19 de ago. de 2015

Review: “Lugares Escuros” é um bom neo-noir que se beneficiaria com um pouco mais de ambientação

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por Caio Coletti

Lugares Escuros passou nada usuais 15 meses na mesa de edição. Com a ajuda dos editores Douglas Crise (Birdman) e Billy Fox (Footloose), o diretor Gilles Paquet-Brenner (A Chave de Sarah) obsessivamente cortou e recortou o seu thriller baseado na obra original de Gillian Flynn, que se tornou uma das queridinhas de Hollywood no ano passado quando escreveu a adaptação de seu romance Garota Exemplar para as telas. O resultado desse processo todo é que Lugares Escuros é um filme de quase duas horas que pede desesperadamente por pelo menos mais uns bons 30 minutos para nos localizar como espectadores dentro da história e do clima do mundo onde ela é localizada. Talvez vítima de uma sensibilidade que não tem a economia e a eficiência implacável de um David Fincher (diretor de Garota Exemplar), o francês Brenner entrega um drama de suspense com o tom de gravidade certo, uma visão bem clara dos temas e elaborações da trama, um bom olho para as atuações, e que merece ser visto – mas que é bastante deficiente em termos de ambientação.

A trama é protagonizada por Abby Day (Charlize Theron), mais uma das protagonistas femininas dúbias e fortes da escritora Flynn. Nesse caso, Abby é a única sobrevivente de um massacre que ocorreu na fazenda de sua família quando ela tinha apenas sete anos de idade. Ela viveu por quase 30 anos às custas de doações de estranhos sensibilizados com sua situação e royalties de um livro que foi escrito em seu nome sobre o crime. Quando o dinheiro começa a minguar, no entanto, ela se vê obrigada a aceitar a proposta do simultaneamente creppy e fofo Lyle Wirth (Nicholas Hoult) e seu grupo de “detetives amadores” obcecados por casos mal-resolvidos do passado, que querem que Abby volte a investigar o caso dos assassinatos e estão dispostos a pagá-la para isso. Acontece que, lá três décadas atrás, o irmão mais velho da moça, Ben (Tye Sheridan quando jovem, Corey Stoll mais velho) foi condenado pelo crime em grande parte graças ao testemunho de uma jovem Abby, praticamente coagida pelos policiais que trabalharam no caso.

Quando a investigação de Abby engata a primeira marcha, o diretor Brenner aumenta a quantidade e a profundidade dos flasbacks, diferenciados das cenas atuais por truques sutis de fotografia empreendidos com elegância pela câmera de Barry Ackroyd (Guerra ao Terror). Passada na área rural do Kansas durante os sempre difusos anos 70, essa fatia da história é justamente aquela que mais desesperadamente precisa de alguns minutos a mais para preparar o terreno para o espectador – falta ao filme a sensação esmagadora de pesar e o pressentimento ruim que sobe pelo vento do Meio-Oeste americano junto com a poeira do solo, algo que a primeira temporada de True Detective retratou tão bem, mesmo com sua ambientação mais contemporânea. As agruras vividas pela mãe de Abby, interpretada com competência devastadora por Christina Hendricks (Mad Men), são um belo e cru retrato do conflito de classes e da situação exasperadora de pobreza e abuso que a família Day sofria, e que reflete a vida de muitas pessoas naquela época e hoje em dia. Coloque na mistura uma crítica velada ao sensacionalismo da mídia (elemento sempre presente nas obras da ex-jornalista Flynn), dessa vez usando a paranoia satanista dos anos 70/80 como veículo, e Lugares Escuros se mostra um drama com muito a dizer – é pra decolar como neo-noir e filme de mistério que lhe falta alguns elementos.

Outra vantagem do filme é que a atuação de Theron no papel principal é só mais uma entre todas as outras do filme, absolutamente todas muito bem sintonizadas aos seus personagens. Ela brilha porque, assim como em Mad Max, consegue expressar muito com uma personagem que diz muito pouco – o tempo todo parcialmente escondida por um boné surrado, a Abby da Theron é uma criatura soturna e anti-social, mas o pathos de sua história é inegável, e a atriz esconde nas menores sutilezas os motivos pelos quais devemos gostar dela. Corey Stoll faz milagres com as pequenas cenas que é dado para construir seu Ben destruído pelo tempo na cadeia, entregando uma performance extraordinariamente serena e sensível, encarando Theron de igual para igual numa dinâmica que é central para o desenvolvimento do filme. Nicholas Hoult é outro que se beneficiaria de mais tempo de tela, mas demonstra a mesma quieta eficiência de sempre ao nos mostrar tanto o lado machucado quanto o lado surpreendentemente seguro de seu personagem. Por fim, Chloe Moretz acerta em cheio o tom de sua Diondra com a mesma execução perfeita com a qual encarnou todos os melhores personagens de sua meteórica carreira até aqui.

Em alguma dimensão, o filme de Paquet-Brenner é um belíssimo conto sobre a natureza humana e sua relação com a mentira, sobre as motivações mais misteriosas por trás de cada uma das nossas decisões e a forma como elas afetam não só a nós, mas a todos ao nosso redor. É um estudo angustiante sobre culpa e dúvida, e sobre as vastidões doentias às quais podem se estender os entremeios do amor (romântico ou fraternal). É um noir moderno por definição temática, que só precisa fazer as pazes com a possibilidade de ser um noir moderno por excelência técnica. Em suma: não ignore Lugares Escuros, como a maioria do público americano o fez, mas entre em sua sessão com a disposição de relevar alguns tropeços pelo bem de uma história que vale a pena assistir.

✰✰✰✰ (4/5)

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Lugares Escuros (Dark Places, Inglaterra/França/EUA, 2015
Direção: Gilles Paquet-Brenner
Roteiro: Giller Paquet-Brenner, baseado no livro de Gillian Flynn
Elenco: Charlize Theron, Nicholas Hoult, Christina Hendricks, Corey Stoll, Tye Sheridan, Chloe Grace Moretz, Andrea Roth, Sean Bridgers
113 minutos

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