A cidade se estendia a frente dele. Do topo da colina, ele não podia dizer nada, para que o encanto do silêncio, do escuro, do brilho das estrelas, nada disso desaparecesse no ar como ameaçava fazer a qualquer momento. Estava distante, e não ouvia nada do que se cochichava lá embaixo. Não havia o ronco preguiçoso dos motores, que nasciam e morriam para percorrer os mesmos caminhos. Algo como a vida de quem os guiava, e isso era um pouco triste. Ele pensava, pensava e pensava, e só chegava a uma conclusão: era tudo vazio. Poderia estar se sentindo inseguro, perdido, no alto daquela colina, onde se via tudo mas não se ouvia nada. Não estava. Havia algo de belo no vazio, assim como havia na plenitude. Às vezes ele mesmo se esquecia disso.
E de tanto mais ele se esquecia quando não estava no seu santuário. O organismo vivo lá embaixo não se refletia só nas máquinas, nos letreiros, no ar pesado e no frio mais cortante que há nas ruas mais movimentadas (que contradição!); ele também modificava as pessoas. E de repente elas falavam o tempo todo, e não podiam parar por um segundo que seja para ficar em silêncio, contemplá-lo, refleti-lo, isolá-lo em tudo o que ele tem de mais pleno. Esquece-se do que o silêncio fala quando se concentra demais no que a fala ressoa. E havia também esse vício, que ele mesmo tinha, em informação, em identidade, em personalidade. Esse vício das pessoas nas pessoas, em complexidade, em eternidade, em sentimento. Essa mania terrível de querer que cada momento dure para sempre, e seja perfeito. Não é preciso ser perfeito. É preciso ser de verdade. Mais um vício: em autenticidade.
Ele lembrava-se de tudo isso, e pensava em porque o mundo não era mais aquele silêncio, e menos aquele barulho. Mas isso era só quando estava lá, sentado no topo da colina, sentindo o cheiro da grama molhada pela eterna geada daquela cidade agora mesmo tão distante. Ele via os aviões decolando, e às vezes até sentia vontade de estar neles. E ele observava, cada luz lá embaixo sendo acesa ou apagada, cada declive da cidade sendo vencido pelos carros que carregavam sabe-se lá quem, para sabe-se lá onde. Ele amava tudo aquilo. Amava não saber, e procurar saber. Mesmo agora, contemplando o silencio, ele tinha alguma canção se formando tímida na sua cabeça. Amava o barulho, porque dele vinha a música.
Ele sorriu com aquela conclusão. Nem tanto ao céu, nem tanto a terra. Seus olhos castanhos brilharam para o horizonte lá embaixo, e naquela noite de sexta-feira, naquele frio intenso, ele de repente se sentiu como alguém que precisa de um tempo para retornar ao relacionamento da sua vida. Olhou carinhosamente para ela, que se estendia com todos os seus vícios e imperfeições (quem não tem os seus?) no horizonte da colina, deu meia-volta e entrou no próprio carro. Hesitou antes de dar a partida, mas quebrou o silêncio. Assim, uma vez mais, ele deixava sua amante, a paz, para unir-se na mais perfeita comunhão com seu esposo, o caos.
“What’s wrong with bein’ a nobody?/ That nobody knows and has nobodies/ And I should know ‘cause I’m one of these/ Happy to blend and I really am, honestly.
Whole world is tryin’ to be somebody/ Kickin’ themselves ‘bout what could’ve been/ What’s wrong with abeing a nobody?/ I’m not pretending I am what I’ll never be”
(Eliza Doolittle em “Nobody”)
1 comentários:
Gostei. E achei engraçada a ambiguidade das duas últimas linhas. Parece que o personagem deixa a "amante" e volta pro "esposo"... do próprio personagem :O Sabe que sempre tenho uma frase pra tudo... e esse seu texto lembrou uma: "Ships are safe in harbour. But they were never meant to stay there" :)
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