22 de nov. de 2014

Review: “Interestelar” é cinema-extravagância, mas não poderia deixar de ser

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por Caio Coletti

Conforme os anos passam e os filmes continuam chegando, é notável como nós espectadores (e críticos), em maior ou menor escala, passamos a conhecer bem os nomes que verdadeiramente marcarão essa época da cinematografia humana. Não dá para negar que Christopher Nolan é um deles – aos 44 anos, esse cineasta londrino é um dos poucos diretores superstar da sua geração, atraindo um exército de seguidores e outro exército de detratores. Lá se vão 14 anos e sete filmes desde que o mundo conheceu Nolan com Amnésia, e ao assistir seu último feito, esse Interestelar, é gritante como a personalidade do diretor (e roteirista) transpira pelo filme de maneira quase infiltrada – mas o que isso significa?

Para começar, na fundação de tudo, Nolan é um contador de histórias. E mais, ele é um contador de histórias que necessita, com todas as suas forças, ser entendido – esse não é o diretor que vai te encantar pela perfeição econômica de um take ou pelo absoluto enigma de suas intenções. Daí a quantidade homérica de diálogo expositivo que aparece em Interestelar e também figurou de forma insistente em A Origem. É uma característica que irrita muito dos neo-Kubrickianos (termo que talvez eu tenha acabado de forjar), crentes fiéis de que a única forma de tocar o espectador e ser fidedigno a esse mundo complexo em que vivemos é desafiá-lo a resolver um quebra-cabeças irresolvível. Kubrick não fazia cinema para discursar, e o que o fazia especial era o quanto ele se permitia ser incompreensível no caminho de satisfazer seus caprichos cinematográficos. Kubrick nos dava um olhar pelo qual podíamos espiar o enigma da vida, o que é admirável, com certeza – mas não é a única forma de se fazer bom cinema.

Interestelar, ao contrário de 2001 (e o objetivo dessa comparação toda é fazer parar todas as outras comparações que andaram jorrando desde a estreia do filme de Nolan), quer se explicar para o espectador. Quer que ele toque o significado cósmico de toda a sua filosofia, a concretização de toda a sua observação de personagem, as consequências sólidas de cada ato em cada parte do universo que o filme acompanha. Nessa missão, Nolan é descomunalmente bem-sucedido – em vários momentos de Interestelar, a dimensão da trama é atirada na cara do espectador, e o resultado emocional, eu posso testemunhar em primeira mão, é devastador. Esse é um filme que arquiva a proeza de nos engrandecer ao mesmo tempo em que nos coloca em nosso lugar, com a nossa devida insignificância, e nossas devidas falhas.

O protagonista da trama é Cooper (Matthew McConaughey), fazendeiro em uma Terra inóspita de um futuro próximo, em que a natureza se voltou contra a humanidade e ela, em resposta, se agarrou com mais firmeza ao solo árido do planeta. Cooper é também ex-piloto de testes da NASA, entidade que oficialmente foi fechada séculos atrás pelo governo americano (quem precisa de exploração espacial quando a preocupação com o nosso chão é tão urgente?). Ele detecta uma estranha anomalia gravitacional no quarto de sua filha mais nova, Murphy (feita por Mackenzie Foy e Jessica Chastain em momentos diferentes da jornada temporal do filme), e segue a mensagem em código binário que essa tal anomalia parece estar passando até um local ultra-secreto em que os últimos operativos da NASA estão construindo a última esperança da humanidade. E aí, é claro, as coisas ficam complicadas.

Em nenhum momento de sua complexa viagem cósmica, com efeitos da relatividade do tempo-espaço e física quântica incluídos, Interestelar deixa o espectador à deriva. Esse é outro elemento pelo qual é impossível culpar Nolan por querer ser entendido: ele consegue. O grande público teve um gosto muito breve do quão bom o moço é em conduzir uma narrativa complicadíssima quando A Origem nos guiou por múltiplos mundos de sonhos e nos trouxe sãos e salvos até o seu final ambíguo (mas não confuso). Em Interestelar, tanta coisa está acontecendo ao mesmo tempo que é compreensível que Nolan precise de 2h49 minutos de filme, metragem que muita gente achou excessiva, para não transformar seu filme em uma montanha russa de ficção científica metafísica. O filme toma seu tempo para fazer as coisas acontecerem, e talvez isso o torne menos poderoso em termos de sinergia de narrativa – mas também o torna muito mais forte quando se trata de significado.

Por fim, é preciso admirar uma narrativa como Interestelar quando ela consegue impressionar o espectador sem lançar mão de truques baratos. Um dos momentos mais poderosos do filme (os spoilers na frase seguinte são bem leves, eu prometo) acontece quando a Murph adulta está ateando fogo em uma plantação da antiga fazenda do pai enquanto, há galáxias de distância, Cooper e Brand (Anne Hathaway) lutam contra um inesperado contra-tempo que é fruto do puro egoísmo humano. A grande surpresa envolvendo o “personagem secreto” do filme de Nolan não é uma reviravolta inesperada – é possível vê-la há quilômetros de distância, se você prestar atenção. E por mais que o elemento-surpresa seja uma forma infalível de pegar o espectador pelo pescoço, há algo de muito honesto na forma como Nolan prefere conduzir-nos gentilmente pelo braço e nos mostrar o quão verdadeiramente magnífica é a teia de acontecimentos e destinos que ele teceu.

Como cinema, Interestelar é um feito memorável mesmo que seja falho. A trilha-sonora de Hans Zimmer é espetacular (gostaria de lembrar que esse homem só tem um Oscar – só um!), e a fotografia do suíço Hoyte van Hoytema (Her) nos dá algumas das imagens mais sufocantemente belas que veremos em celuloide esse ano. Matthew McConaughey entrega uma performance que é superior em muitos sentidos ao que ele demonstrou em Clube de Compras Dallas, e só se iguala (talvez!) ao seu desempenho em True Detective – é um retrato sensível de um personagem afetuoso que tem uma bela história para contar, e é fora das características que definem sua persona pública. Jessica Chastain mostra porque é uma das atrizes que vai dominar Hollywood nos próximos anos, nos entregando uma Murphy memorável como o roteiro exige que ela seja. Anne Hathaway não parece estar tão conectada com o momentum do filme, mas tampouco o prejudica com o seu retrato firme da Dra. Brand.

Quando a encenação de Nolan descamba para o ultra-dramático, Anne é a que parece sair mais prejudicada, e talvez isso seja mais um erro de seu posicionamento como atriz no filme do que da narrativa em si. Principalmente porque, como narrativa, Interestelar não tinha outra saída a não ser explodir em extravagância emocional – e é justamente aí, onde talvez falhe um pouco como cinema, que o filme triunfa como ficção. Como contador de histórias que é, Nolan escolhe a cada articulação de seu labirinto narrativo ser um panorama muito completo da condição humana. Interestelar não pisa em ovos: retrata com fidelidade os egoísmos, as mentiras e as pequenezas de mente das quais somos capazes. No caminho, no entanto, é capaz de mostrar também que é através de todas essas fraquezas que somos capazes de amar de forma tão espetacular a ponto de lutar pela sobrevivência e pela chance de experimentar mais desse universo para o qual somos tão inaptos. Interestelar é sobre o mesquinho e o sublime do espírito humano. E, à exemplo de seus personagens, o filme não “entra docilmente nessa noite escura” – ele a ilumina.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

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Interestelar (Interstellar, EUA/Inglaterra, 2014)
Direção: Christopher Nolan
Roteiro: Christopher Nolan, Jonathan Nolan
Elenco: Matthew McConaughey, Anne Hathaway, Jessica Chastain, Mackenzie Foy, Casey Aflleck, Topher Grace, Michael Caine, Wes Bentley, Ellen Burstyn
169 minutos

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