12 de abr. de 2010

Tempestade, por Caio Coletti

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Chovia, mas ele nem mesmo se importava. Sentia os pingos molharem seu cabelo desalinhado, refrescarem seu rosto preocupado, acalmarem seus pensamentos perturbados. Tudo o que ele precisava, agora, era daquela água que o purificava, misturada com o anunciado salgado de suas lágrimas, a riscarem o rosto jovem e bonito. O mundo podia cair em cima de sua cabeça que não seria o bastante para pará-lo, agora que tomara sua decisão. Estava indo de encontro a ela, que sempre fora e sempre seria seu destino, e tudo o que queria era lhe pedir perdão.

Ele não apertou o passo, sentindo os tênis novos rangerem contra o asfalto da larga e deserta estrada, enquanto anoitecia e a chuva não lhe dava trégua. Logo era noite, e o mundo ao seu redor silenciava, como para escutar seus próprios pensamentos, os pingos espalhando água pelo chão sem parada, sem piedade, assim como a culpa lhe fustigava até o fundo da alma. Ele buscava por um novo começo, uma nova esperança, uma nova luz que lhe iluminaria a estrada escura e chuvosa. Ele esperava pelo Sol. Mas sabia que ele não viria até que fizesse o que estava ali para fazer.

Levantou os olhos do chão para perceber que, ao longe, bem ao longe, um prédio se erguia imponente em meio ao vazio deserto de concreto da cidade que se aproximava. Ele só via o cinza enegrecido pela chuva que agora se tornara tempestade, a carga que ele levava pesando mais do que nunca sob a água, seus olhos se embaçando e não podendo mais guiá-lo em seu caminho. Mais alguns metros, pensou consigo mesmo, concentrado em sua chegada e não na difícil jornada, vivendo a esperança do que há de vir e suportando qualquer provação que venha ao longo do caminho. Ele precisava chegar ao fim.

Um, dois, três passos largos e demorados, e foi o bastante. Seus joelhos molhados bateram contra a enxurrada que se acumulava na beira suja das ruas da cidade, ele virou o rosto para cima, encarou o céu cinza-chumbo e, a pouca distância da morada dela, sua verdade, seu destino, berrou um perdão rouco e incontrolável. E esperou, paciente como sempre fora, manso como teria que ter sido, temeroso como lhe era exigido.

Deixou que as lágrimas corressem, mais livres do que nunca, porque por elas ele não poderia mais falar, apenas relembrar. Os amores perdidos, as oportunidades deixadas para trás, os arrependimentos e sofrimentos que carregava agora em sua mala, caída ao seu lado, o pesado fardo de consciência que levava a mão e ao coração. Abriu os olhos apenas quando tinha certeza que toda e qualquer culpa de sua curta vida havia passado pela escuridão que ele encarava. E então viu.

Lá no alto, no último andar, uma luz solitária acendeu-se contra a janela de aço, brilhando absoluta na escuridão da noite sem estrelas, enquanto a chuva lentamente diminuía para a gostosa garoa das tardes de verão. O Sol não saiu para ele. Mas não foi preciso luz alguma para que a íris escura de seus olhos brilhasse como nunca o havia feito. Ele estava pronto. E estava livre. Para ele, a tempestade passara. Não importava que no resto do mundo continuasse a chover, ele não sentia mais o peso da água sobre sua cabeça, que latejava, livre do peso eterno que todos nós carregamos.

Não mais ele, é claro. Agora, tudo era luz.

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P.S. 1: Antes de qualquer coisa, crédito a quem o merece: o texto aí leva minha assinatura por pura formalidade, porque a inspiração veio mesmo ao ler o texto “Raincoat”, da Babi Leão. Mais uma vez fica a dica para quem gosta de refletir e ler bons textos!

P.S. 2: Acabou de cair na Internet o meu primeiro curta-metragem como escritor e diretor, intitulado Humano, uma reflexão ilustrada sobre um garoto tentando se colocar em palavras e contradições. Vejam, comentem, linkem!

A multidão atropelava-se, desembestando num alarido. Uns fugiam à prisão; outros cuidavam a defender a casa. Mas as praças, loucas de cólera, metiam dentro as portas e iam invadindo e quebrando tudo, sequiosas de vingança.

Nisso, roncou no espaço a trovoada. O vento do norte zuniu mais estridente e um grande pé d’água desabou cerrado”

(Aluísio de Azevedo em “O Cortiço”)

1 comentários:

Rodrigo disse...

Fala amigo, Caio, blz?

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