por Caio Coletti
“Um amigo é um presente que você dá a si mesmo”. Embora não dê para dizer que essa é uma das frases mais marcantes proferidas por Lou Bloom (Jake Gyllenhaal), protagonista de O Abutre, ela é exemplar para entender de que forma o filme de Dan Gilroy subverte certos conceitos e nos mostra uma realidade dura e sutilmente assustadora. A primeira obra do cineasta, que já tinha escrito roteiros para Gigantes de Aço e O Legado Bourne (entre outros), é um neoclássico americano porque observa os clichês e ideais mais arraigados na mentalidade contemporânea, e especialmente na mentalidade ianque, e mostra o lado vil e feio de todos eles. Lou Bloom tem tudo para ser um herói do mundo capitalista – ambicioso, proativo, metódico, carismático e autodidata –, mas O Abutre faz questão de mostrar o quão inócuos são seus discursos idealistas quando a única verdadeira regra é fazer o que for preciso para conseguir mais (dinheiro, prestígio, posição social, amor).
Em um trabalho de roteiro excepcional, Gilroy nos faz olhar para esse conjunto formidável de normas e condutas do “herói americano” e o traduz para o mundo real de maneira quase sádica. O Abutre é impiedoso com o espectador, eventualmente dono de um humor negro que é só seu, e de um olhar aguçado sobre as idiossincrasias humanas e a montanha de hipocrisia sobre a qual se sustenta a nossa sociedade. É também uma crítica ferina ao jornalismo sensacionalista, ao mote intocável do “if it bleeds, it leads”, e especialmente uma elegia sofrida para as faíscas de idealismo que um dia existiram nos jornalistas retratados em tela. A figura mais marcante nesse sentido é Nina (Rene Russo, perfeita), produtora de uma emissora de Los Angeles que começa a comprar as filmagens de Lou quando ele se envolve no negócio de buscar acidentes, assassinatos e outros acontecimentos sangrentos pelas ruas da cidade a fim de ganhar dinheiro vendendo as imagens para as famintas mídias locais.
Gilroy definitivamente escolheu o universo certo para localizar sua história: não só os nightcrawlers existem de verdade, como são um ramo profissional que reflete um dos lados menos convidativos da sociedade do espetáculo. Durante as duas horas de O Abutre, acompanhamos o personagem de Gyllenhaal explorar sem pudor algum a tragédia humana, a violência gráfica e a privacidade alheia, em troca de uma encenação melhor (e dos dólares a mais que vêm com ela). Não é só voyeurismo, não. Tampouco é fascinação pela estética sangrenta desses acontecimentos reais, ou banalização da violência. É a transformação da experiência humana em produto, da miséria em capital, do sentimento em mercadoria – O Abutre não precisa se esforçar para ser chocante, mas é eloquente o bastante para passar essa mensagem com a dose certa de sutileza.
Ajuda muito que todas as peças do quebra-cabeças de O Abutre como obra cinematográfica estejam perfeitamente no lugar, a começar pela trilha-sonora de James Newton Howard (indicado a 8 Oscar na categoria, e responsável pela música de todos os Jogos Vorazes). O compositor americano aposta num synthpop cheio de cordas e batidas aceleradas, que carregam o ritmo do filme nas costas e adicionam mais uma camada de ironia a O Abutre – Lou não é só um herói americano virado do avesso, como o é acompanhado de uma trilha que não cairia mal em algum filme oitentista de ação. Jake Gyllenhaal, por sua vez, pega as dicas do roteiro e da produção para compor o protagonista de forma impressionante: nas mãos do eterno Donnie Darko, Lou é um sociopata sutil de fala mansa, mas é também uma figura fora desse mundo. Há uma fome por ascensão social muito humana no olhar de Jake, mas há também a sombra de um espírito malevolente por trás dos sorrisos e risadas foras de hora, do cinismo do trato interpessoal, da violência contida por trás do disfarce civilizado. Gyllenhaal entende o personagem que está interpretando, mas acima de tudo entende o filme em que ele está inserido – e é tornando-se parte indispensável dele que sua performance se torna verdadeiramente superlativa.
O Abutre é um thriller intensamente urbano e atual, uma obra de narrativa infindavelmente mordaz e afiada, que sabe em que feridas cutucar e com que cores pintar seu horrendo retrato da sociedade contemporânea. É um trabalho muitíssimo preciso, que não se intimida de deixar um gosto amargo na boca do espectador mais atento. Se observado de perto, O Abutre pode muito bem se passar por um filme de terror: é assustadora a forma como ele retrata um mundo em que tudo é uma negociação, uma barganha, uma troca de favores. A conclusão inevitável a qual o filme chega é que não nos sobra nada de humano – cada vez mais, tudo é capital.
✰✰✰✰✰ (4,5/5)
O Abutre (Nightcrawler, EUA, 2014)
Direção e roteiro: Dan Gilroy
Elenco: Jake Gyllenhaal, Rene Russo, Riz Ahmed, Bill Paxton
117 minutos
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