30 de jun. de 2017

Antes da segunda temporada, vale lembrar: Stranger Things é a série mais gay da TV

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por Caio Coletti

Eu demorei quase um ano para finalmente me obrigar a ver Stranger Things, série da Netflix que causou comoção sem precedentes na internet em julho de 2016. Desde o primeiro episódio, foi fácil identificar os motivos pelo qual a trama capturou a imaginação do público – nas mãos dos irmãos Matt e Ross Duffer, Stranger Things é tanto uma viagem nostálgica (visual e sentimental) pela mentalidade cinemática americana dos anos 80, quanto uma envolvente história de crescimento que é, fundamentalmente, atemporal. Passada em 1983, a série retrata o desaparecimento de Will Byers (Noah Schnapp), e os esforços de sua família e amigos para encontrá-lo, envolvendo-se em uma trama conspiratória encabeçada por um cientista sinistro (Matthew Modine) e por uma estranha garota com poderes chamada Eleven (Millie Bobby Brown).

Stranger Things conversa com a cultura pop de sua época de forma tremendamente inteligente, não só porque encontra as referências e rimas visuais certas para inserir em determinados momentos da trama, mas principalmente porque mergulha mais fundo na cultura que explora para encontrar uma metáfora poderosa que está no coração da sociedade americana (e ocidental como um todo). Em 1983, perceba-se, os EUA viviam a Guerra Fria contra a União Soviética, um conflito ideológico cujas ramificações iam muito além das formas de governo defendidas por cada uma das superpotências. Sob o comando de Ronald Reagan, os EUA também viviam os primeiros anos da epidemia do HIV/AIDS, que mataria mais de 20.000 americanos até 1989, quando o republicano saiu da presidência sem nunca sequer ter reconhecido a existência da doença.

A genialidade de Stranger Things está em não ignorar e interconexão entre esses aspectos mais profundos escondidos por trás das fachadas decadentes da pequena cidade de Hawkins, Indiana, e a cultura dos filmes de horror e ficção científica que a série busca homenagear com tanto carinho. O resultado é uma das obras mais deliciosa e ferrenhamente queers do cenário televisivo americano atualmente.

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[Joyce] “Ele [Will] é um garoto sensível. Lonnie costumava dizer que ele era queer. Chamava ele de viado”
[Hopper] ”Ele é?”
[Joyce] ”Ele é um garoto desaparecido!”
(Stranger Things 1x01 – The Vanishing of Will Byers)

Nos meses seguintes ao lançamento de Stranger Things, grande parte da discussão em torno do subtexto queer da série girou em torno de Will, o garoto que é “sequestrado” logo no primeiro episódio. Isso porque a série dá a entender, em quase todas as vezes em que o menino é mencionado ou discutido pelos outros personagens, que há dúvidas na comunidade de Hawkins sobre sua sexualidade. Não só o o pai ausente de Will o chamava de “viado”, como Joyce (sua mãe, feita por Winona Ryder) revela, como um par de bullies na sua escola dizem aos amigos do garoto que “Will está na terra das fadas agora” após seu desaparecimento (1x04 – The Body).

Note-se que o ator Noah Schnapp, que interpreta Will, escreveu em seu Instagram sobre a possibilidade do personagem ser, de fato, um garoto gay. “Para mim, Will ser gay ou não não é o ponto. Stranger Things é uma série sobre um monte de crianças que são excluídas e encontram umas as outras por terem sido atormentadas por serem diferentes. Ser sensível, ou solitário, ou um adolescente que curte fotografia, ou uma garota de cabelo vermelho com óculos, te faz gay? Eu só tenho 12 anos mas sei que todos podemos nos relacionar com a sensação de ser diferente”, disse o articulado ator mirim.

Talvez a rotulação de um personagem em específico não seja mesmo o ponto de Stranger Things. No entanto, para ser fidedigno ao que a série mostra, é preciso admitir que o contexto histórico e a situação retratada, assim como as metáforas construídas pelo roteiro, localizam esse elemento de “crianças excluídas” firmemente dentro da lógica da comunidade LGBT. Em seus melhores momentos, Stranger Things é envolvente por mostrar personagens procurando formas de lidar com uma afeição mal vista socialmente, seja ela reprimida por um senso de masculinidade datado ou pelos estigmas de uma sociedade pós-contracultura.

Stranger Things

Em outras palavras: não pode ser coincidência que o Demogorgon tenha levado justamente Will e Barb para o “ponta-cabeça”, seu aterrorizante mundo invertido. Um conceito que, aliás, já tem bastante peso metafórico por si só – por ser uma réplica perfeita do mundo que vemos na superfície, o “ponta-cabeça” permite que aqueles sequestrados passeiem por suas próprias casas, ou ao lado de amigos e família, sem nunca serem notados ou vistos. É uma poderosa alegorização da invisibilidade da experiência queer, da pessoa LGBT que não se sente confortável em mostrar seu verdadeiro “eu” nos lugares em que deveria se sentir mais à vontade – em suma, é como um gigantesco armário.

Os personagens de Stranger Things o tempo todo lutam contra os preceitos que os mantém presos em vidas escolhidas para eles, e não por eles. O triângulo amoroso entre Nancy, Jonathan e Steve é exemplar nesse sentido, uma batalha de afeições que deixa nas entrelinhas o papel que o machismo e a obsessão suburbana por perfeição tiveram na escolha da garota. Homens que viveram com uma masculinidade tóxica e sufocante a vida toda encontram formas de lidar e construir suas próprias identidades, ainda que desesperadamente superficiais, enquanto mulheres encaram de frente o desafio de serem heroínas de suas próprias histórias, donas de sua própria sanidade, independente de expectativas sociais ou opiniões alheias.

Os irmãos Duffer buscam nesses conflitos o verdadeiro combustível para a sua narrativa, fazendo das referências visuais oitentistas meros detalhes frente a um poderoso comentário cultural. Ao entender a mentalidade opressiva por trás dos contos de terror dos anos 80, Stranger Things tem algo a dizer sobre a forma como encaramos as diferenças na sociedade de hoje. Se todos lamentamos o fim trágico de Barb, personagem coadjuvante de Shannon Purser que virou um improvável ícone cultural, talvez devêssemos prestar mais atenção na forma como lidamos com aqueles “sensíveis e solitários” em nosso meio. Para Barb e para Will, cada qual a sua forma, uma cultura que não lhes acolhia foi o que os condenou a um final trágico.

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