5 de abr. de 2015

Review: A Disney trocou trama por drama na nova versão de “Cinderela”

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por Caio Coletti

As decisões criativas que estão acontecendo nos últimos anos dentro da Walt Disney Studios são talvez o melhor estudo de caso sobre a forma como o showbusiness funciona, num sentido de integrar a atividade artística ao plano de negócios de uma grande marca. Por anos a fio, os executivos engravatados dentro dos estúdios hollywoodianos tem sido alvo da ira de cinéfilos e críticos, permitindo a perpetuação de hábitos produtivos absolutamente errôneos nesse ambiente. O marasmo criativo que boa parte de Hollywood vive hoje em dia é resultado de uma era em que os estúdios se acostumaram a ditar, sozinhos, o que o público quer ver – desde o início da indústria cinematográfica foi assim. Por outro lado, as poucas lufadas de ar fresco dentro do sistema se originam do fenômeno da mídia social, que libera a expressão da vontade e do senso crítico do público (para o bem ou para o mal), tirando das mãos dos executivos esse poder de pauta social que se reflete na própria concepção dos filmes lançados por cada estúdio.

Cinderela, o original datado de 1950, foi um gigantesco sucesso comercial essencialmente pela campanha de marketing agressiva dos estúdios Disney, que precisavam de um hit para salvarem-se da falência. E apesar do encantador trabalho de animação do filme, e do charme nostálgico que ele ainda guarda para muitas pessoas da nossa geração, é preciso admitir que Cinderela envelheceu (muito) mal. Em seu cerne, ele é a culminação de um ideal romântico antiquado – e não de uma forma positiva – até mesmo para a época em que foi lançado. Seus personagens mais bem delineados são os coadjuvantes animais da história, seu roteiro é obcecado por dispositivos de trama baratos, e o filme não deixa sua princesa escapar das feições hiper-suavizadas, mostrando só a mais vaga sombra de personalidade. Cinderela, em suma, é o produto de uma indústria que partiu das definições mais genéricas do que achava ser o ambiente social de sua época e construiu uma história ao redor dessas noções imprecisas.

E é aí que chegamos ao remake de 2015, capitaneado por Kenneth Branagh (Thor), e à nova filosofia que a Disney vem incorporando. A mudança começou na década passada, com a aquisição do estúdio de animação Pixar para o rol de marcas da companhia, trazendo a tiracolo o diretor e produtor John Lasseter, responsável por gerir todas as mentes criativas envolvidas em filmes como Toy Story, Wall-e e Procurando Nemo. Desde que Disney e Pixar se tornaram uma só empresa, o estúdio criado por Walt afinou os ouvidos ajustou o foco das lentes para ouvir e enxergar de verdade o mundo em que estava inserido, e que tipo de mudanças esse mundo exigia em um esquema de produção que já havia passado (e muito) do seu ápice. Animações como Valente, Frozen e Operação Big Hero são excelentes exatamente nisso: trazer o espírito e a qualidade associadas à Disney para um contexto contemporâneo. Malévola faz parte dessa onda também, de sua própria forma nem um pouco sutil, e Cinderela é a última adição ao rol de acertos, mesmo que muito devido à precisão cirúrgica com a qual seu diretor conduz a produção.

O conto de fadas conduzido por Branagh, um celebrado ator e diretor shakespeariano muito antes de entrar na seara dos blocbusters com o já citado filme do herói nórdico da Marvel, faz intervenções importantes na história original sem desconfigurá-la ou querer contá-la sobre uma outra perspectiva. Os fãs mais puristas da Disney ficarão satisfeitos com o resultado tanto quanto aqueles que buscavam uma alma mais moderna (e, sobretudo, mais humana) para a Gata Borralheira. Diversos elementos da animação original não aparecem no novo filme, e quase todos os personagens são vistos sob um ângulo mais caloroso, que busca o tempo todo entender suas ações – cobrir de intenção acontecimentos do original que pareciam estar ali apenas para criar plot. Em suma, o que o roteiro de Chris Weitz (A Bússola de Ouro) faz melhor é trocar trama por drama, no sentido que prefere passar tempo criando identificação do espectador com os personagens do que seguindo ratinhos falantes carregando uma chave pesada escada acima.

A direção entra em cena no sentido de conduzir os atores nesse processo, passando por cima de algumas deficiências nos diálogos e na exposição de trama que são típicas dos roteiros de Weitz. Cinderela é um filme bastante coerente consigo mesmo, jogando o tempo todo com a expectativa do espectador e desafiando-se a não deixar escapar o espírito romântico e idealista da história (idealismo é diferente de idealização, e Cinderela sabe bem disso). Lily James está encantadora como a protagonista, imbuindo-a de uma vulnerabilidade que, no entanto, não a torna frágil – perto da Aurora de Elle Fanning, por exemplo, cheia de empolgação juvenil, a princesa composta por James é claramente mais suave, mas a expressão da atriz nunca deixa escapar a tremenda (e até trágica) coragem que existe na determinação ferrenha da moça em manter-se fiel à gentileza transmitida pela mãe, interpretada por Hayley Atwell em uma breve passagem do filme.

O elenco coadjuvante não fica atrás, é claro: Richard Madden (Game of Thrones) é o príncipe perfeito para essa versão neo-romântica de Cinderela, terrivelmente charmoso sem perder o espírito nobre e humilde que a reimaginação do papel exige; Cate Blanchett entrega, previsivelmente, a atuação mais brilhante do filme como a clássica vilã da história, emprestando algumas dicas da atuação de Meryl Streep em O Diabo Veste Prada mas, especialmente, investindo com fúria e teatralidade as emoções à flor da pele de uma personagem odiável mesmo que seja essencialmente compreensível; o veterano ator britânico Derek Jacobi, por sua vez, foi a escolha perfeita para incorporar o papel do Rei, subvertendo o papel que ele teve na animação e expressando uma afeição que faltava, e muito, no original.

A operação sutil que Cinderela realiza em um dos grandes clássico da Disney, na verdade, é bem simples: consiste apenas em reconhecer todas as falhas que a concepção do filme de 1950 tinha em seu cinismo comercial, olhar para os personagens como mais que peões de uma trama e tirar seu potencial narrativo da interação entre as criaturas complexas que aparecem quando se faz isso. A verdade, no entanto, é que até pouco tempo atrás da Disney jamais permitiria que uma revisão tão corajosa de um filme do seu cânone fosse realizada desse jeito. No final das contas, esse Cinderela de 2015 conta uma história muito mais romântica do que aquele outro, de décadas atrás – habilmente realizado e decentemente escrito, o filme é talvez o argumento mais forte para dizer que o final feliz não está morto na dramaturgia moderna. Ele só ficou, como na vida real, um pouquinho mais difícil de se alcançar.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

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Cinderela (Cinderella, EUA/Inglaterra, 2015)
Direção: Kenneth Branagh
Roteiro: Chris Weitz
Elenco: Lily James, Cate Blanchett, Richard Madden, Helena Bonham Carter, Nonso Anozie, Stellan Skarsgard, Sophie McShera, Holliday Grainger, Ben Chaplin, Hayley Atwell
105 minutos

1 comentários:

Unknown disse...

Gostei do texto, fez uma boa análise.

Abs.,

Anna Ribeiro