7 de jun. de 2014

Por que odiar Lana Del Rey é só uma questão de não ler as entrelinhas?

LANA_DEL_REY_FADER_Brooklyn_02

por Caio Coletti

Em Milk, cinebiografia do político americano Harvey Milk estrelada por Sean Penn em 2008, Josh Brolin interpretou Dan White, um integrante do Corpo de Supervisores de San Francisco (os representantes do poder legislativo da cidade). White, uma figura real, foi também o responsável pelo assassinato de Milk, o primeiro político abertamente gay a conseguir um cargo oficial no governo americano. Cheio de conflitos e claramente desiquilibrado, o personagem é interpretado com propriedade por Brolin, que foi indicado ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante pelo papel. Apesar do ator não ser exatamente o que se pode chamar de “um cara boa gente” (ele já foi acusado de violência doméstica pela ex-esposa Diane Lane, num caso que nunca ficou esclarecido, e preso outras duas vezes), as disposições do público em relação a ele nunca esfriaram muito por causa disso. Dan White, seu personagem em Milk, e o “homem mais odiado da história de San Francisco”, segundo o maior jornal local. White e Brolin não são a mesma pessoa.

Parece óbvio, mas é justamente o ridículo de definir claramente essas linhas que faz a diferença ao se olhar para o caso de Lana Del Rey, e as recentes declarações que a cantora fez sobre feminismo para um extenso artigo da edição musical da revista FADER. Guardadas as devidas proporções, é preciso olhar para os dois casos e se perguntar: por que atores (e escritores, diga-se de passagem) podem viver suas vidas sem se preocuparem em serem odiados pelo que seus personagens fazem ou dizem, enquanto outros artistas não tem esses privilégios? A divisão entre as duas coisas parece lógica, mas não é. Nunca foi, e é cada vez menos no mundo contemporâneo em que nenhuma arte existe por si só, senão mesclada com todos os outros tipos de arte que constituem o cenário atual.

É verdade que Elizabeth Grant (o nome verdadeiro da cantora) não poderia estar ligando menos para o fato de alguém odiá-la por algo que Lana Del Rey disse. De fato, se alguém odiá-la, ela estará sendo bem-sucedida em transmitir sua mensagem, e isso não é porque ela é uma rebelde sem causa que quer ter as opiniões mais controversas do momento – é porque tudo que Lana é, na verdade, é uma reflexão de quem a assiste. É comum observar na arte contemporânea empreendimentos que solidifiquem e sublinhem esse aspecto do próprio fazer artístico. A performance The Artist is Present, de Marina Abramovic, retratada no documentário de mesmo nome, colocava a artista disponível e vulnerável em frente ao público para mostrar que a reação deles à “solidificação do tempo” naqueles momentos que passavam com ela era muito mais importante do que qualquer coisa. O problema é que essa reação não existiria se a artista não estivesse ali.

A posição do criador de arte hoje em dia é essa: a de provocador. E como qualquer provocador, o artista não tem absoluto controle sobre os efeitos de sua provocação, o que é quase um paradoxo, uma vez que o que definirá sua arte são esses efeitos. Não existe arte independente da reação da sociedade à ela no século XXI. Não existe arte que não seja modificada pela forma com que ela é vista.

Tendo isso em mente, é possível olhar para aquela polêmica declaração no artigo da revista FADER de uma forma diferente. “Para mim, a matéria do feminismo não é um conceito interessante. Eu estou mais interessada em SpaceX e Tesla, o que vai acontecer com as nossas possibilidade intergalácticas. Sempre que as pessoas falam de feminismo, eu fico, por Deus. Eu simplesmente não estou tão interessada”, diz ela no quote principal usado pelo autor da reportagem, Duncan Cooper. Releia essa frase. Releia-a na entonação meio dopada que Lana usa nos monólogos de seus clipes, como Tropico (mais um curta-metragem do que um videoclipe), “Ride” e “National Anthem”. Não soa exatamente como algo que Lana Del Rey diria? Pois esse é exatamente o ponto.

Odiar Elizabeth Grant por essa declaração é o mesmo que odiá-la por ter colocado botox nos lábios, por negar isso em qualquer oportunidade possível, por admitir sem vergonha que “fucked her way up to the top” (título de uma das canções do Ultraviolence, álbum que sai no dia 16 de Junho). Odiar Elizabeth Grant por ser anti-feminista, na verdade, é querer odiá-la por criar um personagem em que ser anti-feminista é uma característica não só adequada, como provocativa. A cirurgia nos lábios também conta aí, e a candura sobre a vida sexual movida à ambição também. Logo em seguida a essa primeira declaração, o jornalista da FADER completa: “Quando pressionada, ela adiciona, de forma mais esclarecedora, ‘minha ideia do verdadeiro feminismo é uma mulher que é livre o bastante para fazer o que ela bem quiser’”. Aí, nessa frase, é possível ouvir mais Grant do que Del Rey.

O público parece ter esquecido que provocação está no coração da arte pop. Andy Warhol fazia cópias de latas de Campbell’s para mostrar que o consumismo estava se infiltrando na arte, e que se esse não era um processo que poderia ser parado, poderíamos muito bem aproveitar para tirar novos significados dele. Madonna usava um vestido de noiva no palco e se esfregava para multidões na época de “Like a Virgin” para desmistificar o culto à virgindade feminina e cutucar aqueles que ainda consideravam o sexo um tabu, especialmente se cantado por uma mulher. Katy Perry até hoje engatinha nos palcos para cantar “I Kissed a Girl” para infiltrar, com a sua atitude de boa moça “levadinha”, a homossexualidade no mainstream. Lady Gaga diz que arte pop só é bem sucedida quando tem um elemento de crime, porque ir contra a etiqueta social é provocar pensamento. E arte contemporânea alcança sucesso provocando pensamento, mesmo que não tenha controle nenhum sobre que pensamento será esse.

Em um outro ponto da entrevista para a FADER, Lana Del Rey (ou Elizabeth Grant) dispara: “Minha carreira não é sobre mim. Minha carreira é uma reflexão do jornalismo, do jornalismo dos dias de hoje. Minha persona pública e minha carreira não tem nada a ver com meu processo interno ou minha vida pessoal. É, na verdade, só uma reflexão sobre o processo criativo do escritor e onde ele está em 2014. Literalmente não tem nada a ver comigo. A maioria das coisas que você lê não é verdade”. Grant e Del Rey não são a mesma pessoa tanto quanto White e Brolin, do exemplo que eu dei lá no primeiro parágrafo sobre o filme Milk, também não o são. Em cada declaração, em cada foto posada e cada entrevista e monólogo meticulosa e friamente planejados, Del Rey é uma criação mais completa e fascinante. De uma forma que distingue uma boa parte dos grandes artistas da atualidade, Lana Del Rey não faz arte. Ela é arte.

Marina & The Diamonds, outra artista contemporânea que faz isso de forma muito distinta, disse sobre seu álbum Electra Heart, em que interpreta uma loira fútil que exalta tudo o que o american dream tem de mais podre e falso: “Electra Heart é a antítese de tudo aquilo no que acredito. E o ponto de introduzi-la e construir todo um conceito ao seu redor é que ela representa o lado corrupto da ideologia americana, que é basicamente a corrupção de si mesmo”.

Qual é o ponto de construir um personagem que vai tão contra a sua própria ideologia? Talvez seja fazer o ouvinte (e espectador) pensar no porquê ele mesmo não é contra tudo isso (o que quer que seja “isso” para o projeto do artista). Talvez seja fazer pensar o porquê tantas pessoas não são.

LANA_DEL_REY_FADER_Brooklyn_04

1 comentários:

Unknown disse...

Parabéns, to sem palavras com o seu texto. Análise genial!