A percussão bate, sem fim nem começo, constante e infalível, indo e voltando sempre ao mesmo ponto, sem precisar de um objetivo maior a não ser dar ritmo e direção a canção. Eu a invejo. Não tem anseios nem almeja nada que saia do esquema repetido e eterno de tempo marcado para acabar, e ainda assim deixa sua marca em um mundo sobrecarregado, saturado, que não mais sustenta a si mesmo. A percussão, mesquinha, acomodada e fria como é, provoca sorrisos, faz brotarem lágrimas, embala amores e produz discussões. Porque eu, então, humano, complexo e único como sou, tenho passado tão incólume? Eles estão cegos ou sou eu que, na ânsia de mudar e surpreender, me afasto demais da batida de corações conjuntos, da percussão coletiva e inalterável que se tornou nosso mundo?
Dizem-me que não posso simplesmente bater de frente com o resto do mundo. Seria um, pária, rebelde e marginal, contra milhões. E a cada momento percebo quão poucos são aqueles com os quais posso contar ao meu lado. Talvez estejamos ambos errados, eu e o mundo, mas o que é da vida sem um desafio, uma expectativa, um objetivo, uma longa caminhada assomando no horizonte? Num mundo em que muitos o dizem e poucos o fazem, ser e agir de forma diferente, forçar o coração a bater ligeiramente fora do ritmo da percussão universal, é uma ousadia e tanto. Mas quem ainda passa os olhos por aqui, eu estou seguro, sabe o quão natural é ser o que se é, e não o que se pretende ser. E como, apesar de tudo, vale a pena.
Porque a percussão pode levar a canção adiante, mas é da melodia que os que riram, choraram, se apaixonaram e brigaram, vão se lembrar. Ouse. Sonhe. Qubre convenções. Pense por si mesmo. Tenha uma opinião, mas saiba quando e como expressá-la. Faça sua própria trilha. Porque todas elas, no final, vão parar no mesmo lugar. O que importa é o quanto se explora, conhece e descobre pelo caminho.
“E a mísera, sem chorar, foi refugiar-se no Cabeça-de-Gato que, a proporção que o São Romão se engrandecia, mais e mais ia-se rebaixando acanalhado, fazendo-se cada vez mais torpe, mais abjeto, mais cortiço, vivendo satisfeito do lixo e da salsugem que o outro rejeitava, como se todo o seu ideal fosse conservar inalterável, para sempre, o verdadeiro tipo de estalagem fluminense, a legítima, a legendária; (…) paraíso de vermes, brejo de lodo quente e fumegante, donde brota a vida brutalmente, como de uma podridão”
(Aluísio de Azevedo em “O Cortiço”)
*Acabei de terminar “O Cortiço”. O próximo da lista é “Dom Casmurro”.
5 comentários:
excelente texto, o cortiço me lembrou que a menina do meu trab esta lendo....muito bom o autor.
temos sim que ousar, irmos contra a mare se esta contradiz nossos conceitos. nao podemos aceitar tudo do jeito que é
ser comparado a Ray Bradbury, seja em que nível for, já fez este humilde escriba ganhar a semana :)
apareça mais vezes rssss
abraços
martonolympio.blogspot.com
oi, vim retribuir a sua visita no Beco.
e gostei do seu texto, acho que hoje em dia não é muito difícil ser diferente e ousar, porque as pessoas andam muito parecidas com as outras. todos iguais, todos seguindo uma moda.
abraço!
Einstein e Galileo foram dois que bateram de frente com o mundo ao redor, duas épocas, motivos diferentes ainda assim....
Às vezes é bom não seguir a maré;
p.s.: já descobriu o livro "501 grandes escritores" da editora sextante?
Que texto maravilhoso ! Eu amo reflexoes, dá pra perceber né ?
O seu primeiro paragrafo me fez lembrar uma frase que circulou pelo meu twitter : Não eh triste mudar de ideias, triste eh não ter ideias para mudar.
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