetória de Nick Carraway (Tobey Maguire), que retorna da Guerra odiando a Nova York de efeverscência cultural e festas regadas a bebida, desiste das aspirações de escritor e começa a trabalhar como vendedor de ações em Wall Street. Acontece que seu vizinho é Jay Gatsby (Leo DiCaprio), milionário misterioso que todos os fins de semana promove celebrações gigantescas, atraindo a cidade toda. Nick recebe um convite para uma dessas festas (ele é o único com um, o resto de Nova York simplesmente “aparece por lá”), e logo se vê fascinado pela nova vida metropolitana, e pelo próprio Gatsby.
No livro de Scott Fitzgerald e na mitologia do filme, Gatsby é quase como uma consciência extra que aparece sob formas diferentes para cada um que toma conhecimento dela. É bom, portanto, que Leo DiCaprio saiba investi-lo da dose certa de charme ao mesmo tempo em que o faz um sujeito mais ordinário do que se poderia pensar. No filme de Luhrmann, além desse todo-poderoso carisma, Gatsby é um homem que se agarra a cada esperança ou amor como um menino mimado e, ao mesmo tempo, um adulto obstinado e talvez admiravelmente ingênuo. E ainda mais além de tudo isso, o personagem é um símbolo do “outro lado do sonho americano”, da pureza de espírito que de muitas formas não se deixou endurecer, do desejo infantil inspirado de ter por perto aquilo e aqueles que ama. Leo o interpreta transbordando, acima de tudo, crença. Seja no que for. E Gatsby, o filme, exalta essa qualidade acima de qualquer outra.
Tobey Maguire e a incomparável Carey Mulligan também estão ótimos. Ele olha para Nick como o sempre astuto e sempre observador protagonista, cujos dons incluem o da escrita mas, principalmente, o de ver a verdade de cada pessoa que cruza seu caminho, Fitzgerald (e Luhrmann, agora) nos põe esse tipo de narrador porque quer nos mostrar que no final somos quem somos, e sempre iremos ser. Essa talvez seja a moral mais cruel de Gatsby, e Tobey a incorpora em sua atuação de forma habilidosa. Mulligan, por outro lado, é a epítome da delicadeza e da elegância o filme todo, mas também arquiva uma interpretação bastante intensa tanto na altivez quanto no arrependimento. A gama de emoções que sua personagem atravessa é cuidadosamente desenhada e realçada pela atriz. Isla Fisher e Elizabeth Debicki também merecem destaque no elenco coadjuvante.
O Grande Gatsby vem recebendo críticas mais ou menos na linha esperada: a grande queixa é de que o filme utilizaria de artifícios “baratos” e “previsíveis” para atingir o espectador. Não há nada de previsível em Gatsby. Trata-se de uma exposição do sonho americano, de sua crueldade e de seu poder alienador sobre o indivíduo, que “se esconde atrás do dinheiro” para fugir de uma situação que não lhe agrada. Trata-se de uma fábula moral sobre nunca se desviar da esperança, sobre perseverar e triunfar, mas em favor de seu espírito, e não para mudá-lo. Esse não é um filme vazio, ou raso. O fato de que Luhrmann o enfeita com suas firoulas visuais deslumbrantes não significa que o batimento de seu coração não seja o mais retumbante do ano até o momento.
***** (5/5)
O Grande Gatsby (The Great Gatsby, Australia/EUA, 2013)
Direção: Baz Luhrmann
Roteiro: Baz Luhrmann e Craig Pearce, baseados na novela de F. Scott Fitzgerald
Elenco: Leonardo DiCaprio, Tobey Maguire, Carey Mulligan, Joel Edgerton, Isla Fisher, Elizabeth Dabicki
142 minutos
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