por Caio Coletti
“Todas as gárgulas saíram para brincar”, canta a londrina Florence Welch no início de “Shake it Out”, segundo e até agora mais marcante single desse segundo álbum que ela e sua banda, o The Machine, contruíram juntos. Lungs e sua edição deluxe, Between Two Lungs, foram uma surpresa de vendas, e uma surpresa ainda maior na forma como caíram no gosto de uma geração que, indiscutivelmente, abraçou a música pop com todas as forças que tem. Estréia a parte, o verso que esse que vos fala escolheu para iniciar o parágrafo é o que parece melhor resumir o espírito de Ceremonials, lançado no final do ano passado e fortemente antecipado por fãs de música do mundo inteiro. Talvez tenha sido o peso da expectativa, mas a recepção dessa segunda aventura da banda em estúdio foi dividida entre críticas e elogios. Não que isso signifique alguma coisa. Ceremonials pode ser “grandioso demais”, “calculado demais”, ou até “cansativo”. Mas quem se importa, realmente, enquanto doze catarses consecutivas rolam por nossos ouvidos?
Welch nos inicia com “Only If For a Night”, a introdução ideal aos delírios musicais e líricos em que ela se empenha nesse Ceremonials, uma balada etérea que emerge de corais, órgãos e teclados para elevar ainda mais a performance vocal da inglesa. Aqui, Florence narra um encontro com um amante que ela compara a uma criatura dos seus sonhos. Um fantasma “tão prático”, tão concreto, quanto qualquer um que a cantora retrata nesse Ceremonials. Falando-se em fantasmas, a faixa mais assombrada do álbum é indiscutivelmente “Seven Devils”: melodia sóbria, interpretação surpreendentemente contida e corais que lembram uma invocação pagã. Não se trata de uma adoração, no entanto. A intenção aqui é reconhecer os “sete demônios”, acolhê-los, ser capaz de encará-los. É também uma das muitas provas da capacidade de interpretação de Florence atrás de um microfone nesse Ceremonials.
Só não é mais impressionante nesse sentido do que “Never Let Me Go”, talvez a melhor faixa do álbum. Difícil saber se isso acontece por causa da própria composição da faixa ou pela entrega da cantora, em uma performance que foge do alcance de adjetivos e é capaz de soar como um sussurro ao pé da orelha mesmo quando se eleva as alturas nas linhas finais. Seu “tão frio, mas tão doce” é declamado com essas mesmas qualidades: um suspiro potente, que soa como um vento gelado no rosto, mas um que carrega um perfume inebriante com ele. Outra forte candidata ao posto é “Heartlines”. A percussão claramente africana e a forma como o vocal de Florence combina sua habitual intensidade emocional com cantos que parecem saídos de tribos daquele continente fazem dela uma composição ao mesmo tempo extremamente criativa e recheada de potencial antêmico.
Para fechar a trinca de obras-primas há a própria “Shake it Out” e o que se ouve aqui é a percussão retumbante e o acompanhamento ininterrupto do órgão, mais alguns sutis toques de sons eletrônicos e os corais que fazem o cerne de Ceremonials. Ainda assim, com a voz gigantesca e a interpretação intensa sem se desculpar um segundo sequer por o ser, Florence faz da letra sobre “sacudir” os próprios demônios e “cortar fora” o próprio “coração desajeitado” uma libertação catártica e contagiante. A passagem para o último refrão, com os versos “What the hell/ I’m gonna let it happen to me” é de uma beleza harmônica de provocar arrepios.
Os outros dois singles não são tão libertadores, mas passam longe da incompetência. “What The Water Gave Me” passa da marca dos 5min30, mas isso para demontsrar que a banda furiosa que o The Machine mostrou ser no Lungs não está morta: apenas amadureceu. O refrão é melodicamente perfeito, realçado pela queda de ritmo no instrumental. Crescente e construida em cima de guitarra, bateria, baixo e harpa, “What The Water Gave Me” faz cantar sobre o anseio de se entregar ao silêncio e o peso da água sobre si. “No Light, No Light” é mais esquemática, e teve sorte de ganhar o ótimo videoclipe que ganhou. A letra retrata a liberação musical de tudo que o sujeito da mesma não é capaz de “dizer em voz alta”, mas parece achar tão fácil “cantar para uma multidão”. Premissa interessante que talvez merecesse tratamento musical mais cuidadoso.
De resto, Florence passeia por composições mais pop do que qualquer coisa no Lungs (“Breaking Down”) e emula com competência o som da gravadora Motown, a Meca da música negra nos anos 60 e 70 (“Lover to Lover”). Na última faixa, Florence “deixa seu corpo” (“Leave My Body”), e deixa também a impressão de um belíssimo álbum. Catarse e escapismo a um único tempo, Ceremonials é uma elevação de espírito bem século XXI, através da proclamação em voz alta e clara das próprias falhas e assombrações, e vem num pacote musical que, se não possui excelência uniforme, ainda nos trás momentos indiscutivelmente soberbos.
***** (5/5)
Ceremonials (lançado em 28 de Outubro de 2011)
Gravado em Abbey Road Studios, Londres. Duração 55min58. Selo Island.
Produtores Paul Epworth, James Ford, Charlie Hugall, Ben Roulston, Isabella Summers, Eg White.
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