18 de jan. de 2016

Review: As verdades mal-escondidas de "Carol"


por Caio Coletti

O primeiro take de um filme diz muito sobre ele – nas mãos de um bom diretor, a escolha de um take inicial pode introduzir, das maneiras mais simples e simbólicas, a trama e o significado do filme que se segue a ele. Carol começa com um close em um padrão abstrato, que descobrimos ser uma calçada a partir da qual a câmera se ergue para explorar de forma elegante e clássica a Nova York dos anos 50, em uma noite qualquer. É uma decisão brilhante do diretor Todd Haynes (Não Estou Lá.), que diz muito em pouca informação visual, revelando a cuidadosa reconstituição de época empreendida pelos aspectos técnicos do filme (especialmente o trabalho fabuloso de Sandy Powell nos figurinos); a intenção estética e proposta de classicismo do filme, que empresta tantos vícios de câmera e construções de cena do cinema dos anos 40/50; e a recorrente metáfora visual das superfícies, que reflete no mundo ao redor de suas personagens principais o próprio conflito que existe dentro delas, apresentando-se de uma forma para o mundo enquanto cuidadosamente escondem o que existe por baixo dessa encenação.

Durante as duas horas de Carol, frequentemente vemos as duas protagonistas, feitas por Cate Blanchett e Rooney Mara, através de vidros manchados de verde, janelas gotejadas de chuva, espelhos de molduras luxuosas. Haynes e seu diretor de fotografia, Edward Lachman, com quem trabalha desde Longe do Paraíso (2002), conjuram um olhar sobriamente romântico da Nova York da época que retratam, lançando um realismo muito moderno sobre as idealizações que todos temos dos cenários das décadas de ouro de Hollywood. Carol é um filme ferozmente urbano, e a decadência dos quartos de hotel baratos, refeitórios de lojas de departamento, apartamentos modestos de jovens de classe média-baixa, tudo isso faz parte de sua composição visual, sempre honesta com o espectador, cujo olhar, ditado pela câmera, por vezes asssume a identidade de observador distante, e por vezes adentra na percepção dos personagens, especialmente de Therese (Rooney Mara). A encenação ditada por Haynes é econômica e abusa da movimentação dos atores ao invés de confiar na edição, abrindo espaço para Affonso Gonçalves (Indomável Sonhadora) fazer um trabalho imensamente elegante nesse campo.

O filme segue Therese, uma jovem atendente de loja de departamento na Nova York dos anos 50 que, perto da época do Natal, vê seus caminhos se cruzarem com Carol Aird (Cate Blanchett), uma dona-de-cada mais velha, casada, mãe de uma jovem menina, que mesmo assim deixa as faíscas voarem livremente desde as primeiras interações entre as duas. Carol encena essa tensão romântica e sexual que existe entre elas sem receios, mas mantem o espírito contido que é exigido de suas personagens graças ao ambiente social em que elas se encontram – o trabalho das atrizes, e da química entre elas, é reforçar e sublinhar essa nem-tão-sutil, mas obrigatoriamente discreta, atração entre as duas. Não só ambas se entregam nesse sentido, inclusive na única cena mais quente que dividem, mas ultrapassam todas as expectativas ao entenderem, de maneiras diferentes, porém complementares, os atos teatrais e verdades que se escondem por trás deles, que formam a espinha dorsal desse relacionamento complicado e inesquecível.


A presença de Blanchett em tela é quase sobrenatural. Se, no próximo dia 28 de Fevereiro, o Oscar resolver lhe garantir a terceira estatueta da carreira pela atuação, ela estará (novamente) em boas mãos – sua Carol é uma criatura extraordinária, envolvida nos exagerados casacos de pele que a figurinista Powell lhe dá como um manto de proteção, jogando e arrumando os cabelos no vento e na neve como uma estrela de cinema dos anos 40, uma Lana Turner em carne e osso. É fácil entender porque Therese se apaixona por ela, mas Blanchett também encontra os menores e mais significativos momentos para expressar o que existe por baixo de todo o charme e sedução dessa mulher misteriosa. Em uma cena especialmente marcante, Carol está ao telefone com a mulher mais jovem, e uma pergunta feita por sua interlocutora parece ser o estopim de uma reação emocional – em um trejeito que não dura mais que um segundo em tela, Blanchett agarra o telefone e muda sutilmente a expressão corporal, e é o bastante para aquele momento atingir o espectador como um soco no estômago. Em muitos outros coasos, a atriz não precisa de nada mais do que um olhar para nos comunicar quem é a mulher que ela está interpretando quando ela baixa a guarda. No filme em que está inserida, Blanchett não poderia ser uma protagonista melhor.

Não há de se diminuir a excelência de Mara, no entanto – nem relegá-la ao espaço de coadjuvante, como a Weinstein Company fez ao submeter sua atuação para o Oscar. De forma ainda mais sutil, ela constrói sua Therese e as múltiplas facetas que ela apresenta para aqueles e sua volta com cuidado, mantendo na superfície, o tempo todo, a juventude e os conflitos internos que existem dentro da personagem. Sua atuação é um trabalho muito mais nervoso, muito mais intenso (de certa forma) do que a atuação de Blanchett, e as duas se completam pela tensão e encanto que trazem, simultaneamente, ao romance principal do filme. Com a ajuda inestimável do compositor Carter Burwell (Fargo), que cria uma das trilhas-sonoras mais belas do ano, elas e o diretor Haynes transformam Carol em um caso de amor tórrido, apaixonante, calcado em detalhes e em sentimentos fugazes, sem perder de vista o realismo e o retrato social que formam o coração da trama.

A roteirista Phyllis Nagy (Mrs. Harris) adapta o romance seminal de Patricia Hishgmith com propriedade (ela era amiga pessoal da escritora), retratando a vida de mulheres lésbicas na época em que o filme se passa e o “armário” na qual elas eram obrigadas a serem mantidas se não quisessem perder o que construíram de bom na existência de heterossexualidade compulsória que levaram até então – a repressão é palpável em Carol, nos momentos menores tanto quanto na odisséria da sua personagem-título para reter a guarda da filha após o divórcio com o marido, feito por Kyle Chandler (Bloodline). Enquanto o livro é contado apenas do ponto de vista de Therese, Carol expande sua visão para cenas em que a personagem de Blanchett é vista sozinha, ou com a amiga (e ex-namorada) Abby (Sarah Paulson), ou conversando com seu advogado, a procura de um retrato mais completo da época e da provação pela qual essas mulheres passavam. Honrando o desejo da escritora de criar um romance homossexual que não seguisse as regras daqueles que eram contados na época, Carol prova que ainda há algo de vitalmente importante a ser aprendido aqui. Com seu olhar moderno e realista, mas tremendamente romântico, o filme sutilmente sugere que o apagamento e a vilanização da identidade desses personagens não ficou nos anos 50 – e com seu caso de amor elusivo e intenso, envolvente e tocante, Carol fica na memória como nenhum outro drama LGBT recente conseguiu ficar.

✰✰✰✰✰ (5/5)


Carol (Inglaterra/EUA, 2015)
Direção: Todd Haynes
Roteiro: Phyllis Nagy, baseada na novela de Patricia Highsmith
Elenco: Cate Blanchett, Rooney Mara, Kyle Chandler, Jake Lacy, Sarah Paulson, John Magaro
118 minutos

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