1 de jun. de 2017

Cancelar Sense8 não foi uma boa ideia (criativa e comercialmente) para a Netflix

sense8

por Caio Coletti

Era uma vez o serviço de streaming que ia suprir as ânsias criativas de um público cansado da falta de ousadia das emissoras tradicionais. Era uma vez a produtora de conteúdo que começou com House of Cards, uma deliciosa e fundamental ópera política que só se mostrou mais relevante com o passar do tempo. Era uma vez o local de trabalho em Hollywood no qual criadores e performers juravam ter tanta liberdade que era quase assustador. Era uma vez a companhia de entretenimento que entendia a máxima que escapou de Hollywood por quase um século: o público diz o que quer, você não diz para ele.

Como a maioria dos contos de fada, a Netflix era boa demais para ser verdade. O crescimento monstruoso da plataforma através dos anos e a constante expansão do número de produções originais selou o destino desse Éden criativo, e nos últimos tempos ficou abundantemente claro que a Netflix é exatamente como aquelas empresas às quais se apresentou como alternativa no começo de sua dominação mundial. As racionalizações para os cancelamentos de The Get Down e Sense8 só ajudam a provar esse ponto.

As duas séries estavam entre as produções mais caras da Netflix. Um episódio de Sense8 custava em média US$9 milhões para ser feito, enquanto a primeira temporada de The Get Down tirou US$120 milhões do bolso da Netflix, o que coloca ambos os títulos perto da faixa orçamentária de um arrasa-quarteirão hollywoodiano. Produções de nicho, as duas séries não emplacaram com votantes do Emmy e, presumivelmente (a Netflix não divulga números oficiais de espectadores), não atraíram as audiências fabulosas de Orange is the New Black e das séries da Marvel, maiores sucessos do streaming.

getdown

Parece uma decisão mercadológica plenamente justificável, certo? Em curto prazo, com certeza. O problema é que Sense8 termina com um gancho desavergonhado que deixa várias pontas soltas na história, compensando as muitas horas investidas pelos espectadores com arcos de personagem incompletos e dúvidas aos montes. The Get Down, embora tenha uma conclusão menos frustrante, deixa os fãs órfãos de possibilidades e relacionamentos entre os personagens que ficaram sem exploração.

Como estabelecemos no primeiro parágrafo, a Netflix passou anos vendendo sua imagem como uma alternativa a emissoras de TV aberta e fechada que tomavam exatamente esse tipo de decisão, cortando uma narrativa ao meio a fim de compensar rombos orçamentários ou qualquer outra eventualidade corporativa. Esses cancelamentos, e isso não é birra de fã, machucam a Netflix onde pode doer mais a longo prazo: sua reputação e sua identidade. É uma leitura equivocada do setor financeiro da empresa, superestimando seu lugar no cotidiano global e o poder de escolha de um público essencial e fundamentalmente conectado a comunidades on-line (muito mais do que o público convencional de suas concorrentes televisivas), que não só tem opções diferentes de streaming como pode sempre recorrer ao abraço confortável da pirataria.

Em resumo, esses cancelamentos denotam uma tendência dentro da Netflix em parar de agir como fornecedora de serviço e produtora de conteúdo, que era o que a fazia uma figura tão aparentemente revolucionária no cenário de entretenimento. A nova atitude é tentar igualar seus métodos a uma competição com a qual a empresa de streaming não tem nada em comum – embora seja condenável criativamente, a CBS tem toda a liberdade de cortar suas séries ao meio quando elas não dão retorno, especialmente porque a CBS é uma entidade irremovível do cotidiano de toda a população de um país. Ela existe em um ambiente em que sua concorrência é limitada e sua tradição enraizada no comportamento de gerações e gerações de americanos, enquanto a Netflix é uma entidade relativamente nova, inserida em um mercado (internet) no qual opções são o que não faltam.

hbo

Eu não estou dizendo que, para ser bem sucedida, a Netflix precisa continuar gastando dinheiro em produções que não dão retorno financeiro nem prestígio acadêmico. Estou dizendo que deixá-las sem conclusão é um jogo perigoso em que a plataforma de streaming passa a ruir a confiança de seus consumidores, pouco a pouco. Por todo o seu esnobismo acadêmico e estratégias de choque cansadas, a HBO dá um bom exemplo de como lidar com esse tipo de dilema – séries como Looking, Hello Ladies e Life’s Too Short, fracassos de público, ganharam episódios especiais ou telefilmes que serviram como “consolo” e conclusão para fãs órfãos. É uma decisão corporativa inteligente que mantém a integridade artística do canal (a fim de fidelizar espectadores a longo prazo) sem prejudicar as contas do final do mês.

Em muitos sentidos, a Netflix como entidade crescente dentro do mercado de entretenimento enfrenta desafios parecidos com os da HBO, cujo status como canal por assinatura opcional a força a manejar as expectativas e ânsias criativas de seu consumidor com mais cuidado do que as emissoras de TV aberta. A Netflix, no entanto, enfrenta um campo de competidores maior, e não tem a reputação de prestígio que a HBO construiu desde os anos 90. Aliás, no início de sua ascensão, a plataforma de streaming foi vista por muitos como um porto seguro em que a qualidade das narrativas não precisava se encaixar em um limite acadêmico sufocante, e explosões de criatividade (como Lady Dynamite, BoJack Horseman) excêntricas e essencialmente de nicho encontravam um lar.

Não é mais o caso – mas se quiser ajustar sua imagem de Éden criativo para lamaçal corporativo sem perder público, a Netflix precisa ter mais cuidado onde e quando enfurece o espectador conectado, “mimado” e vocal nas costas do qual construiu seu império de entretenimento.

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