19 de mar. de 2010

Simone, por Vinícius “V” Cortez

Conto (nunk excl) simone 1

Ela pisou a grama fresca da noite na serra. A caminhada fora dura e longa, para chegar tão alto; como se não lhe tivessem pesado nada as duas horas de trilha sem descanso, Simone soltou a minha mão e, sorrindo em espirais de perfume, começou a dançar. O hálito fresco da areia que dormia desmaiada após um dia de calor, como são os do interior do Nordeste, lavava aos poucos embora o meu cansaço, enquanto agitava para mim os cabelos negros e esvoaçantes da mulher que tinha comigo. Sentei numa pedra para ver os espetáculos sobrepostos entre si, postos sob o céu, o do pôr-do-sol e o da dança.

O que não tinha ali, minha imaginação criava: ampliava o sussurro fraco com que Simone acompanhava seus movimentos, ampliava-o numa voz forte, nítida, entoando uma canção do oriente, e, como essas terras chamadas Arábicas, quente e tristemente desolada.

À mão direita eu tinha ainda o vestígio luminoso do sol que se punha, acanhado no horizonte, e à minha mão esquerda estava a noite, a noite, e mais além a noite. As nuvens haviam sido espalhadas, estáticas, aqui e ali, de um lado negras sobre o fundo alaranjado, e do outro invisíveis na sua substância inconsistente. Simone veio mais perto e, no gracejo ritmado de um gesto de mão, longo de um segundo ou ainda menos, puxou a minha vida para o chão, com o que, levantando os meus olhos mais uma vez, era a noite, e só ela, que tinha diante de mim. Acima de nós os faróis das estrelas acenderam o seu brilho calmo, impassível, e abaixo, lá no povoado ao pé da serra, a cor era o amarelo dos postes, o branco das janelas e o vermelho das fogueiras rodeadas pela festa junina – os homens não param, quando o dia pára de brilhar.

E, olhando aquilo, o céu e a terra como que se comunicando, não pude evitar a sensação de que estávamos sendo observados por cada novo olho que se abria para nós -- discretamente, sobre nossas cabeças, como removido um véu nebuloso a um olhar distante, e sob o chão pisado, mais próximo, ligavam-se as luzes num momento de jogo: vejo-não-te-vejo. E não dissemos mais nada.

Foi a primeira vez que escutei uma canção composta inteiramente por silêncio.

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Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas. Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da última guitarrada noite antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia.”

(Aluísio Azevedo, em “O Cortiço”)

1 comentários:

Babi Leão disse...

Que lindo ! Que cenário maravilhoso !
E a frase final entao ?!
"Foi a primeira vez que escutei uma canção composta inteiramente por silêncio." Vou pensar nisso o dia todo, estou até vendo ! hahaha

AH ! Eu já passei dessa parte do cortiço , tá ?! lálálá haoiheoihieo

Beijo Caio ! :D