19 de abr. de 2010

Bastardos Inglórios (Inglorious Basterds, 2009)

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Sejamos sinceros, contar uma história não é uma missão qualquer. Trata-se, talvez até mais puramente do que em qualquer outra situação, de uma arte, de uma complexa equação que precisa ser arranjada de acordo com regras claras, entre rígidas e flexíveis, e ainda assim soar criativa dentro de sua própria fórmula. É sutileza demais para muita gente, e ainda assim é impressionante a quantidade de artistas que alcançam sucesso em tal tarefa. Isso falando em criar narrativa, é claro. Quando o assunto é a construção de um mundo particular a tudo que cerca uma obra de arte, aí definitivamente estamos afunilando a seleção. Gente dotada de estilo próprio, que faz de uma narrativa mais do que uma linha a ser seguida, enfeitando-a com sua própria forma de ver e fazer arte até o momento em que a trama é acessório em meio a toda essa ambientação que tanto encanta, ainda mais numa sala de projeção. Tim Burton, Robert Rodriguez, Woody Allen, Pedro Almodóvar. E, claro, Quentin Tarantino. Se alguém duvidava do merecimento da presença do diretor e roteirista na lista, Bastardos Inlgórios deve cumprir bem seu papel de prova final. Isso sem falar que reinventar a História (com H maiúsculo, aquela mesmo de sua época de colegial) e ainda se sair com uma das peças de cinema mais divertidas do ano passado, definitivamente, não é para qualquer um.

É verdade que Bastardos tem as falhas e vícios de seu diretor, seja na desconexa divisão em capítulos ou na forma de criar narrativas paralelas que carecem de equilíbrio no tempo de tela. Ainda assim, a peça de roteiro que Tarantino está lapidando a mais de uma década e que quase abandonou (“de uma forma que me libertasse”) alguns anos atrás tem muito mais acertos do que erros, e o diretor marca um ponto a mais para sua obra ao confiar em um elenco excepcional. Primeiro, a trama, dividida em dois focos básicos. Para começar: Shosanna Dreyfuss (Mélanie Laurent) é uma judia escondida como proprietária de um pequeno cinema em plena Paris ocupada pelos nazistas. É quando ela é abordada pelo neo-astro Fredrick Zoller (Daniel Brühl), ex-soldado e novo queridinho do ministro da propaganda nazista e cineasta Joseph Goebbels (Sylvester Groth), que é convencido pelo garoto a mudar a estréia de seu novo filme, baseado nas façanhas de Zoller no campo de guerra, para o estabelecimento da judia. Acontece que na noite da premiére, além do próprio Führer, estará o “caçador de judeus” Hans Landa (Christoph Waltz), que tem uma antiga história com Shosanna e sua família. Enquanto isso, no outro extremo da trama, Brad Pitt comanda o batalhão de vingadores que dá título ao filme, cuja missão é matar e torturar nazistas. As duas tramas se cruzam por meio da estrela Bridget Von Hammersmark (Diane Kruger), secretamente uma espiã dos Aliados no lado nazista, que trama com o grupo de Pitt um golpe terrorista a tomar lugar justamente na ocasião da exibição no cinema de Shossana. Claro, ela também tem seus planos de vingança.

E isso é apenas uma amostra da infinidade de personagens que o diretor insere em sua narrativa complexa e organizada. Tarantino brinca, como sempre, com referências pop, mas perde muito de sua estranha irreverência reflexiva para o tom mezzo sóbrio, mezzo sátira que imprime a sua reinvenção histórica. Ele abusa de cenas longas e brilhantes verbalmente, mas que acabam por se estender demais e perder o foco no conflito de ações e personalidades que é a linha tênue entre uma narrativa dramática e uma épica. O diretor tem cacife para brincar nesse terreno, mas não se sai bem o tempo todo. A cena da taverna, por exemplo, se torna cansativa. Já o jogo de vontades e manipulação da abertura não poderia ser mais interessante. Ainda mais com Tarantino mostrando-se tão desenvolto atrás das câmeras. Não que ela alguma vez tenha sido desleixado na direção, mas era notável o quanto sua câmera era mero acessório para suas tramas e diálogos. Agora, uma coisa complementa a outra com elegância e clareza, brincando com músicas e ambientações quando se dá ao luxo e se prendendo aos detalhes nos momentos certos. Como cineasta puramente, Tarantino ainda não é nenhum inovador, mas segue a risca as regras e acerta em cheio na verborrágica elegância de sua direção.

Mas quem rouba a cena é o elenco. A começar por Brad Pitt, um estranho no ninho na lista de papéis principais que o diretor já escalou. John Travolta, Pam Grier e David Carradine, todos eles, estavam em momentos de baixa quando se reergueram pelas mãos do cineasta. Talvez seja por isso que Pitt soe um tanto apagado em comparação a outros papéis em que já se mostrou capaz de uma boa atuação. Perto do lunático de Os 12 Macacos ou do enigmático alter-ego de Ed Norton em Clube da Luta, o seu Aldo Raine aparece como uma caricatura com pouca ou nenhuma profundidade. Dele entramos e saímos sem nada saber, e o ator não tem tempo nem espaço o bastante para mostrar alguma nuance mais ousada em sua atuação. O que só dá espaço para seu coadjuvante direto, Eli Roth, brilhar mais intensamente. Ele, o responsável pela direção de O Albergue, quebra com o camp Donny Donowitz um jejum de quase quatro anos afastado dos holofotes do lado da frente das câmeras. Em um papel feito para seus traços marcantes e expressão corporal despojada, Roth abrilhanta cada cena em que dá o ar da graça, encarnando bem o espírito dividido entre caricatural e verdadeiro que Tarantino coloca, sempre, em seus personagens. Só não é o maior destaque da lista de casting porque certo austríaco veio lhe roubar o posto.

Falamos de Christoph Waltz, obviamente. Não foi a toa que o ator de 53 anos levou o prêmio de atuação em Cannes, o Globo de Ouro, o Oscar e outros tantos prêmios na temporada. Sua encarnação do Coronel Landa é espetacular, descontraída e divertida sem perder o foco ou a concentração na personalidade manipuladora do personagem. Nas suas mãos, o “caçador de judeus” é como uma sobremesa meio duvidosa, doce no começo, amarga quando desce pela garganta. É um personagem que desperta tanto ódio quanto admiração, fascinação, hipnose, diversão. Um proverbial vilão a quem o filme pertence, uma figura que acende o interesse do espectador a cada momento que aparece em tela. O roteiro o favorece com frases banais que falam muito mais sobre ameaça do que as caras mais feias dos vilões de ação da Hollywood anabolizada de hoje, mas é na interpretação de Waltz, em seu detalhismo impressionante, que o personagem ganha vida própria dentro e fora da tela. Enfim, aterrorizante, mas inesquecível.

Do restante do elenco, não custa destacar a performance sensível de Mélanie Laurent, a figura que confere humanidade e vulnerabilidade a um filme que, de outra forma, careceria de mais emoção. Sua Shosanna é figura essencial e pivotal do filme, e Laurent cumpre seu batente com desempenho de funcionária exemplar. Daniel Brühl, seu mais habitual parceiro de cena, também faz bonito e compõe um mimado e irritante Fredrick Zoller, que ainda assim desperta emoção verdadeira quando encontra seu estranho destino nas mãos daquela que cortejou por todo o filme. E, por fim, vale falar da curiosa participação de Mike Myers, ele mesmo, quase irreconhecível como um oficial britânico que arma uma parte da operação dos bastardos, e ainda assim excepcional por baixo da maquiagem e do verniz grotesco de seu personagem. Meio afastado das telas, Myers deixa transparecer, vigiado pela câmera de Tarantino, que o adolescente retardado de Quanto Mais Idiota Melhor envelheceu e amadureceu como ator. Estava mesmo na hora de alguém perceber.

Assim, deliciosamente equivocado e equivocadamente delicioso, Bastardos segue a sina de Tarantino: é um filme explosivo, divertido, inteligente... e absolutamente irresistível.

Nota: 9,0

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Bastardos Inglórios (Inglorious Basterds, EUA/Alemanha, 2009)

Uma produção da Universal Pictures/The Weinstein Company…

Dirigido e escrito por Quentin Tarantino…

Estrelando Brad Pitt, Eli Roth, Christoph Waltz, Mélanie Laurent, Daniel Brühl, Mike Myers, Diane Kruger, Til Schweiger…

153 minutos

3 comentários:

Mateus Souza disse...

Eu adoro esse filme! Tarantino muito mais maduro como cineasta, sem vomitar referências pops a todo instante (antes isso era inovador, mas agora já é um artifício batido).

Em relação ao personagem de Brad Pitt, acho que a intenção era mesmo transformá-lo numa caricatura, sem profundidade. E Pitt faz isso muito bem.

Abraço.

Renan Barreto disse...

Caio! Tá ótimo o texto. BAstardos é muito bom e o Tarantino é PHODA! No entanto, preciso ir rápido porque to sem tempo esses dias. Prometo votar e fazer um comentário a altura. E, mais uma vez, obrigado pelas palavras no RBO!

Abração!

Fabio Christofoli disse...

Cara, ta aí um filme que esta na minha lista há mto tempo. Estou em dívida com a 7ª arte...

Acho o Tarantino um gênio, apesar de as vezes exagerar no seu fascínio por sangue e tripas...Mas é um gênio. Adoro filmes de guerra e acredito mto em filmes feitos pelo Brad Pitt (dificilmente ele faz um filme ruim). Então, pq eu ainda não vi este filme? Não há explicação.

Sabe o que eu acho legal no Anagrama e na sua atuação como crítico? É que vc não enche de pontos negativos um filme. Vc vê os erros, mas prefere dar enfase aos acertos. Esse é o bom crítico...

Parabéns