7 de dez. de 2014

Review: “Fahrenheit 451” e a violência da auto-satisfação

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por Caio Coletti

Futuros distópicos já foram a grande tendência da ficção científica antes da nossa era de Jogos Vorazes e Divergente. Nos anos após a Segunda Guerra Mundial e a bomba de Hiroshima, escritores de fantasia por todo o mundo voltaram seus olhos para o futuro e encontraram perspectivas mais sombrias do que o público estava acostumado a ler. Daí nasceu a obra mais emblemática do gênero, 1984 de George Orwell, nos introduzindo a um governo extremamente totalitário e a uma sociedade que vivia de acordo com a propaganda governamental. Era um mundo onde a “verdade” era acatada, não questionada.

Publicada quatro anos depois de 1984, a obra definitiva do americano Ray Bradbury é Fahrenheit 451, uma visão emotiva de um mundo semelhante ao de Orwell, mas em vários sentidos muito mais desesperador. Conhecido pelo estilo evocativo de escrever e pela intensa poetização das emoções de seus personagens, Bradbury coloca em primeiro plano as consequências psicológicas da sua distopia, ao invés de focar nos meandros políticos e na complicação lógica de um mundo em que verdade e mentira são conceitos pra lá de abstratos.

Nosso protagonista é Guy Montag, um bombeiro dessa nova era, em que a profissão perdeu a função de apagar incêndios e passou a ateá-los, mais especificamente quando algum rebelde é denunciado por ter livros guardados em casa. A leitura é ilegal no mundo de Bradbury, e a rotina de seus personagens parece ser cuidadosamente desenhada para que eles absolutamente não tenham tempo para “pensar sobre as coisas”. Em Fahrenheit 451, seres humanos passam suas vidas olhando para as telas de um salão de TV em que tudo é um espetáculo e as pessoas na tela são chamadas de A Família – e, quando não estão fazendo isso, estão dirigindo seus carros a quase 200 km/h para desviar a mente do que quer que lhes deixe triste. Essa é a sociedade da diversão, mas Bradbury faz questão de mostrar que isso não significa que todos sejam felizes.

A personagem simbólica dessa diferenciação é Mildred, esposa do protagonista. A apatia e a alegria superficial que ela demonstra em boa parte da narrativa é contrastada com a cena, logo no início do livro, em que Montag chega em casa para descobrir que a mulher tomou um franco inteiro de comprimidos e está inerte na cama. Ela passa por um estranho tratamento médico (ou talvez seja mais espiritual, dependendo de como o leitor interpretar a metafórica descrição que Bradbury faz da cena) que a traz de volta à vida, mas a marca dessa descoberta é algo que ressoa infinitamente por Fahrenheit 451 – é o lado feio de uma sociedade que faz questão de esconder suas imperfeições e suas emoções negativas. Essa sociedade suprime o luto, a amargura e a depressão, e é incrível como Bradbury nos mostra que o sufocamento dessas partes tão sombrias da vida leva a um resultado ainda mais escabroso.

ray-bradbury-zenRay Bradbury (1920-2012)

Enquanto a maioria dos personagens segue acreditando nesse espetáculo que eles mesmo encenam, nosso protagonista encontra alguns aliados e algumas reflexões em seu caminho para a rebeldia. Faber é um velho literato de outra época do mundo, um sábio covarde demais para se voltar contra aquela ordem social que tanto lhe desagrada, e uma fonte inesgotável (ainda que falha) de informação para Montag. Bradbury retrata as descobertas do seu protagonista de forma paciente, fazendo-o passar pela infância, adolescência e amadurecimento das ideias que viram seu mundo de cabeça para baixo e colocam-no em frente a uma realidade completamente diferente da que ele (não) racionalizava em sua fúria de agente da destruição.

O chefe dos bombeiros Beatty é uma força antagonista tão formidável porque usa o conhecimento que Montag tanto quer adquirir contra ele. O escorregadio vilão criado por Bradbury é um intelectual venenoso que demonstra o quanto a cultura pode ser virada contra o indivíduo – e esse meio tão belo das palavras, que pode ser um instrumento incrível de libertação da ditadura do entretenimento, é o mesmo meio usado para construir as barras dessa prisão.

Em muitos sentidos, Fahrenheit 451 é mais alarmante ainda que 1984. O retrato desolador que o autor pinta desse futuro anestesiado, e do papel fundamental que as distrações (o “circo” daquele velho clichê do “pão e circo”) tem na construção desse cenário, é muito mais próximo do nosso mundo do que podemos imaginar. Talvez ainda não tenhamos proibido a leitura, mas dá para negar que a reflexão de mundo, e o tempo livre para realizá-la, anda se tornando um artigo cada vez mais raro? O grande terror de Fahrenheit 451 não vem de uma força extraordinária que nos inibe, mas de uma funesta auto-satisfação que nos faz dóceis e acomodados perante à noção torta de felicidade em que somos levados a acreditar.

Ray Bradbury escreveu sua obra-maior à sombra de uma das grandes tragédias da humanidade, talvez o ato de brutalidade mais descomunal do qual fomos capazes como espécie, mas reler Fahrenheit 451 hoje em dia precisa, urgentemente, ser um processo de reflexão. Montag, Mildred, Faber, Beatty e Clarisse voltam à vida e parecem nos olhar desafiadores, com os rostos chamuscados do fogo que arde na sociedade futurista da obra, e perguntar: o que mudou?

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

Fahrenheit-451 -

Nota adicional: Fahrenheit 451 (1966), de François Truffaut

Impossível dizer que a adaptação para o cinema do diretor francês envelheceu tão bem quanto a obra original, mas Fahrenheit 451 sempre pertenceu muito mais às páginas do que às telas. Mesmo trabalhando fora do elemento natural da história, o lendário cineasta de Jules & Jim faz um trabalho admirável de transpor para uma outra mídia a sensação agourenta do trabalho de Bradbury. 451 é um filme estranho, cheio de momentos intensos psicologicamente e tem atuações centrais no ponto – mesmo com a lendária briga com o diretor, Oskar Werner é um Montag absurdamente expressivo. Uma jovem, bela e talentosa Julie Christie faz papel duplo e protagoniza as principais mudanças da adaptação: foi ampliado o papel de Clarisse na história, com ela fazendo as vezes de guia de Montag pelo mundo da leitura (mesmo porque Faber foi eliminado na transposição).

Muito mais datado do que sua contraparte literária, Fahrenheit 451, o filme, segue sendo uma experiência mais do que válida pelas soluções inteligentes de Truffaut e as inventivas adições ao universo criado por Bradbury. O filme colore bem a história para quem já a conhece, mas não se sustenta tão bem como obra própria – especialmente se comparada ao impacto que a escrita do mestre americano provoca no leitor.

✰✰✰ (3/5)

Livro:

Fahrenheit 451 (Ray Bradbury, 1953)
Editora (no Brasil): Biblioteca Azul/Globo de Bolso
Disponível em: edição normal - edição de bolso

Filme:

Fahrenheit 451 (Inglaterra, 1966)
Direção: François Truffaut
Roteiro: François Truffaut, Jean-Louis Richard, baseados na novela de Ray Bradbury
Elenco: Julie Christie, Oskar Werner, Cyril Cusack, Anton Diffring
112 minutos

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