16 de mar. de 2015

Review: A importância e a excelência do esnobado “Selma”

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por Caio Coletti

Duas indicações ao Oscar não é o bastante para Selma. A vitória da maravilhosa “Glory” na categoria Melhor Canção, embora justa, não representa sozinha o caráter crucial do trabalho realizado pela diretora Ava DuVernay e por todos os envolvidos na elaboração quase artesanal dessa pequena pérola cinematográfica. É claro que o prêmio da Academia não mede o impacto e o legado de um filme, necessariamente (é preciso lembrar que Cidadão Kane só ganhou a estatueta de Melhor Roteiro Original em seu ano?), mas é difícil não pensar que o “esquecimento” de Selma na maior premiação do cinema americano é sintomático de um mal-estar racial e ideológico no país. É especialmente simbólico do terror que os ianques sentem em olhar para sua própria história e encontrar, tão perto – muito mais perto do que no período retratado por 12 Anos de Escravidão –, um horror que mostra suas consequências até hoje.

O assassinato de um adolescente negro inocente por policiais em Ferguson, menos de um ano atrás, levou o movimento dos direitos civis à rua novamente, e fez de Selma um projeto ainda mais importante do que já é como resgate histórico e cautionary tale. Curiosamente, e com absoluto bom gosto, a diretora DuVernay e o roteirista estreante Paul Webb escolheram retratar o lado mais feio da América num filme que adquire tons documentais tanto no uso dos relatórios verdadeiros do FBI para marcar a passagem de tempo quanto na pintura precisa que faz dos métodos e entranhas do movimento liderado por Martin Luther King. Selma é quase um procedural, uma cartilha da rebelião, mas foge da frieza dessa abordagem ao lançar um olhar muito humano a seus protagonistas e aos dramas que eles enfrentam graças ao preconceito contra o qual lutam.

O filme não se acanha de mostrar a inveja, o choque de valores e até a hipocrisia de certos setores do movimento negro, compensando essas “rachaduras” com cenas calorosas em que esses homens e mulheres mostram sua mais bravia resistência ou sua mais tenra afeição. O equilíbrio de Selma é perfeito para transformar seus protagonistas em seres humanos completamente críveis, e o mesmo se aplica ao Martin Luther King interpretado com maestria por David Oyelowo. O ator britânico não se esconde por trás da dicção que emula perfeitamente o líder negro dos anos 1960 – mesmo nas cenas mais inflamadas de discursos clássicos proferidos pelo Dr. King, o intérprete comunica diretamente ao espectador cada motivação, reserva, cinismo e intenção por trás das palavras do personagem. É extraordinário que Oyelowo encare um papel tão simbólico da mesma forma que qualquer ator abordaria qualquer outro papel, tentanto traduzir as emoções do roteiro para a tela – e, em grande escala, sendo fabulosamente bem-sucedido.

O mesmo discurso vale para Carmen Ejogo, que causa uma impressão muito forte mesmo nas poucas cenas em que aparece como Coretta Scott King, a afamada esposa do pastor e líder revolucionário. O retrato da relação entre Dr. Martin e a esposa é um dos pontos altos do filme, criando cenas poderosas em que ambos os atores deixam o diálogo respirar e tomar vida como se estivessem em uma peça de teatro, sentindo o público prender a respiração e sentir as agonias desses personagens machucados, falhos e extraordinários que ambos interpretam. Há algo de incrível no faro que a diretora DuVernay tem tanto para passar a mensagem primária de seu filme quanto para comunicar as sutilezas e entremeios das relações humanas que se desenrolam ao redor da trama principal, de representatividade e importância obviamente imensas, especialmente por ter sido contada dessa forma.

Com uma fotografia que explora a pele negra dos protagonistas de forma radiante (o responsável pelo feito, Bradford Young, era outro que merecia lembrança no Oscar), uma edição que tira o melhor das muitas setpieces impactantes do filme e um elenco coadjuvante pra lá de eficiente, Selma representa um dos melhores, mais elegantes, inteligentes, importantes e delicados trabalhos cinematográficos do ano de 2014 nos EUA. Uma pena que o incômodo que a Academia (e todo o país) sente com esse pedaço de sua própria história tenha impedido mais gente de enxergar isso.

✰✰✰✰✰ (5/5)

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Selma: Uma Luta Pela Igualdade (Selma, Inglaterra/EUA, 2014)
Direção: Ava DuVernay
Roteiro: Paul Webb
Elenco: David Oyelowo, Carmen Ejogo, Tom Wilkinson, Common, Oprah Winfrey, Wendell Pierce, Trai Byers, Giovanni Ribisi, André Holland, Ruben Santiago-Hudson, Dylan Baker
128 minutos

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